quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7097: FAP (55): Fuzileiro por um dia (António Martins de Matos)


1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen PilAv Res), enviou-nos, em 7 de Outubro último, uma mensagem narrando-nos mais uma das suas hilarientes peripécias, com que se “divertia” na Guiné:

Camaradas,

Queixou-se o Eduardo Magalhães Ribeiro do silêncio da malta da destemida e heróica Marinha Portuguesa, em não nos contarem as suas histórias, em nada contribuindo para o blogue.

E afirma, “Será que os seus protagonistas pensam que essas suas histórias são pouco, ou nada, interessantes?”

Pois, não sei, mas já que eles não contam nada e dado que, por laços familiares até tenho duas ou três costelas de marinheiro, vou eu contar na vez deles, pode ser que assim se encham de vergonha...
“Fuzileiro por um dia”
A minha missão era simples, consistia em voar até ao quartel do Cacheu e aí fazer embarcar no DO-27 (masculino, os aviões são masculinos), um Oficial dos Fuzileiros que ia comandar (de cima) uma operação.

E assim foi, depois de perguntar ao homem do Serviço Postal Militar (SPM) se havia alguma carga de oportunidade para aquele quartel e metido o saco do correio a bordo, lá segui rumo à pista do Cacheu, viagem sem história, a pista nem era mázita, lá me apareceu o Fuzo para comandar a operação, o restante pessoal já tinha saído nos botes (acho que os fuzileiros lhes chamam outra coisa, para mim são botes) rio acima em direcção à Caboiana.

Cabe aqui um parêntesis para dizer como as “coisas da guerra” funcionavam: O oficial comandante da operação, normalmente Major, Capitão Tenente, nestes casos de marinheiros, levava todo o seu equipamento, prancheta, punaises, mapas plastificados, marcadores, correctores, lápis e borracha, enfim, todo o material necessário e suficiente para que, em cima dos ditos mapas, pudesse ir desenhando a evolução da operação.

O rádio, os auscultadores e os sacos de enjoo eram fornecidos pela FAP.

A missão do piloto consistia em voar até à área das operações e a partir daí ir seguindo as direcções que o douto passageiro indicava, mais para a esquerda, mais para a direita, mais alto, mais baixo, tão baixo também... NÃÃOOO... que me assustei... e por aí fora, parecendo fácil, não tinha nada de difícil.

E o passageiro lá ia comunicando com a tropa no chão, pedindo informações e dando ordens e indicações, umas vezes em perfeita harmonia, outras vezes em completo desentendimento.

Com o decorrer das operações o aviador ia-se apercebendo de algumas incongruências que volta não volta iam aparecendo, por vezes o passageiro perdia-se, o sinal era quando começava a dar voltas ao mapa como se fosse um volante, por vezes a tropa nem sempre estava onde dizia que estava.

E como disse num outro texto, se havia “comandantes” que davam de imediato pela “falcatrua”, havia outros que eram completamente enganados e nem davam por tal.

Que essas incongruências não incomodavam o piloto, se o homem estava ali para ser enganado o problema era dele, só que, se por qualquer motivo, era preciso chamar os aviões de alerta para darem um apoio de fogo imediato, nesse momento a coisa complicava-se, o não ter a certeza do local por onde a tropa estaria estacionada era um pesadelo dos grandes, dos muito grandes.

A partir desse momento o “passageiro” calava-se e era o piloto do DO-27 que tomava o controlo da guerra, esperando a chegada dos Fiats, encaminhando-os para o local, dando-lhes a perceber onde estavam “os bons e os maus”, a maneira fácil de proteger os nossos era voar em círculos apertados à sua (deles) vertical, não gostavam os de baixo mas era única maneira de não levarem com uma roquetada, à segunda volta o passageiro começava a gastar os sacos de enjoo, às vezes não chegavam, seguia-se o plástico que continha os dados da guerra e terminava com o próprio mapa.

Voltando à história.

Descolados da pista do Cacheu lá fomos nós em direcção à Caboiana, a missão dos Fuzos consistia em patrulhar alguns afluentes da margem esquerda do rio, dois botes aqui, outros dois acolá, “operações normais” a coisa a correr bem.

Eis senão quando desataram todos aos tiros, granel, durante alguns minutos ninguém se entendeu, nós cá de cima sem saber quem tinha emboscado quem.

Quando a coisa serenou foi hora de contabilizar os estragos, os Fuzos tinham um ferido.

Logo o Comandante da Operação deu por terminada a progressão, regresso imediato dos botes ao Cacheu, e, acto seguinte, pediu-me se não me importava de aguardar que o ferido chegasse ao quartel a fim de ser transportado de imediato para Bissau.

“Claro que não, estou aqui para ajudar”, 5 minutos depois já estávamos aterrados no quartel do Cacheu à espera do ferido.

Foi aqui que a coisa se complicou.

Como a tropa para retirar da Caboiana ainda levava algum tempo, tinham que recolher algum pessoal que andava por lá espalhado, alguém sugeriu que saísse um bote do quartel do Cacheu a fim de ir buscar o ferido.

Meu dito meu feito, até que outro alguém voltando-se para mim, perguntou: “Ó Tenente, quer vir connosco no bote?”

E eu, periquito da merda, devia era estar calado, logo disse: “Claro que quero”.

Saiu-me, peço desculpa, era jovem e não pensava...

E pronto, um bote, três Fuzos e um piloto, três G-3 e a minha Walter PPK calibre .22, lá fomos rio Cacheu acima em direcção à Caboiana.

Vejam só, podia ser em direcção ao Pelicano, ou à casa do Mário Soares em Pirada, ou ao meu amigo libanês de Bafatá de quem não me lembro o nome, mas não… em direcção à Caboiana!!!!!.

Ao princípio e enquanto subíamos o rio a coisa até correu bem, era como andar de barco ali pela baía de Cascais, claro que os Fuzos não se podiam comparar às Tias da Linha, mas o motor era potente, já me estava a imaginar no ski...

O pior foi quando entrámos pelo afluente do rio Cacheu, riozito de merda, nem 20 metros de largura teria, os Fuzos a meterem bala na câmara, velocidade reduzida, o menor ruído possível, encostados ora a uma margem ora à outra, não tinha a ideia que o tarrafo fosse tão alto, lá de cima a coisa parecia bem diferente, no mínimo eram dois metros de arbustos, mesmo ali junto à água.

E o meu pensamento: “Se está por aqui algum turra escondido nem precisa de me dar um tiro, agarra-me à mão pelos colarinhos e pronto... estou feito. E como explicar um piloto averbado num bote de fuzileiros… se calhar ainda levo uma porrada a título póstumo.”

Eis que de repente e numa das curvas do riozito descobrimos um outro bote onde vinha o ferido, um pequeno alívio, a servir de consolação, pelo menos já não tínhamos que ir mais em frente, xiça...

Chegou o ferido, sorridente, mas com um sorriso estranho, um tiro tinha-lhe furado a bochecha e partido um dente, a bala saiu sem mais estragos, o sacana devia ter a boca aberta, houvesse euromilhões na altura e saía-lhe de certeza.

O regresso foi no mesmo ritmo, silenciosos até chegar ao rio Cacheu e depois gás à tábua que se faz tarde.

E pronto, regressei ao meu ambiente, o admirável ar, lá levei para Bissau o Fuzo da bochecha furada e dente partido.

Foi uma experiência cinco estrelas mas para fuzileiro chegou, que isto de andar entre o tarrafo tem que se lhe diga.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12
Foto: © Site da Associação de Fuzileiros (2010). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7088: FAP (54): O papel da Força Aérea na Guiné nos anos de 1972 e 1973 (Gil Moutinho)

15 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro António M. Matos

Pois sim senhor, uma história bem interessante, permitindo até 'ver' como eram as coisas a partir da água...

Como sempre bem contada, com ritmo, permitindo seguir facilmente o relato e com as 'picadelas' bem colocadas e sem 'ferir' ninguém.

Já agora, a questão 'filosófica' colocada sobre o que poderia acontecer do ponto de vista disciplinar caso tivesse havido alguma complicação com o Piloto na água, parece-me que podia ser 'chata'. Agora, a 'título póstumo', é um bocadinho mórbido, acho que nessas circunstâncias haveria maior 'compreensão' para o 'aventureirismo'.

Abraço
Hélder S.

Abranco disse...

Caro António Martins de Matos
Gosto imenso de ler estas histórias que reflectem experiências de vida que jamais esqueceremos.
Ser fuzileiro por um dia foi pelo relato um momento marcante.
Aproveito este comentário para realçar a importãncia que a Força Aérea representou para todos no território da Guiné.
Estive no Bachile entre 1972 e 1974 muito perto da Caboiana e testemunhei algumas vezes o vosso magnifico trabalho e espirito de camaradagem demonstrado por todo o pessoal onde incluo as nossas amigas enfermeiras para-quedistas.
Fica aqui então a minha singela homenagem a todos os camaradas da Força Aérea.
António Branco
Bachile
C CAÇ 16
1972-1974

Anónimo disse...

Caro Martins de Matos,

VIV'Á irreverência!

Abraço,
Carlos Cordeiro

antonio graça de abreu disse...

Mais uma história deliciosa!
Acho que te estou a ver no Cacheu e depois na Caboiana, entre o tarrafo,vestidinho de azul a brincar a sério aos fuzos.
Nos meus tempos de Teixeira Pinto quem costumava fazer o PCV lá em cima nos Do 27 era o meu coronel Rafael Durão e o meu major de artilharia João Pimentel da Fonseca. O Durão faleceu há dois anos mas que será feito do Pimentel da Fonseca? Acho que era da Figueira da Foz.

Abraço amigo.

António Graça de Abreu

Luis Faria disse...

António Martins de Matos

Uma passagem na vida que não esquecerás,contada agradavelmente e até com um pouco de sal e picante!

Um abraço
Luis Faria

Torcato Mendonca disse...

Caro António Martins de Matos

Eu gostei mesmo.
A guerra assim descrita tem outro "encanto"...
Andar com a tarrafo ao lado...agora pisar aquela mistela...seca e é pedra...

Abraço do Torcato

Jose Marcelino Martins disse...

Sim, senhor!
Óptima história, real, sem rodeios e... sem receios, (agora)

Caro Martins Matos

Já estou a ver que no próximo encontro vais juntar, às asas, uma âncora.

Que tal, camaradas, termos um PilAvFuzo?

Um abraço

antonio graça de abreu disse...

Escrevi ontem o comentário acima.
Hoje à uma da tarde telefona-me o coronel João Pimentel da Fonseca, o meu major de Operações no CAOP 1 em Teixeira Pinto e Mansoa.
Um sobrinho dele viu o blogue e já está, o coronel Pimentel da Fonseca do outro lado da linha telefónica.
Tem 77 anos, vive em Lisboa e, trinta e sete anos depois, vamo-nos encontrar um destes dias para pôr toda a conversa em dia.
Maravilhas do blogue do Luís Graça.

Luís Graça disse...

O António no seu melhor. Isto é: o António e o nosso blogue no seu melhor. São histórias, destas, de antologia, que ficam para a história dos nossos verdes anos no TO da Guiné. E essa ninguém nos pode tirar. Que a História com H Grande, que fiquem com ela os senhores historiadortes, os senhores importantes, os manda-chuva, os reis, as raínhas, os presidentes, os generais, os líderes políticos, os golpistas de Estado... Nós aqui fazemos história com h pequeno. É o único privilégio (?) que temos e que reivindicamos...

O resto é a pólvora seca das nossas diatribes, controvérsias, zangas, altercações, discussões mais acaloradas, etc., a que também temos direito!

Nem heróis nem cobardes. Tínhamos 20 anos e muita adrenalina. E fazíamos coisas que hoje não faríamos... justamente por que já não temos 20 anos... Nada que nos envergonhe, é certo, coisas de pouca monta, comportamentos que alguns classificarão de bravata, burrice, estupidez, inconsciência, imaturidade... Arre, que o mundo está cheio de moralistas, avaliadores, justiceiros!...

Tudo isto para dizer que achei deliciosa a história do António, que estava farto de andar no (e não na...) DO-27 e nos Fiat, ou seja, nas nuvens... E que um dia também foi no bote... Um direito que assiste a qualquer mortal. Olha, eu nunca anda no bote dos fuzos, em contrapartida, andei de piroga(no Geba)... E também, confesso, que quando andava no meu meio natural (tarrafo, savana arbustiva, floresta-galeria, bolanha, lala, tabanca, mancarral...), feito tropa-macaca, também não gostava de ver o DO-27, às voltinhas, concêntricas, por cima das nossas cabeças, com o major de operações, a dar-nos força anímica... São pontos de vista, de quem está em pontos/postos de observação completamente diferentes... Vista da antiga estrada do Xime-Ponta do Inglês, ou do tarrafe de Caboiana, no Cacheu, a Guiné era muito menos divertida e securizante... Percebo o que um camarada Pilav podia sentir num bote de um fuzo, da mesma maneira que um fuzo, no ar: nenhum deles estava no seu meio natural, na sua "área de conforto (psicológico)", como sói dizer-se agora... Era por isso que a guerra se ganhava (ou se perdia) por ar, terra e mar... Se calhar ainda é assim, ou já talvez não...

Parabéns, António, acho que ganhámos mais um grande contista! Espero que fiques agora a gozar as delícias do sistema... Que venham pelo menos mais cinco (histórias) que é para a gente abrir uma série só para ti... (Que a FAP já é um albergue espanhol, sem ofensa para ninguém, os camaradas e as camaradas que lá se alojam)...

Um Alfa Bravo. Luís

PS - Não sei como vais descalçar a bota... de fuzileiro. O ditado diz: "Fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre"... Em que é que ficamos ?

Luís Graça disse...

Eu queria dizer: António, espero que NÃO fiques agora a gozar as delícias do sistema, depois de tantas críticas (literárias) favoráveis... Isto é, espero que não fiques, como o outro António, à espera de receber a notícia do Prémio Nobel da Literatura pelos jornais...

Anónimo disse...

Gostei muito.
Apreciei este ponto-de-vista do AR a ver a ÁGUA e o SOLO... no chão.
Por outro lado, vi como funcionava o PCV a comandar lá de cima ("Ó homem não vejo onde está a dificuldade de atravessar esse riozinho!").
Assim, também, o PCV via os tarrafos e outros obstáculos.

Parabens.
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Caro António Matos,
Fizileiro por um dia, mas pelo que li, valeu a pena.
Bela história, muito bem contada, se fizileiro por um mês, como seria?
Abraço
Filomena

Anónimo disse...

Peço desculpa, não sei como, mas fuzileiro, saiu-me "fizileiro". Deve ser da idade.
Filomena

Anónimo disse...

Camarigos
Quando estava no CIM de Bolama, travei amizade com um sargento Fuzo do Destacamento de Bolama, Passei a frequentar as instalações e a andar nos petiscos.Por exemplo comer um cabrito (não era cabrito pé de rocha) assado no forno às 1,30 h da matina, regado com as "81" não cabe na cabeça de ninguêm.É claro que tambem andei nos "Zebros", aquilo dá cá uma "pica"...
Abraço
Luís Borrega

Anónimo disse...

Bolas, já pusemos a pata na poça: chamar bote a um zebro é capaz de ser tão insultuoso para um fuz como chamar barco a um navio da marinha... Barco só de pesca, dião os nossos marinheiros que, em boa verdade, não páram cá muito, na Tabanca Grande, talvez por ser terra firme... Não sei, especulo... E quem especula, pula..

Luis Graça