terça-feira, 13 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9601: Nós da memória (Torcato Mendonça) (14): O percevejo e o flautista - Fotos falantes IV

Mansambo > Foto falante 36 - IV série






1. Texto e Fotos Falantes (IV Série) do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória".






NÓS DA MEMÓRIA - 14
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

10 – O Percevejo e o Flautista

Foto a merecer legenda mais alongada.
Nela já se vêem bem os balneários, a zona de protecção ao poço e parte de um abrigo caiado de branco. Esse pormenor é que motivou esta recordação.

O abrigo, em parte caiado de branco, e aquele lavatório eram um luxo. Recordar a importância que tinha para nós aquele poço, aberto muitos meses depois do início da construção do aquartelamento, e os balneários. Antes toda a água vinha da fonte e os banhos eram lá tomados e com segurança à volta. Não só por uma questão de segurança mas, isso sim, porque era muito mais natural a higiene ser feita assim com normalidade. Além disso, quase toda a água vinha dali e tinha qualidade.

Aquele luxo, de uma bacia de plástico colocada em cima de uma cadeira e o fundo de branco caiado, ficou a dever-se aos percevejos. Não era um local qualquer. Na metade daquele abrigo em L era o comando, messe de oficiais e sargentos, bar, centro de convívio e muito mais. Parece é um espaço exíguo. Pois com certeza que podia assim considerado mas, com engenho e boa vontade virava a Salão Diamante. Até um frigorífico a petróleo tinha, com um contra. Este frigorífico tinha um vidro circular a proteger a chama. Se os obuses 10.5 trabalhavam e o vidro não tivesse sido retirado, ia para o caneco. Uma maçada.

Porque apareceu ali uma parede caiada? Devido a uma praga, a uma infestação de percevejos.
Apareceram silenciosamente. Viajaram, um dia, em alguns velhos colchões de palha que acompanhavam, indevidamente, digo eu agora, os verdes colchões de espuma.

Em pouco tempo, devido a um afrodisíaco qualquer ou porque eram mesmo assim, reproduziram-se e espalharam-se pelos abrigos. Instalaram-se nos buraquitos dos blocos de cimento, nas camas, mosquiteiros e onde lhes fosse mais confortável. Eram os senhores dos abrigos.

Não era nada confortável, para os humanos, a partilha do espaço. Eram bichos de ataque nocturno, para isso já tínhamos os mosquitos e outros bem mais fortes para lá dos arames. Estes, os percevejos, sugavam o sangue. Eram esmagados facilmente. Só que o cheiro a coentros e a pasta deixada era incomodativa. Aberta uma luz rapidamente desertavam. Curta deserção pois voltavam ao ataque mal a escuridão voltasse. Uns sem vergonha.

Para conter ou acabar com ataques sugadores vieram gentes peritas em desinfestações. Foi uma balbúrdia mas a bicharada desapareceu. Parecia, se bem me lembro, um milagre. Como isto de milagres é controverso ainda pensei que tinha sido alguém que atacara pela calada. Porque não, como na lenda, um Flautista de Hamelin e, á falta de ratos – que os havia mas fazendo parte da mobília – tocara o Flautista a sua flauta e os percevejos atrás dele caminharam até á fonte ou acampamento IN. Porque não?

O interior dos abrigos foi bem caiado. Certamente sobrou cal, para futura eventualidade de regresso de tão incómodos bicharocos. Foram então caiados alguns locais mais. Os menos visíveis, claro, ou tínhamos alvos para alinhamento de pontaria IN. Para isso já bastava a enorme árvore por onde eram alinhadas as armas pesadas, sem grandes resultados depois dos 10.5.

Eu vos digo que a cal tornou tudo mais bonito. Pareciam casas. Só as víamos em Bambadinca ou Bafatá, principalmente em Bafatá. Casas com portas e janelas, de branco e outras cores pintadas e com homens, mulheres e crianças. Gentes com sorrisos e vestidos com roupas de cores diferentes do verde-azeitona ou do camuflado.

Eu vi também muitas em Bissau quando ia de férias. Desanuviava e ria feliz. Mas questiono eu? E os soldados que não tiveram essa oportunidade e estiveram 23 meses no mato? Um fulano ficava atormentado ou pior.

Não será assim?
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9582: Nós da memória (Torcato Mendonça) (13): Mansambo - Fotos falantes IV

12 comentários:

Juvenal Amado disse...

Caro Torcato

Felizmente em Galomaro foi bicharoco que nunca vi. Em Coimbra em Sta Clara (convento) onde recebi a recruta foi uma praga. O cmarada Sapateiro um rapaz da Calvaria de Porto de Mós foi atacado de tal maneira que teve que receber tratamento para os enormes borbulhões que tinha pelo o corpo todo.
A meio da recruta tivemos uma prenda que foi camas novas com colchoes de espuma e os bichos acabaram por desaparecer.
Mas na Guiné tivemos outros hospedes igualmente complicados. Falo dos lacrau que se metiam dentro das botas e nas barrocas de pó. Quando se passava com os chinelos de espuma aquela agulha venenosa fazia o seu trabalho. Bom as dores eram atrozes.

O que nós nos vamos lembrando!!!
Um abraço

Rui Silva disse...

De percevejos e quartos de banho "à Lagardère" também tenho muito para dar. Tudo na tropa, cá e lá.Percevejos, no antigo Reg. Cav. 5 em Aveiro, mais conhecido por Quartel de Sá. Após pernoitarmos na camarata para cabos milicianos era quem mais se coçava ao outro dia.
"Mas o que é isto?" Uma análise mais cuidada verificamos que nas cantoneiras de ferro de que eram feitas as camas formavam-se filas (efeitos de disciplina militar para aqueles lados?)de percevejos e aos montes. Pareciam caranguejos de 2-3 mm. cheiinhos de sangue. Sim, do nosso.
O procedimento foi de distribuir creolina por todo o lado. Foram os percevejos mas ficou o cheiro pestilento da creolina dutante uns tempos. Ali visto, ali deixado. Safa!
Bom o melhor foi arranjar um quarto cá fora.
Sobre quartos de banho, isso conheci (e utilizei durante umas 3 semanas) em Uaque, um abrigo feito no meu tempo e que se destinava a guardar a ponte ali pertinho de Mansoa.
Mas eu descrevo o "luxo":
Não era de 5 estrelas, mas sim de muitas; era só olhar para o céu e estas eram aos milhares. Retirado do abrigo aí uns vinte metros, um caibro ao alto, uma travessa de madeira a fazer de galho onde se dependurava um bidão (dos de 25L)e então, soldado na parte de baixo daquele, um tosca pinha (tubo em cone com furos)A água (pode-se chamar assim) era a das poças por ali perto.
Enchia-se à mão e pendurava-se o bidão. Se não chovesse a água era sempre...a mesma e às vezes já com sabão reciclado.
Mas era fresca.
Ai tropa, tropa; ai Guiné Guiné, que me deste tanto a conhecer o mundo e a passar por elas. Foi como que umas Novas Oportunidades.

Recebe um abraço caro T.

Rui Silva

Carlos Vinhal disse...

Não precisei de ir à Guiné para sentir na pele os efeitos dos percevejos. Em Tancos, no meu curso de minas e armadilhas, eram às toneladas. Acabaram por queimar os colchões na Parada.
Na Guiné não me lembro de ver essa fauna. Cobras, lagartos e ratos no quarto, isso sim. Mosquitos também, já me esquecia. Passarinhos a fazerem ninhos mesmo na direcção da cama, também. Que felizes éramos em comunhão com a natureza.
Carlos

Luís Graça disse...

(P…, carreguei na tecla errada, e foi-se o comentário para o maneta… Tento reconstituir o que estava a escrever, mas desta vez, primeiro em word, por uma questão de segurança… depois, faço “copy & paste”)

Belo tema, belo texto, camarada… Quero eu dizer, oportuno... As questões da saúde pública militar, no TO da Guiné, incluindo a higiene pessoal do pobre tuga, não têm aqui sido abordadas com a extensão e a profundidade que merecem…

Já aqui falámos de doenças (por ex.,o Rui Silva), mas não tanto da higiene ambiental… nem das medidas de profilaxia e de combate às doenças.

Qualquer um de nós, sobretudo a malta que vivia como homem-toupeira nos Bu…rakos da Guiné, pode falar “ex cathedra” desta bicharada toda , aqui talentosamente e de maneira bem humorada evocada e enumerada pelo Torcato… Não precisamos de ser médicos nem enfermeiros...

Ele fala do que sabe porque viveu, em “bunkers”, em Mansambo, tal como o Idálio Reis em Gandembel, e a maior parte dos operacionais, no mato… A grande maioria dos nossos aquartelamentos e destacamentos eram parecidos com os bairros de lata, eram construções provisórias, que se iam aumentando e melhorando à medida do “periquito” que chegava…

Ao fim de seis meses, a malta acomodava-se, passava a considerar-lhe “velhinho”, baixava as guardas, baixava as expetativas, reduzia o nível de exigência e de conforto, e até de dignidade humana, já estava por tudo, aceitava tudo qual condenado á morte…

Viver meses e meses, dormir, comer, descansar e combater debaixo de terra… ou em posições semi-enterradas como eram boa parte dos nossos abrigos, traz consequências sérias para a saúde (física e mental) de um ser humano…

Em Bambadinca, onde eu dormia (sempre que não ia para o mato…), não me podia queixar: as instalações eram novas , arejadas, pintadas de branco, construídas pela engenharia militar… Ainda não se tinham degradado… O supremo luxo, para além da messe e do bar (sempre bem fornecido), eram os balneários com duche, mesmo que a água fosse “ferrosa”… O pior é quando se ia para o mato: operações, emboscadas, destacamentos, autodefesas, colunas logísticas…

O “destacamento” do Rio Udunduma era constituído por trincheiras como na I Guerra Mundial… O de Nhabijões era um pouco melhor… A missão do sono era era o foco de doenças...

Nas tabancas em autodefesa (onde chegávamos a passar duas semanas) tínhamos que nos habituar às fracas condições em que viviam os seus habitantes… Mas o pior, para mim, ainda era o mato puro e duro: as abelhas, as formigas bagabaga, os mosquitos… Sem esquecer as cobras, as víboras, os escorpiões: um dia apanhei um cagaço do caraças, quando acordei, junto a uma árvore, com uma cobra (ou víbora ?) a um palmo da minha cara…

Tema a desenvolver!... Parabéns, camarada, por desatares mais este nó da nossa dorida memória… LG

José Botelho Colaço disse...

Todos esses insectos a começar pelas ma-tacanhas estavam treinados como a guerrilha atacar sempre de surpresa. Escolham o melhor, ou o pior? (Eu opto pela abstenção).

Um alfa bravo.
Colaço

Anónimo disse...

Para além das formigas que corriam direitinhas aos tétés a cada vez que tinhamos de rastejar ou não, foram mesmo esses bichos cariquitéticos dos percevejos que mais me afligiram. Em Junbembem colocavamos em cada pé de ferro da cama uma lata de fruta cheia de óleo queimado para que eles não pudessem subir para os ferros da cama, mas antes tinhamos de queimar bem os ferros para ter a garantia de que a cama estava limpa.
Quando fui de Bissau para Farim tive de aguardar 2 ou 3 dias para haver coluna para ir para Junbembem. Como em Farim era "estrangeiro" a unica coisa que me arranjaram para dormir foi um barracão que nem porta tinha e onde eram guardadas camas velhas, colchões e outro lixo. Lá arranjei uns ferros e um colchão para dormir. Mosquiteiro não tinha. Como o sono era muito lá consegui adormecer... Quando acordei vi-me rodeado de milhares de percevejos. Sem saber o que fazer peguei numa tábua das caixas das batatas e fui matando os que pude numa luta muito desigual.

Como alguém já disse, do que nós nos lembramos...!

Artur Conceição

Anónimo disse...

"Aberta uma luz rapidamente desertavam. Curta deserção pois voltavam ao ataque mal a escuridão voltasse. Uns sem vergonha"...

Havera porventura melhor descricao do 'modus operandi" dos percevejos ou DABI (no criolo da Guine) do que essa ???

Se nem os "bancos-cadeiras" do unico cinema de Bissau, estavam imunes a tal bicharrada...imagino la nos confins...

Como bem diz o Torcato...adoravam os colchoes de palha !

Mantenhas

Nelson Herbert

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

O Torcato faz-nos lembrar de cada coisa....

Os malditos percevejos parece que existiam de propósito nos quartéis 'de cá' para habituação dos 'de lá'.
Mas eu, por cá, não me queixo muito.
Em Santarém, na EPC, tudo bem. Em Lisboa, no BT, houve um probleminha inicial mas resolvemos logo no dia. Em Tancos tive mais sorte que o Vinhal pois os problemas que tivemos foram outros que nada tiveram a ver com percevejos. E depois, no Porto, também tudo bem no quartel, embora o mesmo não se passasse num quarto que o pessoal alugava quase em frente ao quartel para muda de roupa e às vezes cair na asneira de (tentar) dormir pois aí a 'bicharada' era tanta que parecia que pegavam num tipo e o deslocavam para fora da cama...

Na Guiné, também não me queixo, relativamente a percevejos.
Mosquitos, formigas, osgas, lagartos, cobras, sapos, baratas (tive uma, de 'estimação', que cismou em visitar diariamente o copo de dentes, onde ficava a escova), coisas assim, devo ter tido sorte, se bem que a lavagem desinfectante semanal com a creolina (cujo cheirinho incomodava o Rui Silva..) possa ter contribuído para esse 'ganho' de higiene....

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Ah..meus desgraçados

Voceses nem vos passa pela cabeça ao que estavam sujeitos na altura(nem eu).
Bactérias, fungos e parasitas
Intra e extra corpóreos.
Schistossomiasis,tripanossomiasis e outra asis.
Tracoma e outros omas.
Plamodiums (vários) o mais perigoso falciparum.
Hepatitis e outras itis.
Cobras (não há víboras)todas venenosas umas mais que outras,excepto a célebre gibóia, que matava por constrição.
Até há um peixinho minúsculo em águas doces paradas (pois as bolanhas) que vos podia entrar no respectivo instrumento quando urinavam (não estou a brincar).
Sanguessugas e outras ugas.
Porra ..estou a ficar cansado.
Querem que continue ?
Eu que sempre tive medo..medo !!!
Bem desprezo pelos repteis em geral, quase todos os dias matava uma cobra à porta do meu abrigo..então os meus soldados tinham pavor (há um receio ancestral generalizado em África de tudo o que seja cobras..eles sabem porquê..quem for mordido tem o destino traçado..e às vezes com mortes horríveis).

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

PS
Há uma história que se passou no sul de Angola, zona endémica de schistossomiasis (parasita que se aloja na bexiga).
Uma mãe resolveu levar o filho ao médico militar, porque este não urinava vermelho (sangue) como todos os outros.
Claro, era o único que não estava contaminado.

C.Martins

Anónimo disse...

Caros amigos,
…e nenhum de vocês passou pelo antigo BII19 no Funchal. Um exército temível de pulgas e percevejos patrulhava dia e noite a camarata dos Cabo Milicianos. Fugi cobardemente, acreditem, para uma casa particular.
Na Guiné, mais propriamente no Destacamento de São João, um dos edifícios estava infestado com morcegos. Dois quartos eram reservados aos furriéis que chegavam de novo.
Todos os dias tinha que virar o mosquiteiro e varrer o chão para encontrar o cimento. Bem bom que dormia de bruços e ao tempo não ressonava. Um dia, um pequeno incêndio nas traseiras do edifício fez penetrar muito fumo nos quartos. Remédio santo! Na retirada estratégica pudemos observar milhares de mamíferos orelhudos e voadores. Desapareceram, não mais voltaram. Dez meses depois de ter entrado naquelas instalações o cheirete a urina dos ditos ainda enjoava.
Ao Torcato,
Obrigado por nos teres feito recuar no tempo e recordar este tipo de emboscadas e patrulhas. Também fizeram parte da nossa vivência.
Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

Camaradas e amigos.

O Juvenal bateu no ponto certo.
Convento de Santa Clara a Nova, RAL 2.
Aí SIM!
Sargento da Guarda, que fiz, PERCEVEJO sempre.
E VAMPIROS em FÁ Mandinga pendurados no tecto?
E Sardões e Ratazanas em Mansambo?
Etc...
Mas também havia leitão desviado perante "pagamento" às tabancas Balantas.
E cabritos a caminho de Bafatá que se metiam no caminho e os condutores distraídos atropelavam?
FORMIGAS e ABELHAS não !!!!
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