Luis Graça
Depois de muito tempo ausente, mando mais um trabalho sobre as memórias simples dum velho capelão.
Um abraço
Arsénio Puim
2. Continuação da publicação das memórias de Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/ BART 2917, e que esteve em Bambadinca entre Maio de 1970 e Maio de 1971. Vive actualmente em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores (RAA), estando reformado como enfermeiro do Serviço Regional de Saúde da RAA (*).
RECORDANDO... IV > A MINHA PEQUENA EXPERIÊNCIA DA GUERRA
por Arsénio Puim
É natural que uma parte importante dos textos publicados por ex-combatentes da Guiné, no histórico Blogue de Luís Graça, incida sobre variadas situações de combate vividas pelos próprios ou pelos companheiros, em ataques, assaltos, emboscadas e demais operações militares dum teatro de guerra. São experiências, frequentemente, de grande dureza, muita tensão e perigosidade, que eu não tive.
Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho.
Vivi, no entanto, durante um ano, dia a dia, no teatro de acção do Batalhão 2917, deslocando-me assiduamente a todas as Companhias e permanecendo nestas por vários dias e, às vezes, algumas semanas - visitei 6 vezes a Companhia de Mansambo [CART 2714], 5 vezes a do Xime [ CART 2715] e 4 vezes a do Xitole [CART 2716], que ficava a 40 quilómetros - para além das minhas idas a todos os Destacamentos, mais abreviadas mas com permanência em alguns, como o Enxalé (3 vezes), Missirá (1 vez), e a Ponte dos Fulas (1 vez). (**)
Para a deslocação integrava-me, por regra, nas longas, lentas e penosas colunas militares do Batalhão ao longo das picadas. De uma vez regressei do Xitole na avioneta, que por lá passou. Muito pequena, de um só motor, eu vinha sentado atrás no chão mais o cabo sacristão. A meio da viagem foi decidido fazer um reconhecimento sobre um acampamento «turra». Tive assim oportunidade de ver de perto as regiões dos guerrilheiros do Buruntoni e Ponta do Inglês. Junto do Corubal, bastante largo. Grandes bolanhas, cultivadas. Mato, em alguns sítios, muito denso. Algumas casas, instaladas debaixo de árvores. Muitos trilhos. Nem uma pessoa. Um mundo «do outro lado», dentro da Guiné.
Mas, com tantas voltas e viravoltas, descidas picadas alternando com vertiginosas subidas, e os não menos danosos movimentos laterais curtos e rápidos para seguir um trilho, eu, que nunca me dei bem em mar bravo, acabei por vomitar muito e ficar bastante exausto.
Ainda hoje me interrogo se o senhor Major quis pregar uma «partidinha» ao nosso Capelão...
Em toda a minha presença na Guiné, apenas apanhei um ataque, no dia 3 de Setembro de 1970, no quartel do Xime, aquando de uma das minhas visitas. Era de manhã cedo. Saltei da cama e corri para o abrigo, onde já estavam cerca de duas dezenas de homens – uns algo tensos, outros bem dispostos, uns meio nús, outros com a barba metade feita - e ali permanecemos até acabar o tiroteio, que não foi longo nem teve consequências, a não ser para uma criança da tabanca ao lado, atingida por um pequeno estilhaço.
Várias vezes, porém, «fugi», sem saber, dos ataques do PAIGC aos nossos quartéis. A primeira foi quando me encontrava de visita ao Xime, num dia em que resolvi visitar o Destacamento do Enxalé, na outra margem do Geba. Atravessei o rio no habitual serviço «público» de piroga, manobrada por um nativo com hábil manejo do remo da ré, e tomei um carro na margem de lá. Mal eu chegara ao Enxalé, começou um ataque ao Xime, com forte tiroteio, tendo sido atingidos por estilhaços alguns soldados, sem gravidade. Era o dia 24 de Junho de 1970.
Cerca de um mês e meio mais tarde, deu-se um caso semelhante. Tinha terminado a minha estadia em Mansambo há muito poucas horas, para voltar a Bambadinca, quando teve início um ataque àquele quartel, sem consequências também.
Mas houve uma terceira vez, pelo menos. Na manhã do dia 8 de Abril de 1971, deu-se um ataque ao quartel do Xime, rápido e intenso, com várias roquetadas a cair dentro do arame farpado, e isso aconteceu pouco tempo antes de eu ali chegar para uma visita de dois dias.
Perante tais casos, compreendo que o nosso Comandante um dia me tenha perguntado, à laia de graça, se eu tinha algum pacto com os «turras».
Como é evidente, são as casualidades da vida e a sorte, que às vezes nos acompanha.
Arsénio Puim
[Revisão / fixação de texto / bold a cor / título: L.G.]
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Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores desta série:
14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais
(...) Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.
É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja. (...)
10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau
(...) No dia 2 de Março de 1970, o BART 2917, em que me integrava como alferes-capelão, já deixara a Pesada [, o RASP 2,] em Gaia, e encontrava-se na linda e pequena cidade de Viana do Castelo, para fazer o IAO.
Foram dois meses e meio de intenso treino operacional, incluindo um acampamento, em princípios de Março, na serra, para as bandas de Santa Luzia, em que também participei. Um ambiente duro, onde faltava tudo o que pudesse saber a conforto. E, sobretudo, que frio, meu Deus, durante a noite! (...)
21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4989: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71)(3): De Bissau a Bambadinca, a cova do lagarto
(...) Às duas horas da manhã do dia 31 de Maio de 1970 deixámos Bissau, numa LDG, e continuámos a subir o Rio Geba, em geral bastante largo e de margens baixas e arborizadas, pela calada da noite, estranhamente muito fria. Cinco horas de viagem, sem qualquer incidente, até ao Xime, onde ficou já a Companhia 2715.
No dia anterior tinha-se realizado a entrega das armas aos membros do Batalhão. Todos em fila, um por um. Quando chegou a minha vez, recusei receber a G3. Uma questão, simplesmente, de missão específica do capelão e de consentaneidade com as suas funções, enquanto sacerdote ao serviço da Igreja - expliquei.
- Você é testemunha de Jeová? – atalhou um oficial superior que superentendia ao acto.
- Não, sou padre católico – retorqui. (...)
(**) Companhias de quadrícula do BART 2917 (Maio de 1970/Março de 1972) (comandado por Ten Cor Art Domingos Magalhães Filipe e depois por Ten Cor Inf João Polidoro Monteiro):
(i) CART 2714, sita em Mansambo (Cap Art José Manuel da Silva Agordela)
(i) CART 2715, sita no Xime (Cap Art Vitor Manuel Amaro dos Santos, Alf Mil Art José Fernando de Andrade Rodrigues, Cap Art Gualberto Magno Passos Marques, Cap Inf Artur Bernardino Fontes Monteiro, Cap Inf José Domingos Ferros de Azevedo)
(iii) CART 2716, sita no Xitole (Cap Mil Art Francisco Manuel Espinha de Almeida)
2 comentários:
Caro Puim
A opção de VIDA dum capelão, torna-o, necessariamente diferente dos outros militares.
Recusas-te a arma desde sempre e até ao final. Conheci alguns que, com o decorrer do tempo, passaram para a pistola e no final já "acarinhavam" a G3. Dependeu do tipo de vivência de cada um.
Por falar nos Açores, o capelão que estava no Batalhão de Nova Lamego, creio que o BCAÇ 2835, era o Padre Libório, natural dos Açores.
Saberá, por acaso, quem é? Tens contacto com ele? Eramos muito amigos, apesar de ele ser já um bom bocado mais velho que eu.
Se souberes dele, gostaria muito de voltar a contactar com ele.
Um abraço
Caro Martins
Agradeço-lhe os comentários que fez aos meus textos no blogue de Luis Graça.
Quanto ao Pe. Libório, conheço-o perfeitamente porque estudámos juntos no Seminário de Angra e ele é pouco mais velho do que eu.
Já há muitos anos ele deixou a Diocese dos Açores para ir prestar assistência religiosa aos emigrantes açorianos no Canadá. Sei que ele está na cidade de Toronto, na Igreja de Santa Maria, mas não sei a direcção. Se eu a conseguir, mando-lha.
Um abraço
Arsénio Chaves Puim
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