domingo, 24 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7168: Notas de leitura (161): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Não é à toa que digo que a leitura deste livro de Hélio Felgas nos teria feito muito bem a todos, os que fomos para a Guiné depois de 1967.
Nada sabíamos, não havia uma base escrita sobre o estado da guerrilha e as suas motivações. Como é evidente, Felgas escreveu uma obra para ressaltar uma resposta militar portuguesa que foi muito menos briosa e consistente do que ele apregoa. Porém, nada se escreveu de mais abrangente e com tanto pormenor.
Não sei como é que é possível termos andado arredados deste texto capital.

Um abraço do
Mário


Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (1)

Beja Santos

Era o livro que eu gostaria de ter lido quando fui para a Guiné. O tenente-coronel Hélio Felgas publicou através do SPEME – Secção de Publicações do Estado-Maior do Exército, a sua visão dos acontecimentos da guerra da Guiné, desde 1961 a meados de 1965. Escreve: “Do lado do inimigo procuraremos descrever como começou o terrorismo em 1961, no noroeste da Província. Como se reacendeu naquela área no princípio de 1963, altura em que também iniciou as suas actividades no sul, de onde, em Julho seguinte, alastrou para as florestas do Oio, ao norte do Geba. Como se estendeu à área de Farim em Janeiro de 1964 tentando depois infiltrar-se para leste e para oeste. Como penetrou no Gabu, no nordeste da Província, em Agosto de 1964 e apareceu no Boé, a sudeste, no final desse ano. Como procurou chegar à área dos Manjacos, a oeste, em Novembro de 1964.

Do nosso lado focaremos como, quer em 1961 quer em 1963, dominámos por completo o terrorismo no noroeste da Província. Como procurámos deter as suas numerosas infiltrações nas outras áreas da Guiné, enfrentando no final de 1963 e na primeira metade de 1964 uma situação de certo modo difícil. Como começámos assentando uma malha de ocupação militar apertada e eficiente. Como obtivemos o concurso da quase totalidade da população. Como no final de 1964 eliminámos fulminantemente a infiltração do inimigo no sector dos Manjacos. Finalmente, como pouco a pouco, fomos dominando a situação militar nos outros sectores, obrigando o inimigo a afastar-se cada vez mais para as áreas fronteiriças”.

Como não podia deixar de ser, trata-se de um livro apologético escrito por um oficial com provas dadas no terreno e na escrita (um elevado número de artigos sobre o Congo ex-Belga, problemas africanos em geral, Timor e outros). O primeiro capítulo é dedicado à apresentação da Guiné (esboço histórico, clima fauna e flora, terra e população, vilas e cidades, meios de comunicação, aspectos históricos). A obra ganha realmente interesse no segundo capítulo dedicado aos grupos políticos clandestinos. Pela primeira vez, um oficial do Exército registava num documento público a constituição de grupos políticos emergentes na Guiné, com os ventos da descolonização: Movimento de Libertação da Guiné (MLG), com sede em Dakar, foi de facto no Senegal que se acolheu este grupo como outros, caso da União das Populações da Guiné (UPG), a União Popular para a Libertação da Guiné (UPLG), o Rassemblement Démocratique Africain de la Guinée (RDAG) e a União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP). Como o tempo veio a demonstrar, a despeito das muitas tentativas de Senghor crer ver impulsionado um partido genuinamente guineense e não marxista, a generalidade destes grupos limitavam-se a um grupo directivo, decorativo e imaturo, tudo pequenos funcionários ansiosos por ter uma oportunidade de chegar ao poder. O que tinham em comum era crerem “a Guiné para os guineenses” e bastou este motivo central para entrarem em conflito insanável com Amílcar Cabral e o PAIGC. Hélio Felgas chega mesmo a falar em Benjamin Pinto Bull e a sua UNGP, mas não adianta nada sobre as conversações pessoais ditas com Salazar. Do conjunto destes grupos veio a distinguir-se a FLING que virá a funcionar como chapéu-de-chuva da maior parte dos grupos que com o tempo se irão dissolvendo. O MLG considerava-se como continuador da efémera Liga Guineense, constituída no início da República e que procurou zelar por condições de prosperidade e de impulso económico da região. O MLG era a favor de Guiné constituir um Estado federal de Portugal, ideia que não vingou. Na sua propaganda, o MLG manifestava um conflito permanente com os cabo-verdianos a quem atribuía o propósito de quererem dominar os guineenses. Não desprezando a ideia de uma cooperação com o PAIGC era radicalmente contra a união Guiné – Cabo Verde. O seu dirigente era um Manjaco que falava só francês, François Mendy. É o MLG quem irá praticar os primeiros actos de terrorismo em São Domingos, Susana e Varela, em Julho de 1961. Estas escaramuças não tiveram continuidade e aliás a população guineense recebeu-as, de um modo geral, com repúdio, quando assaltaram Varela tudo pilharam e vandalizaram.

A FLING teve núcleos na Guné Conacri, levando para aqui os seus conflitos com o PAIGC. Amílcar Cabral foi forçado a uma atitude de persuasão junto de Sekou Touré para retirar apoio à FLING. Chegou a participar em reuniões promovidas pela Organização da Unidade Africana, mas acabou por não ter continuidade e muito menos desenvolveu uma linha militar. Também Senghor quis apoiar a FLING, chegou mesmo a autorizar a instalação de um campo de treino em Kolda, a poucos quilómetros de Cuntima (Colina do Norte). A irresponsabilidade e a pesporrência liquidaram internacionalmente a FLING. O seu presidente chegou ao atrevimento de declarar que “de Bissau a Catió, de Mansoa a S. Domingos, de Bolama aos Bijagós, de Barro a Xitole, passando por Farim, Bafatá, Bambadinca, não há um palmo de terra guineense onde os habitantes não sejam um militante ou soldado da FLING”. Seja como for, a FLING teve audiência até 1965, entrou depois na obscuridade, isto enquanto o PAIGC era alvo de uma progressiva consideração nos fóruns internacionais.

O PAIGC teve um percurso distinto. Criado em 1956, dota-se de uma estratégia em 1960 (então ainda com o nome de PAI) prepara militares nas academias chinesas, mantém um elevado esforço de aliciamento ideológico graças a personalidades como Rafael Barbosa. O secretariado do PAIGC instala-se em Conacri, é nesta República que começam a chegar os primeiros armamentos que vão sendo transferidos para o interior do território. O PAIGC notabilizou-se por ter impulsionado uma federação de movimentos de libertação das colónias portuguesas. Aliás Cabral terá um papel preponderante na história do PAIGC. As tensões entre o PAIGC e o Senegal foram muito difíceis durante anos. Desde muito cedo que Cabral se lançou nos areópagos internacionais ido obter apoio não só em diferentes países africanos como junto da China comunista, primeiro, e da União Soviética e dos seus aliados, depois. Confundindo as autoridades militares portuguesas, as primeiras incursões do PAIGC na Guiné-Bissau não foram junto das fronteiras mas no interior. Tudo começa em Tite, em Janeiro de 1963, nessa altura a região Sul estava significativamente madura para apoiar o PAIGC, os seus grupos foram sistematicamente destruindo os meios de comunicação, isolando os quartéis portugueses.

O capítulo terceiro é dedicado aos actos de subversão até ao final de 1973. É um relato detalhado sobre tudo quanto se passou na região Norte, envolvendo o MLG. Hélio Felgas descreve a situação do Sul, a partir de 1963, deixando bem claro que os guerrilheiros se apropriaram do terreno. Descreve-os assim: “Estes bandos inimigos não diferiam essencialmente dos utilizados no noroeste da Província pelo MLG. Eram formados por um núcleo de uma dezena de indivíduos armados de pistolas-metralhadoras, pistolas, caçadeiras e granadas de mão, rodeado por uma centena ou mais de Balantas e Nalus dispondo apenas de armas gentílicas e de espingardas roubadas aos nossos cipaios. Cada um dos elementos do núvcleo tinha ao pé de si três ou quatro nativos com a missão de lhe apanharem a arma ou recolherem o corpo, caso ele fosse ferido ou morto”. Outros relatos posteriores levaram a desmentir este tipo de actuação, mas a verdade é que o PAIGC nesta altura não dispunha de bazucas e morteiros, iniciara-se com armamento ligeiro e com a implantação de minas.

Este importante livro foi-me emprestado pelo António Duarte Silva, a quem devemos alguma da melhor investigação que se faz presentemente sobre a Guiné.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7160: Notas de leitura (160): Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

"Também Senghor quis apoiar a FLING..."

A FLING se existiu como formacao nacionalista guineense deve sim muito ou senao tudo, a Senghor!

Nelson Herbert
USA

Anónimo disse...

"Também Senghor quis apoiar a FLING..."

A FLING se existiu como formacao nacionalista guineense deve sim muito ou senao tudo, a Senghor!

Nelson Herbert
USA