Septuagésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Resumo do dia onze
O dia tinha iniciado muito bem, pois no tal hotel onde
dormimos, com “preço de amigos”, trataram-nos com
uma dignidade um pouco fora do vulgar, pois além de nos
servirem um pequeno almoço para “pessoas ricas”, como
dizia a minha querida avó, ainda nos deram uma pequena
embalagem com comida para o resto do dia, desejando-nos,
“boa viagem” e que um dia iam visitar-nos na
Florida.
Cá fora caía aquela “chuva miudinha’, que nós quando
jovens dizíamos ser “chuva de molha tolos”,
estava tudo em ordem, tanto no Jeep, como na caravana,
tanques extras cheios de gasolina, muita água, tanto para
beber como para qualquer lavagem, na caixa frigorífica
ia muita comida, pelo menos daquela a que chamamos
“finger food”, ou seja, boa para se comer com os dedos,
não necessitando de prato ou talheres e GPS em ordem. Deixámos a cidade de Fairbanks, o nosso destino era o
norte, era o “Dalton Highway”, estava no nosso “roteiro”,
queríamos viajar nesta estrada, fazia parte do nosso
“projecto” que é uma estrada construída para ligar
Fairbanks e outras cidades com Prudhoe Bay, que não é
mais do que onde termina a célebre “Estrada
Panamericana”, onde também se pode ver o Oceano
Ártico, o “sol da meia noite” e, com uma certa frequência,
a “Aurora Boreal”, que fica um pouco ao lado do maior
campo de petróleo dos USA.
Tínhamos informação de que a estrada, que começa mais
ou menos a 100 milhas ao norte da cidade de Fairbanks,
na cidade de Livengood e, também é conhecida como
AK11, tem também mais ou menos 420 milhas de
distância, aproximadamente 25 por cento da estrada, tem
algum alcatrão, o resto é terra, lama e pedra, depende do
estado em que o último inverno a tenha deixado e do
sucesso das suas obras de reparação e, claro, do clima
que faça na altura.
No dia anterior, no Centro de Turismo, explicaram-nos que
a estrada era, “gravel, dirt or mud, depending on the
weather”, também nos disseram que era muito
recomendável que se carregasse quatro pneus extras, mas
quem não puder, que leve pelo menos dois, assim como
gasolina extra, para pelo menos 240 milhas. A estrada segue e foi
construída, quase naturalmente, sempre ao lado do
“Alaska Pipe Line”, que dizem ser um dos maiores
“pipeline systems”, em todo o mundo, que vulgarmente se
designa por oleoduto, com o diâmetro de 48 polegadas, (122 cm.), que
transporta o crude do óleo, por uma distância de
aproximadamente 800 milhas, (1287 Km.), com 11
estações de bombagem, desde o campo petrolífero de
Prudhoe Bay, até ao porto marítimo da cidade de Valdez, que infelizmente já tem sido notícia por diversos
incidentes durante a sua curta vida, pois começou a
operar por volta do ano de 1977 e, pelos diversos “leaks”
de óleo, derivado a alguns erros de manutenção,
transporte ou sabotagem e, até por aventureiros ou
caçadores mal intencionados, que disparam contra ele,
fazendo-lhe alguns buracos, apesar do seu sotisficado
sistema de vigilância.
Esta estrada, é uma das mais isoladas dos USA, tem
somente três povoações com algumas facilidades, ao
longo da estrada, que são Coldfoot, na milha 175,
Wiseman, na milha 188 e Deadhorse, na milha 414. Dizem que a gasolina está disponível na povoação de E.
L. Patton Yukon River Bridge, mais ou menos na milha 56,
e às vezes nas povoações que já mencionámos, de facto
havia na primeira povoação, pois era mais ou menos na
região do “Hot Spot Cafe”, que é como designam aquela
região, por haver por ali alguma civilização.
Até à cidade de Livengood, com chuva miudinha e algum
nevoeiro, fomos seguindo, era alcatrão, passámos a
cidade, tomando o desvio do norte, onde já havia alguma
terra e lama, eis-nos na frente da placa que nos indicava
o famoso “Dalton Highway”, já se fazia sentir o tal clima
“polar”, onde em uma pouca área de terreno pode existir
neve, chuva, granizo, nevoeiro, vento, algum sol, mas
sempre frio, muito frio mesmo. Nesta altura fazia alguma
chuva, com “abertas”. Parámos, esperámos por outros
veículos por aproximadamente uma hora, vinham alguns
camiões com atrelados, tanto para um lado como para
outro, mas veículos ligeiros ou caravanas não, decididos,
avançámos sozinhos. Depois de umas tantas milhas
encontrámos uma caravana abandonada, na beira da
estrada, talvez o eixo estivesse partido ou danificado, pois
a roda de trás, do lado esquerdo, estava em baixo e de
lado, continuava a caír aquela chuva miudinha, junta
com nevoeiro, mas, como já mencionámos, com algumas
“abertas”.
A estrada estava muito perigosa, com lama,
pedras, grandes buracos com água e, na região do “Hot
Spot Cafe”, mais ou menos na “Milha 60”, foi onde
chegámos, pois um pouco à frente estavam militares e
trabalhadores do “Alaska Pipe Line”, que logo nos
avisaram que se não levávamos equipamento de
sobrevivência, um novo conjunto de pneus, próprios para
esta perigosa estrada e, se continuávamos com a
intenção de seguir em frente com este estado de tempo,
era por nossa conta e risco e era muito difícil alguém nos
socorrer em caso de acidente, pois com este tempo,
viajando sozinhos, ajuda médica só era possível talvez na
povoação de Deadhorse ou na cidade de Fairbanks. Tudo
isto apesar de transitarem por dia nesta estrada mais de
uma centena camiões, alguns com três atrelados,
daqueles que não fazem manobra, que seguem sempre
em frente, cujas rodas “atiram” pequenas pedras e lama,
a uma distância que pode atingir meia milha, onde os
condutores profissionais, desses camiões, falando entre
si, dizem que esta estrada é para trabalhar, é uma via de
“trabalho”, não para passear, portanto os “turistas”, não
são, pelo menos para eles, muito bem vindos.
Viajávamos sozinhos, essa era a nossa maior dificuldade,
pois com este clima, frio e chuvoso e, não havendo outros
aventureiros que nos fizessem companhia, conformados,
aproveitámos a ajuda que essas pessoas nos deram,
nesta pequena estrada de lama, para voltarmos o Jeep e
a caravana no sentido do sul. Estando a pouco menos de 50 milhas do “Artic Circle”, a
tal latitude, 66° 33’, ficámos um pouco revoltados, vendo esta
oportunidade única de tocar na água do Oceano Ártico, ou
ver o “sol da meia noite”.
Queremos só mencionar um pequeno pormenor, quando
atingimos a região do “Hot Spot Cafe”, cuja latitude é, 65°
52’, foi o local onde nos distanciámos mais, da nossa
casa, na Florida, podendo dizer mesmo, que tínhamos
realizado metade da nossa “aventura”.
Vamos continuar, agora rumo de novo a sul. Com poucas
milhas andadas vimos um camião/tanque caído numa
ravina, com as rodas no ar, ainda rolando, com dois camiões
parados, que deviam já ter pedido socorros. Também
parámos, vieram dois helicópteros que iniciaram as
operações de resgate, sendo-nos mandado abandonar o local para facilitar as operações. Passando
de novo na cidade de Fairbanks, que fica mais ou menos
a 200 milhas de distância do local onde fomos avisados
pela primeira vez, sempre com chuva, nevoeiro e, de vez
em quando havia as tais “abertas”, o que nos fazia pensar
em voltar e, seguir de novo rumo ao norte, mas o “bom
senso” nos fazia seguir em direcção ao sul.
Assim continuámos sempre debaixo de chuva, “dia
miserável”, como é costume dizer-se, parando no “Denali
National Park”, onde se encontra o “Mount McKinley”, que
é a montanha mais alta da América do Norte, cujo nome
em língua “atabasca” é Denali. Este parque nacional foi
inicialmente criado no ano de 1917, com a designação de
“Parque Nacinal Monte McKinley”, apesar do cume
propriamente dito não estar incluído na área do parque,
desde 1976 que é considerado “reserva da biosfera”.
Nesta área, junto à estrada, é como fosse uma “amostra”,
do que existe nas redondezas, pois existem muitos
estabelecimentos de comércio, vendendo produtos
regionais, alguns feitos por nativos “esquimós”, vários
restaurantes e hotéis, alguns de luxo, os mais variados
artigos para turistas, que visitam o local. O parque de
estacionamento é em qualquer local onde não existam
árvores, seja mais ou menos plano e onde se entenda que
se possa sair, depois de alguma chuva ou neve, que é
frequente nesta zona. Nós, depois de estacionar, também
visitámos as lojas e comprámos algumas lembranças para
familiares, seguindo viagem, sempre rumo ao sul,
chovendo, com algum vento, mas sempre conduzindo
com alguma segurança. Viemos até à cidade Wasilla, já
perto de Anchorage, e como chovia, nem sequer
procurámos parque de campismo, com muita sorte,
dormimos num hotel da mesma rede, do que tínhamos
dormido na cidade de Fairbanks, onde estava lá o nosso
nome no computador, no tal espaço que dizia, “preço de
amigos”.
Este foi, um dos dias mais duros da nossa viagem, o
clima dificultou e, “tocou” um pouco, os já “velhos” nervos
do nosso corpo, chegando por alguns momentos a
questionar o nosso pensamento, porque nos metemos
nesta aventura, mas, “como quem corre por gosto, não
cansa”, continuámos, percorrendo 687 milhas, com o
preço da gasolina, variando entre $4.27 e $4.38, o galão,
que são aproximadamente 4 litros.
Tony Borie, Agosto de 2014
____________
Nota do editor
Último poste da série de 11 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13719: Bom ou mau tempo na bolanha (69): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (10) (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Amigo Tony
Desta vez acho que a aventura foi perigosa.
Essa estrada e seus ocupantes profissionais não parece ser nada fácil.
Funcionou o 'plano B', que é uma coisa que faz sempre falta nestas situações e dá muito jeito.
Já agora, porque é que foram tão bem tratados no tal hotel com "preço de amigos", a ponto de sentires a necessidade de o referir?
Porque sabiam no que vos iam meter? Por acharem 'exótico' pessoas do sol, do sul, da Florida, andarem por aquelas zonas? Por terem sabido que os 'aventureiros' eram 'portugas'?
Abraço
Hélder S.
Olá Hélder.
Bom dia, meu amigo.
No local onde eu vivo, aqui na Florida, é uma pequena cidade, cuja maioria da população é composta por pessoas já de uma certa idade, que procuraram um lugar com algum sossego, para viver o resto dos seus dias, que trabalharam, e claro, viveram enquanto novos, em outras paragens. Por casualidade, durante um dia de pesca na praia, conheci um sujeito, que estava de visita aos seus pais, que vivem aqui na Florida, mas ele, vive, e é professor na universidade de Fairbanks, portanto tem lá a sua família, onde uma filha é parte da administração desse hotel, que nos ajudou, portanto, "já tinha ouvido falar em nós e, qualquer dia nos visitava na Florida", porque assim que ali chegámos, logo lhe telefonámos!. (continua)
Tony Borie
(continuação)
Só mais um pequena informação, que poderá ajudar os nossos companheiros, que se queiram aventurar lá pelo norte. A partir do "paralelo 48", que é como designam uma certa área, já bastante no norte, os preços dos Hotéis com alguma limpeza e facilidades, que ainda tenham vagas, porque normalmente estão cheios, com trabalhadores de reparações de estradas e outros equipamentos, (que só é permitido fazer na época de verão), ou turistas das companhias dos "cruzeiros", esses Hotéis praticam preços, para quem procura alojamento, principalmente a partir das 6 horas da tarde, que normalmente são entre, os trezentos e os quatrocentos dolares por noite, até mais!. Para quem anda por lá na estrada, nunca sabe onde pode chegar, ao anoitecer, ou quando se sente cansado, portanto não há a possibilidade de fazer marcações prévias, que com toda a certeza seria muito mais barato!.
Por tudo isto, levámos a nossa "caravana", que foi muito, mas muita "amiga"!.
Um abraço, Hélder.
Tony Borie.
Viva vizinho,
...Na tua resposta ao Hélder referes o preço dos hotéis. Com preços daqueles, até porque já sou pessoa de certa idade, acredito que ficaria bem melhor no quentinho da Flórida.
Claro que te acompanharei na viagem até regressares a casa.
Saúde.
José Câmara
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