1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Novembro de 2009:
Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto mais um pedaço das experiências que passei no Palácio. De propósito omito o nome do capitão nesta história. Não tenho a certeza do seu nome. Adoraria que alguém pudesse localizar ou dar informação sobre o capitão Tomás que foi ajudante de campo do general Spínola.
Uma fotografia do referido oficial, possívelmente, ajudar-me-ía a idenficar o capitão desta história.
Um abraço amigo para todos,
José Câmara
Histórias palacianas: Tiros indiscretos… ou como um capitão acabou por ser o herói da história
Para os militares que faziam serviço no Palácio do Governador, em Bissau, uma das principais regras não escritas, era a manutenção do sangue frio perante situações julgadas suspeitas. Essa regra era primordial quando, no exercício das suas funções, os militares eram confrontados com situações de cariz imprevisível. Essas situações eram tanto mais agudas durante o dia, quando a segurança era feita pelo lado de fora dos muros que circundavam os jardins do Palácio.
Entre essas situações estavam a aproximação de civis aos sentinelas, a concentração de civis nas imediações dos postos, e o barulho que os civis faziam, mesmo quando circulando nas imediações dos postos.
Nesses postos de sentinela havia intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do Sargento da Guarda.
O povo de Bissau era, essencialmente, um povo ordeiro e, como tal, obediente das regras então impostas. Desconheço se era regra ou não, a verdade é que de uma maneira geral a população circulava nos passeios do outro lado das ruas que circundavam o Palácio. Os mais jovens, talvez por isso mesmo, nem sempre o faziam. Para além disso, junto ao posto da direita, ao fundo do jardim havia um pequeno atalho muito usado pelas populações, e que encurtava em alguns passos para quem usava a rua que confrontava com o fundo do jardim. Esse atalho desembocava precisamente em cima daquele posto de sentinela. Por isso, mesmo este posto era, em minha opinião, o mais sensível.
Num dos meus dias de Sargento da Guarda, nesse posto de sentinela, estava o soldado Rocha, possuidor de uma pequena estatura e algo nutrido que, talvez por esses factos, era mais conhecido entre os militares da companhia por Rochinha.
O Rochinha foi o primeiro soldado que, comigo, usou o intercomunicador daquele posto de sentinela. Pediu para ser substituído no posto. Quando lhe perguntei as razões do seu pedido, referiu que estava nervoso com a aproximação dos civis ao posto, e que não se sentia à vontade. Disse-lhe que não era razão para ser substituído, e que eu iria de imediato ter com ele e fazer-lhe companhia durante algum tempo. Para minha surpresa ele disse que ou era substituído ou que me iria arrepender.
Confesso que, para além da surpresa da resposta, fiquei bastante admirado com a mesma, por vir de um soldado que reputava de respeitador, e com quem tinha excelentes relações pessoais e militares. Claro que a ameaça em si não podia passar em branco, mas disso trataria depois.
De imediato saí do gabinete do Sargento da Guarda e não estranhei que alguns soldados estivessem com a arma a tiracolo, até porque o render dos sentinelas tinha sido feito ainda não havia muito tempo. Apenas se tinham passado escassos minutos da rendição, pelo que não fazia sentido nenhum que o Rochinha estivesse a pedir para ser substituído. Assim pensei.
Enquanto dava a volta para sair do jardim pelo portão de serviço e ir ao encontro do sentinela, aquilo que eu sempre temi aconteceu… Pummmm! Tiro de G3 e vinha do posto do Rochinha. O que teria acontecido? Meu Deus será que o Rochinha… não! Não queria acreditar o que o meu pensamento me dizia. Já não corria, voava. Ao chegar junto do posto de sentinela encontrei um soldado sorridente, calmo, bem disposto, bem… raios o partam, que por alguns minutos pensei que ele se tivesse suicidado.
Não lhe perguntei o que tinha acontecido. Disse-lhe que o ia substituir, que depois falaríamos. De imediato disse que não, que estava bem, pediu desculpa. Por essa é que eu não esperava. Regressei à Casa da Guarda.
Ali, à minha espera estava o Capitão, o Ajudante de Campo do General Spínola, a pedir explicações.
Contei-lhe a verdade sem nada omitir. Finda a minha explicação, ele disse-me para não esquecer de participar do soldado e de escrever no relatório a ocorrência.
Nunca tinha feito uma participação oficial, e não estava na disposição de o fazer ainda. Sentia que não podia estragar a vida inteira de um indivíduo por causa de um tiro maluco.
Foi com este pensamento que pedi ao capitão para dizer algo sobre este assunto.
Expliquei-lhe que uma Caderneta Militar suja complicava muito a vida daqueles que ficavam nos Açores, onde os trabalhos eram escassos, pois perdiam o acesso a cargos públicos tais como contínuos, jardineiros das Câmaras Municipais, cantoneiros das Obras Públicas, entre outros serviços. Para aqueles que emigravam tinham que pagar uma avultada quantia para limparem o seu cadastro, na medida em que os governos americano e canadense não aceitavam emigrantes com cadastro.
O capitão disse-me que esta ocorrência iria chegar aos ouvidos do Comando do AGRBIS e alguém teria que responder por isso. Se eu estava preparado. Respondi-lhe que era por isso mesmo que o estava informando da verdade dos factos, e que lhe pedia compreensão e ajuda.
Como muitas vezes o vira fazer, o capitão meteu as mãos nos bolsos, e assobiando uma canção qualquer caminhou em direcção ao Palácio. Após alguns passos voltou-se e disse:
- Vê lá se não volta a acontecer!
E voltou a acontecer.
O Cabo José Marcelino Sousa, meu colega de escola primária, entrou no gabinete do Sargento da Guarda sem eu lá estar e pegou na FBP para fazer o render da Guarda. Qualquer dos procedimentos era anti-regulamentar.
Quando reparei no que estava a acontecer, de imediato, dei-lhe ordem para colocar a arma no gabinete e usar a sua G3. Disse-lhe ainda que a arma era perigosa e que estava com o carregador cheio. Ele disse-me que sabia que a arma estava descarregada pois que me tinha visto fazer a inspecção à arma. E era verdade que ele tinha visto fazer a inspecção à arma. Era um procedimento que fazia sempre que entrava de serviço. Só que depois mudava os carregadores.
Nós, os sargentos da guarda, quando preparávamos a rendição da Guarda deixávamos sempre o carregador vazio na arma. Era da responsabilidade de cada um de nós preparar depois aquilo que entendíamos ser o melhor para o desempenho do nosso serviço.
O Cabo Sousa que já tinha a arma a tiracolo, ao tentar tirá-la para a ir colocar no gabinete, levou a mão à correia e… o tiro saíu direito à biqueira da bota. Por pouco não lhe furou o pé. Do mal o menos!
A correr apareceu o capitão. Antes que me fizesse qualquer pergunta, disse-lhe que não havia ninguém ferido. Confesso que pressenti no oficial um relaxar de alívio. De repente, ainda hoje não o sei se a sério se a brincar, perguntou:
- Este também vai para a América?. Ao que respondi:
- Exacto meu capitão! E não menti.
Abanando a cabeça, o capitão lá se foi em direcção ao palácio.
A 24 de Março de 1971 escrevia à minha madrinha de guerra o seginte:
“...aqui no palácio, de vez em quando, há preocupações em demasia; no entanto vai-se resolvendo tudo da melhor maneira. O pior são as situações que se tem que participar de um soldado, e isso é aborrecido, pois suja-se a caderneta do moço. Nesse aspecto tenho resolvido a coisa, e ainda não participei de nenhum. De qualquer forma uma vez será a primeira. Tenho vindo a fugir disso, mas parce-me que já não posso mais”.
Nunca mais soube do Rochinha depois do serviço militar.
Passados muitos anos soube a verdade do que aconteceu naquele dia.
Quando saí do gabinete e vi os soldados com arma a tiracolo, deduzi que a rendição tinha acabado de ser feita. Por isso mesmo não questionei o Cabo da Guarda. A verdade, é que o Cabo Sãozinho, devido ao cansaço de muitos dias sem descanso apropriado, tinha-se deixado adormecer e atrasara-se na rendição. Os soldados encobriram-no e o Rochinha também.
Neste caso, posso muito bem ter estado ao lado do tal espírito de corpo entre soldados que, muitas vezes, nem nos apercebíamos da sua existência.
O Cabo Sousa viveu alguns anos em Stoughton, MA. Entretanto, regressou à sua freguesia da Fazenda, Ilha das Flores, onde reside com a esposa.
Hoje, passados todos estes anos, ainda lembro a atitude deste capitão como uma das mais compreensíveis e saudáveis que me apraz registar. Para ele, onde quer que esteja, só me resta uma palavra: Obrigado!
José Câmara
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)
Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5111: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (8): Guerras palacianas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
1971-1973
Ajudante de campo,seria o Capitão
Lourenço Fernandes Thomaz, ou o
Capitão Ayalla Botto
José Câmara
Essas guerras da segurança ao Palácio do Governador, assim contadas, parecem um capítulo da "guerra" do Solnado.
E se pensarmos que o Presidente Nino tinha câmaras de video, cujos monitores observava mesmo quando jogava às cartas com os convidados...
Não sei se tens conhecimento do estado em que está o Palácio. Foi atingido por duas(?) granadas de óbus, obrigando o Nino a refugiar-se (clandestinamente) na casa do padre italiano, ali perto. Contaram-me que esteve em chamas durante bastante tempo.
Alberto Branquinho
Caro José Câmara,
Linda e tão bem contada história. Não só pelas tuas preocupações solidárias (é bom não esquecer a idade que tinhas), mas também por nos recordares alguns aspectos da vida nas nossas ilhas, sobretudo nas mais pequenas e isoladas. De facto, a caderneta militar limpa era essencial para se arranjar um emprego, por mais modesto que fosse.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
Caro Câmara
Ora aí está mais uma passagem da tua vivência militar. como sempre bem contada.
A tua grande preocupação por manteres limpas as cadernetas dos teus conterrâneos das Ilhas Atlânticas, que tu sabias serem importantes para o seu futuro destino que era bem preocupante e quase sempre amargo, só revela a tua bondade.
Já agora a talho de foice, era por isso que eu desculpava o procedimento "violento" dos superiores Páras de resolverem a coisa à sua maneira, não escrevendo nos documentos militares.
Abraços
Jorge Picado
Camaradas,
Obrigado pelas vossos comentários.
Na verdade a vida nas ilhas era muito difícil. Vivía-se entre a realidade ilha, onde o mundo de ser-se ilhéu quase acabava ao fim da rua (como diria o nosso camarada Carlos Vinhal) e o sonho que ficava para além do pego, as américas.
A segurança do Palácio, por vezes, trazia-nos situações que mais se assemelhava à guerra do Raul Solnado, não fora a seriedade do trabalho. Melhor, a responsabilidade que ele acarretava a quem lá servia.
Uma granada de mão atirada para o o jardim ou a morte de um sentinela teriam efeitos psicológicos devastadores nas nossas tropas, e populações.
Estão a ver os jornais mundiais e a rádio Conacri a anunciarem..." O Palácio do Governador, símbolo do poder português na Guiné, atacado pelas forças da libertação do PAIGC"?
Pobre furriel, Sargento da Guarda, que seria punido severamente por incumprimento das mais elementares regras de segurança.
Todos nós sabemos o que aconteceu com os dois foguetes com que o PAIGC tentou flagelar Bissau, e que acabaram por cair no rio Geba. Na altura não se falava noutra coisa.
Houve chefias que rolaram,e companhias que foram deslocadas.
Tudo porque dois "inocentes" foguetes cairam no rio Geba.
O complexo do Palácio era muito lindo. Não conheci o segundo andar do edifício. O rés do chão era de salas amplas, madeiras excelentes, corredores de fácil trânsito. Falo pelo que vi: os escritórios e as salas de reuniões.
Os jardins muito bem arranjados e cheios de árvores frutíferas complementavam todo o arranjo.
Acompanhei de perto, através da internet e da RTPI, o que se passou em Bissau, e que levou à quase destruição daquele lindo edifício.
Será o Palácio reconstruído? Espero que sim, mas duvido.
Eu vejo a Guiné como sendo um país pobre, muito mal governado, onde a corrupção é palavra de ordem. E podemos aliar tudo isso a uma falta de sentido histórico quase confreangedora.
Um abraço,
José Câmara
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