1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2014:
Queridos amigos,
Trata-se de um livro que não fez história mas que tem mérito de ajuntar os dados sobre as manifestações teatrais na Guiné, antes da independência, fazendo uma leitura de que o teatro africano é um compósito de instrumentos musicais, dança, representação e narrativa.
Escrito por Carlos Vaz aos 24 anos, é um manifesto de pendor revolucionário, tem a candura de fazer propostas de impossível execução como a criação Teatro Nacional Popular da Guiné-Bissau, uma ferramenta básica para a cultura guineense e para a didática revolucionária.
Para que conste, pois é matéria que merece registo.
Um abraço do
Mário
O teatro na Guiné-Bissau: Antes e depois da independência
Beja Santos
“Para um conhecimento do teatro africano”, por Carlos Vaz, Ulmeiro, 1978, é um título de apresentação das manifestações teatrais sobretudo na chamada África Ocidental, debruçando-se, à guisa de proposta, para a organização de um Teatro Nacional Popular da Guiné-Bissau. O autor é Carlos Vaz que viveu até aos 16 anos em Bissau, veio para Portugal e foi bolseiro da fundação Gulbenkian. Fez o Curso de Formação de Actores na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa. Frequentou ainda cursos de cinema e de interpretação dramática das canções de Brecht. Remete-se os interessados para os elementos constantes no Google onde Carlos Vaz é referido como ator, argumentista, realizador e produtor.
Trata-se de um livro da juventude, carregado de jargão revolucionário, cheio de propostas generosas para a profissionalização na área teatral na jovem Guiné-Bissau. Em traços grossos, recorda-nos que as primeiras manifestações de caráter teatral em África têm a sua origem no animismo e na magia, e numa estreita associação com ritos, cerimónias e cultos. Não surpreende que a expressão teatral envolva a dança, a narrativa oral e a música instrumentada. Não esquecer também que os artistas tradicionais, os djidius, e os narradores-atores ou griots, são cantadores de histórias, autênticos menestréis, daí ser possível a música (de corda ou percussão), o bailado e narrativa gerarem uma atmosfera canalizada para a criação artística de pendor teatral.
Carlos Vaz resume o teatro da época colonial francesa e centra-se depois na Guiné. Observa que em meados de 1930 se instalou o teatro à maneira italiana sob a direção de Henrique de Oliveira (este teatro teve lugar em Bissau no barracão da Casa Gouveia). Mais tarde, veio a aparecer outro grupo sob o impulso de António José Flamengo, subgerente da Casa Guedes, e que trabalhara já em Portugal como ator na área da revista. Era um teatro ao agrado da elite urbana, como se pode ver da canção utilizada na revista “Chega-lhes qu’inda mexem!...”
E a Guiné progride,
Torna-se mimosa,
É entre as colónias,
Um botão de rosa.
Pequenina e fértil,
Linda sem igual,
É título de orgulho
Para Portugal.
Os temas dos espetáculos eram extraídos do quotidiano: crítica social dos que iam buscar mercadorias aos comerciantes e ficavam a dever, sátiras alusivas à falta de arroz, do “flit” (produto para combater os mosquitos), à falta das careiras aéreas, etc. O autor refere mesmo denúncias a missões de estudos que não cumpriam as tarefas que lhe eram confiadas, limitando-se apenas a gastar o dinheiro da Guiné portuguesa. O ator encenador Flamengo classificou este teatro de “revista africana de fantasia e crítica social”. Para além do teatro-revista houve ainda a realização de teatro infantil com temas baseados nos contos tradicionais da Guiné. Havia igualmente saraus de arte, representação de comédias como D. Ramon de Capichuela, de Júlio Dantas. Eram representações no museu da Guiné que depois transitaram para o salão de festas do Sport Lisboa e Bissau. Há ainda uma referência a um grupo de teatro de Bolama que ganhou notoriedade entre 1959 a 1961, tinha a direção de Porfírio Costa, mais conhecido por Alansó. Faz-se igualmente menção ao bailado dos Bijagós, apresentado em terreiros em que os bailarinos ao som dos tambores se apresentam caraterizados com as faces pintalgadas de alvaiade e de zarcão, vestidos com saiotes de ráfia, ostentando na cabeça caraças de boi ou capacetes multicolores.
Carlos Vaz descreve o magnífico teatro de S. Tomé que os seus textos de autores clássicos como o “Auto da Floripes” e a “Tragédia do Marquês de Mântua e o Imperador Carloto Mangano”, notabilizados pelo reputadíssimo “Tchilôni”. Depois de uma breve incursão pelo teatro angolano, dá-nos uma visão sumária do teatro contemporâneo nos países africanos de língua francesa. Por fim, com algum detalhe, esmiuça a sua proposta para um teatro didático africano ao serviço da revolução. Contraia a noção de que o teatro popular seja vulgar enquanto o teatro puro é sempre elitista, justificando que cabe aos artistas restaurar a verdadeira personalidade africana numa perspetiva revolucionária. Sugere o seguinte: organizar os grupos dispersos, ainda sem técnica do teatro moderno, mas com técnica tradicional herdada dos antepassados, num grupo devidamente especializada em técnica de teatro, que permita aproveitar as formas tradicionais desenvolvendo-as de uma forma nova e científica. Para Carlos Vaz, este teatro revolucionário seria um instrumento poderoso para as massas populares, uma frente de combate contra o obscurantismo. Haveria assim uma oficina de teatro orientado para a cultural popular, aglutinando todas as artes, seria imperioso condicionar o funcionamento do Teatro Nacional Popular a Centro Cultural da Guiné-Bissau. Graças a esta interligação, o ator estaria apto a fazer a escolha do seu estilo e dos objetivos que pretende atingir através do teatro. Apresenta mesmo um organograma pormenorizado para um teatro popular da Guiné-Bissau, com centro cultural de investigação e pesquisa, programa pedagógico, listas de colóquios ou seminários, uma direção teatral comportando atividades artísticas e atividades administrativas. Espraia-se, repete-se obcessivamente, sob o que deve ser um estilo revolucionário e popular, sob o teatro de esclarecimento como embrião de ampla cultura patriótica, científica e de massas, e postula mesmo: “Todos os artistas da Guiné-Bissau devem ir ao seio das massas, ir à fonte única, riquíssima, a fim de observar, estudar e analisar todos os tipos de indivíduos, todas as classes de massas. Atualmente o nosso povo encontra-se a baixo nível cultural, em consequência dos longos anos de dominação colonialista e por isso exige-se que a frente cultural seja um instrumento que lhes satisfaça as necessidades urgentes”. Tem também curiosidade ler os documentos em apêndice, uma análise do texto de Aimé Césaire e a descrição de uma experiência de teatro africano em Lisboa com o grupo 12 de Setembro, grupo de atores cabo-verdianos, trata-se de uma dramaturgia à volta da história da fome de 1947 em Cabo Verde.
Este livro de Carlos Vaz deve ser obviamente encarado como um momento de entusiasmo de alguém com então 24 anos que apostava na criação de uma escola de teatro para desfrute didático das massas, isto quando a República da Guiné-Bissau balbuciar as primeiras letras.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13716: Notas de leitura (640): “Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Beja Santos sempre à procura.
Gostei do entusiasmo deste jovem que pelas contas tinha 20 anos no 25 de Abril.
E como sabemos, como se pensava naquela data, que a partir dali "tudo era possível"
Mas fico com a ideia que este jovem estava a ler por livros muito diferentes aqui em Lisboa, dos livros que outros jovens de Bissau obtinham vindos de leste.
Este jovem deve estar um pouco desiludido.
É pena!
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