sábado, 22 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6448: Notas de leitura (111): Rumo a Fulacunda, de Rui Alexandrino Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2010:

Luís,
Li os teus comentários sobre as guloseimas de Bambadinca. Seria bem interessante que se desencadeasse aí uma tempestade de recordações à volta da mesa, não os acepipes de Bissau mas os desenrascanços das gazelas de mato e peixe da bolanha, bem como os cantineiros que ainda conhecemos e que nos ajudaram a levantar a moral da muita comida sorumbática a que éramos obrigados.
Quase me sinto a entrar na loja do Rendeiro (o concorrente do José Maria de Bambadinca) onde eu encomendava o caldo de mancarra à subida da rampa, para todo o contingente que me acompanhava, naquele dia.
Estou convencido que ainda vamos fazer um livro de recordações gastronómicas...

Um abraço do
Mário


O privilégio de ter combatido com grandes amigos de hoje

Beja Santos

Em 6 de Março de 2008, aquando do lançamento do primeiro livro sobre a minha comissão na Guiné, na Sociedade de Geografia de Lisboa, recebi, com uma tocante dedicatória, “Rumo a Fulacunda”, que o Rui Alexandrino Ferreira me entregou depois de me ter abraçado. Como trabalho por objectivos, e é muito difícil sair de disciplina auto-imposta, reservei a oportunidade de o ler quando me lançasse na empreitada desde demencial inventário que ninguém me pediu. Chegou o momento azado, eis as minhas impressões.

Primeiro, desvanece ver alguém que reteve, com carinho, boas memórias dos seus camaradas do grupo de combate a que esteve associado na CCaç 1420. Ilustro com o que ele escreveu sobre o soldado António Pacheco Sampaio:

“Foi o caso mais espantoso de evolução de um ser humano a que tive oportunidade de assistir.

Completamente analfabeto, era meio marreco, deformado fisicamente pela posição em que trabalhava horas a fio, quando ingressou na vida militar. De feitio introvertido e pouco falador, mais parecia um “bicho”.

Frequentou as “escolas regimentais”, aproveitou as lições que lhes ia dando e tendo rapidamente a ler e a escrever passou a interessar-se por quanto o rodeava, ganhou complexão com a ginástica que nunca tinha tido e a correr atrás de um bola como nunca tinha feito. A par de alimentação apropriada como nunca tivera, do convívio em grupo, do contacto com elementos mais evoluídos e de ideias mais abertas, ganhou novas perspectivas do mundo. Foi se transformando aos poucos, passou a ser um elemento totalmente novo, muitas coisas em que nunca tinha reparado lhe chamavam à atenção e eram motivo de espanto.

Nunca ao longo da vida voltei a ter um caso tão extremo e tão marcante como este. Nunca mais vi alguém tirar tantos benefícios da sua passagem pela tropa. Tenho por ele um imenso carinho e uma grande amizade que nem o facto de nunca mais o ter visto os diminuem. Sei por outros camaradas que leva uma vida perfeitamente normal e que se encontra bem. É quanto me basta, me orgulha e me enche de satisfação pois sei nisso que tenho o meu quinhão”.

O Rui aparece na CCaç 1420 em condições dramáticas, vinha em rendição individual. Numa emboscada, um alferes e mais cinco militares separaram-se da coluna, desorientaram-se e andaram açulados por tropas do PAIGC. Só sobreviveu um soldado. O Rui veio substituir o alferes Vasco Cardoso. Ele descreve esses terríveis acontecimentos de modo impressionante. Antes, fala-nos da sua mobilização e, chegado à Guiné, dá-nos conta da sua inserção da companhia sediada em Fulacunda. O que à partida parecia um remedeio acabou por se transformar por uma profunda estima pela gente do seu grupo de combate. Foi uma relação gradual, com inequívocas provas dadas no terreno de combate. O Rui vai deixando desfiar a sua memória, nota-se que a cronologia não é o seu forte, é muito tentado pela divagação e pelo arrastar da corrente emocional. O que ele nos oferece em livro é o crescimento de uma amizade, da formação de vínculos entre combatentes, numa atmosfera de excepção, decorrente do trauma de, logo no início da comissão, terem desaparecido seis camaradas. “Rumo a Fulacunda” deve ser percebido pela energia positiva das suas memórias e pela construção dessa relação poderosa, inquebrantável. A CCaç 1420 irá depois para Bissorã, vai ser confrontada com emboscadas, minas e operações de grande risco, abarcando Olossato, Mansabá, Cutia e a estrada para Mansoa. O Rui torna-se um frequentador da região do Oio, passaram a andar à volta do Morés à procura de bases como Mansodé, Iracunda, Santambato e Cambajo. Tudo é descrito, as grandes capturas de armamento, os grandes dissabores, os sustos tremendos, as tropas à deriva, a selvajaria em combate, as chuvas torrenciais, a sede, o cansaço extremo. Segue-se Mansoa, a CCaç 1420 não foi descansar: reabastecimentos a Bissau, havia que os transportar para Mansabá, K-3, Bissorã e Olossato. O Rui anota inúmeras solidariedades, dá conta das refregas, o K-3 era um verdadeiro quebra-cabeças, as gentes dos Morés vinham testar regularmente a resistência deste destacamento.

O segundo aspecto que gostaria de destacar é a relação do Rui com Angola, as páginas sobre Sá da Bandeira são de uma beleza incomparável, percebe-se à légua que ele tem nesta sua infância e adolescência o filão para reconstruir o mundo que se perdeu: desde os professores aos vizinhos, a natureza dos tempos livres, as transformações operadas naquela região angolana entre os anos 50 e 60, ele tem aqui um alfobre para um livro espantoso.

O Rui prometeu voltar a escrever sobre a sua segunda comissão, aquela em que ele foi determinante na preparação da CCaç 18, a operar em Aldeia Formosa. Vamos ficar naturalmente a aguardar, com expectativa, raros são os registos (como os seus) tão detalhados no campo operacional. Estou convicto que ele irá aproveitar a oportunidade para eliminar referências e críticas desajustadas e seguramente desnecessárias para o objectivo em causa: o dever de memória do combatente. Aprendemos com a vida que há recriminações, denúncias, zangas que perdem a sua razão de ser, além disso ele foi mesmo um grande combatente e é timbre das pessoas valorosas e de bom carácter deixar no anonimato a vilania e mediocridade.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6444: Notas de leitura (110): A Guerra Colonial e o Romance Português, de Rui de Azevedo Teixeira (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antonio Graça de Abreu disse...

Dizes:

"Aprendemos com a vida que há recriminações, denúncias, zangas que perdem a sua razão de ser."

Ora aí está.
Aprendemos.

Saudações,
António Graça de Abreu