Caro Carlos Vinhal e Editores
Escrever pela manhã é porque algo se escapou ao normal.
Desta vez foi o Outono, não como prenuncio de "inverno do nosso descontentamento" mas chove. Não me alegra o suficiente para sair a chover assim. É natural e ciclo normal.
Vim ao blogue, li parabéns ao Hélder em alegria e, como o dia envio-te um texto molhado, não de lágrimas, na data desta emboscada já as perdera, talvez alguém, menos desumanizado do que eu tenha deixado cair alguma.
Aí vai o engenheiro e as desigualdades entre os homens... até na morte???. Não. Isso não. Até... fica para depois.
Um abraço e bom domingo.
Torcato
Vamos andando e rindo
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 23
Os Filhos d’um Deus Menor
Chegou cansado, sujo, farto.
Depois de deixar o Grupo foi direito ao comando.
Entrou e viu gentes de fora. Sobre a mesa papeis e desenhos.
Depois dos cumprimentos, informou o capitão de que tudo tinha decorrido como o previsto e ia tomar um banho.
- Vá e depois venha ver isto. E, “isto”, eram os desenhos e papéis.
À saída ainda agarrou numa “White Horse”.
Após o banho estendeu-se na cama. Bebia pequenos goles da “cavalo branco”. Aquietava, assim, os bichos que por dentro o devoravam, os medos, e, deixando-se embalar nas saudades, adormeceu.
Sentiu que o chamavam. Olhou para o telefone sobre o caixote, pomposamente apelidado de mesa-de-cabeceira, soltou um palavrão e ficou a saber que o capitão o queria ver, já. Vestiu, pouca roupa, soltando palavrões e dando, nos intervalos, um ou outro gole de uísque.
Voltou a entrar na “sala do abrigo” multiusos; comando, messe, bar, tudo e nada ou muito naquele deserto de desconforto onde, o aproveitamento de um caixote ou similar eram luxos.
- Aqui o engenheiro trouxe o projecto de sanitários e balneários novos. Até fossa céptica tem. A água saída de lá é melhor da que aqui bebemos. Capitão disse!
Olhou para a papelada e trocou breves palavras com o engenheiro. Homem de calvície precoce, olhar e palavra calma e triste, aspecto, naquele local, de peixe fora de água.
- Nós temos balneários, bidões ligados em entre eles, chuveiros por debaixo e, se o IN não os furar, funcionam como em hotel de cinco estrelas. Não de hotel, temos sanitários rudimentares e nada privados; valas abertas em paralelo e umas tábuas a atravessá-las. Depois, bem depois com a pá deita-se terra por cima e está concluído. Funciona.
O engenheiro da calvície precoce disse:
- Mais primitivo não deve haver. Eu já visitei tudo e estou a par das instalações que têm. Depois de abrirem, conforme o projecto, o terreno, avisam e mandamos o material.
- Tudo bem respondeu.
O capitão já enrolava papéis e desenhos. O jantar vinha aí e a mesa iria sofrer mais uma transformação. O que nunca sofreu qualquer transformação foram os balneários e sanitários.
No outro dia, com a madrugada a chegar, sentiu-os partir. Lá ia a escolta ao engenheiro e a materiais diversos na véspera trazidos.
Pouco tempo depois, ainda Morfeu não tomara conta dele, sentiram-se sons de rebentamentos e tiros. No abrigo todos se ataviavam na confusão habitual e ouviam-se gritos: - emboscada… bora… bora…
Meio vestido, G3, cartucheiras e sacola (dilagramas e afins) na mão tomou lugar na viatura e lá foram.
Chegaram rápido com o som de poucos tiros ainda a ouvirem-se.
Viu o engenheiro, sentado e com o olhar ainda mais triste. O Grupo da escolta estava em posição pouco habitual e foi falar com o alferes. Sentiu então chamarem-no e viu alguns, mais rápidos que ele, a fugirem estrada acima. Lá no alto, no local habitual das emboscadas, estava quem a sofrera. Uma secção reforçada do Pelotão de Milícia 145 caíra naquela emboscada com mina comandada e forte potencial de fogo. O IN só parara a frente da coluna.
A mina comandada provocara dois mortos, três feridos, um militar que foi apanhado à mão e o Sargento tinha desaparecido. Houve quase corpo a corpo, troca de palavras, em fula certamente, sobre a “Lança Afiada” que o IN tentava vingar e, nesta emboscada o “libertador” que accionou a mina faleceu, vítima de tiro na cabeça.
Como prova deixou miolos. Sofreram cinco mortos, confirmados pelo cabo Milícia Laminé que conseguiu fugir e apareceu três ou quatro dias depois. Talvez os obuses 10.5 tenham sido responsáveis por algum dano.
Dano forte sofreu o Pelotão 145 com dois mortos destroçados pela picada e, em parte, no cimo das árvores, certamente para gáudio dos jagudis.
O Sargento, desaparecido, desistiu da perseguição, estava ferido, e regressou ao quartel.
Tempo, muito mas muito tempo depois leu algures, onde, não sabe ao certo ou seria só o vento ou o sonho a trazerem-lhe recordações? Seria esta emboscada? Talvez. Dizia assim, se bem se lembra:
- A Virgem Maria (ou um Ente Superior), protegera, mais uma vez, aqueles homens.
Claro, os do Grupo da escolta e, todos eles, saíram ilesos.
Felizmente, digo eu.
Só que, também digo, infelizmente, outros, talvez Filhos de um Deus Menor, sofreram na carne a violência, a dor, a morte, o horror de uma guerra fratricida. Sim mortes de ambos os lados em gentes que, talvez, anos antes conviviam como irmãos.
É a guerra. O estúpido desentendimento entre os homens e, porque não, entre os deuses.
Mansambo, aos 02 de Abril da ano da Graça de 1969
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(*) Vd. poste de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7090: Blogoterapia (159): Paradoxo e uma Orquídea (Torcato Mendonça)
Vd. último poste de 2 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969
2 comentários:
Caro Torcato
Julgo ter 'lido' no teu último post um sensato conselho, pelo menos uma palavra amiga, para aqueles camaradas que revelaram alguns dos seus 'fantasmas'.
Tomei boa nota desse teu gesto.
Entretanto verifico, por este relato, que continuas empenhado em demonstrar a irracionalidade da guerra e a contribuires com a 'informação' necessária para que aqueles que queiram ler e pensar sobre o que leêm possam perceber que a guerra é uma coisa realmente suja, não são aquelas alegres coisas que se vê na tv.
Como parece que vamos ter um bom período de chuvas, espero que essa 'veia' continue.
Para teu e nosso bem!
Um abraço
Hélder S.
Amigo Torcato,
"Não me alegra o suficiente para sair a chover assim".
Penso ter lido todas as suas histórias, e confesso que são leituras interessantes, eu gosto.
No entanto, tenho a impressão que os dias de chuva o deprimem, e ao contrário do amigo Hélder, espero que venham dias de sol e que o mesmo não faça com que deixe de escrever.
Votos de um bom fim de semana (parece que com muita chuva, estamos a chegar ao Inverno)
Filomena
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