1. Mensagem do nosso camarada Mário Vasconcelos (ex-Alf Mil TRMS da CCS/BCAÇ 3872 - Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72 - Mansoa, e Cumeré, 1973/74), com data de 9 de Outubro de 2014:
Do meu posto retransmissor, e por solicitação do camarada Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico, reencaminho a sua descrição sobre as colunas Galomaro-Saltinho, agora, isentas do pó e da ansiedade que sempre as acompanhavam.
Um abraço colectivo e as nossas saudações a todos.
Mário Vasconcelos
MEMÓRIAS DO DR. RUI VIEIRA COELHO*
10 - As recordações surgem e as saudades de todos os lugares e gentes também
Rui Vieira Coelho
Por várias vezes integrei a coluna de abastecimento à nossa Companhia do Saltinho. Era a mais longínqua da sede do Batalhão, a mais complexa sob o ponto de vista logístico e a mais difícil sob o ponto de vista operacional, pela quilometragem a percorrer, pela segurança às picadas por onde passávamos e pelo apoio até da Cavalaria com dois esquadrões, um das velhas Panhards e outro de Chaimites a escoltar a alternância de camiões Civis e Militares.
De Galomaro para Bafatá, lá seguia a nossa coluna por uma picada sobejamente conhecida por todos nós os da CCS onde transitavam diariamente colunas a nível de Grupo de Combate que faziam a ligação da sede com a localidade "Princesa do Geba", para trazer e levar Correio, peças e acessórios para a Ferrugem desempanar os Unimogs ou as Berliets avariadas, e para saborear um bom bife com batatas fritas no Restaurante das Libanesas regados com umas cervejolas bem geladinhas.
De Bafatá para Bambadinca e para o Xime já seguíamos enquadrados pelos Homens da Cavalaria, por uma estrada já asfaltada e o andamento era veloz e sem sobressaltos.
Um Grupo de Combate seguiu para o Xime a proteger dois camiões militares que foram carregar cunhetes de Munições e outro material militar como rações de combate, fardamento, armas, pneumáticos e material Rádio para comunicações.
O trabalho de descarga das barcaças vindas de Bissau processava-se com rapidez com as gruas do Pelotão de Intendência a transferir todo o material para os camiões, enquanto eu aguardava meditando por que razão estava naquele lugar, neste teatro de Guerra inimaginável a não ser por todos aqueles que como eu cumpriam o Serviço Militar Obrigatório.
O pior era depois de Bambadinca na picada para Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole, até ao Saltinho. A coluna ficava então medonhamente grande com mais camiões civis e militares carregados com mantimentos e elementos da população civil, aproveitando para se deslocar, para as diferentes Tabancas perto de Companhias e Destacamentos, dando até certo ponto um sentido de protecção e segurança de possíveis emboscadas, minas quer pessoais quer anti-carro.
A tensão visível nos rostos dos nossos camaradas e a apreensão com o imprevisto e o oculto, o inimaginável vindo de qualquer lado, com o empoeiramento vermelho do pó da picada que se entranhava por cima do fardamento, rostos e tudo o que se mexia, envolvidos por uma floresta de capim que não deixava ver um palmo à frente do nariz, o que aumentava a insegurança que todos vivíamos, uns mais que os outros.
E assim fomos até Mansambo, onde alguns carros civis e militares e o Esquadrão de Panhards da Cavalaria, nos abandonaram a caminho desta Companhia do Batalhão de Bambadinca.
A coluna ficava ligeiramente mais pequena, mas todos nós sentíamos-nos mais pequenos, mais sós, mais impotentes, sem nada dizer a nossa expressão tudo dizia.
Mesmo assim a coluna continuava grande e lá íamos com redobrada cautela, bem escoltados mas com "cagaço" (pelo menos eu) do que pudesse acontecer.
E por fim chegamos à Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal, de vital importância para as colunas de abastecimento para o Xitole e Saltinho.
O destacamento da Ponte dos Fulas era qualquer coisa do outro mundo, um amontoado de adobes e tijolos, bidões, abrigos cavados na terra, valas, chapas de zinco, um forno de barro feito, chuveiros com bidões como depósito, um alpendre tosco que servia de refeitório, sala de convívio, mais ao lado um atrelado com depósito de água e um Grupo de Combate que o habitava, isolados, uns barbudos, outros carecas rapadas, de camisas abertas, calções esfiapados, uns com quicos, outros sem eles, calçavam uns botas outros xanatas.
Deste grupo uma secção permanecia no Torreão de vigia à Ponte, cerca de turnos de 24 horas que iam alternando com as outras secções. Milhares de garrafas vazias de cervejas encontravam-se a circundar a ponte e as margens do rio encostadas umas às outras em continuidade com um fio condutor que as segurava. Se algo, alguém ou um animal tocasse no fio ou nas garrafas, estas batiam umas nas outras e facilmente poderiam localizar o intruso pelo tilintar, tornando vulneráveis aos focos de luz direccionada para o local e às rajadas que se lhe seguem.
Este destacamento distante 3 quilómetros do Xitole, era abastecido diariamente pela Companhia mas mesmo assim era um verdadeiro inferno permanecer dois meses naquele lugar até serem substituídos por outro Grupo de Combate. Os seus sorrisos e a amabilidade demonstrada era compensada pela generosidade dos passantes que compreendiam o isolamento daqueles camaradas, e os mimavam com algumas grades de cervejas e outras necessidades evocadas em passagens anteriores.
A ponte era uma passagem estratégica no xadrez político, militar e logístico e muito se deve a todos os que permaneceram naquele lugar, contribuindo para o bem estar de todos os outros camaradas que permaneciam neste Teatro de Operações. Bem hajam pelo vosso sacrifício em prole de todos nós.
Lá seguimos mais 3 quilómetros até chegarmos ao Xitole onde fomos recebidos pelo Comandante da Companhia, um Capitão Miliciano e pela sua esposa que o acompanhou durante toda a comissão. Uma verdadeira Mulher de Armas que pelo seu exemplo arrastou para o Xitole várias outras mulheres, esposas de outros militares em comissão no local, e que deram um toque feminino aos refeitórios, messes de graduados e sala dos soldados com melhorias substanciais no rancho e outros paparicos para que todas contribuíram .
Fomos obsequiados com bebidas bem frescas, uns salgadinhos, boas palavras e boas maneiras para sedentar o corpo e a alma de todos nós.
Mais pequena ficou a coluna, mas o objectivo já estava bem perto, o Saltinho. Enquadrados pelas Chaimites e com segurança montada ao longo da picada lá chegamos ao Aquartelamento, comandado pelo Capitão miliciano de seu nome Lourenço.
O local era paradisíaco para fim de percurso e deleitei-me olhando a água revolta nos rápidos entre os rochedos, a ponte com seus arcos em betão, as piscinas naturais, a vegetação envolvente o marulhar das águas e o seu espelhado reflectindo o Sol que nos cobria de paz e sensação de bem estar e de repouso de guerreiro bem merecido.
Fotos - Saltinho: © Rui Vieira Coelho
Após uma boa refeição e alguns momentos de lazer lá tivemos o regresso, um verdadeiro filme ao contrário, todas as mesmas caras e sensações de pernas para o ar, a juntar ao medo de voltar à rotina dos dias agridoces porque todos nós passámos na Guiné.
As recordações surgem e as saudades de todos estes lugares e gentes também.
Rui Vieira Coelho
ex- Alf Mil Médico 025622/67
Guiné 1973
____________
Nota do editor
(*) Vd. poste anterior de 13 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12977: Os nossos médicos (76): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (9): O PAIGC no tempo do presidente Luís Cabral, perpetrou fuzilamentos sucessivos nos "Comandos Africanos"
Último poste da série de 22 de Abril de 2014 > Guiné 63/745 - P13019: Os nossos médicos (77): Capitão médico QP António Vieira Alves, estomatologista e subdiretor do HM 241, Bissau, 1967/69 (Paulo Alves / J. Pardete Ferreira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Guiné 63/74 - P13732: Os nossos médicos (78): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (10): As recordações surgem e as saudades de todos os lugares e gentes também
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6 comentários:
Possivelmente também estou algures na coluna com a minha Berliet.
Os barbudos e gadelhudos do Xitole quase fizeram o nosso comandante ter uma síncope cardíaca uma das vezes que lá passamos rumo ao Saltinho
Saltinho era bom, o pior era ir para lá ou de lá sair.
Um abraço dr.
Fiz essa "viagem" apenas uma vez, em Fevereiro ou Março de 1973 ao serviço da Cçac 12. As minhas recordações do trajeto são bem menores que as descritas no poste. A missão era fazer segurança à coluna que saiu de Bambadinca em direção ao Saltinho. No Xitole mal paramos, apenas vi alguns camaradas nossos ao longo da picada, que, julgo, vieram ver a coluna. Calmamente chegamos ao Saltinho entranhados em pó, era a hora de almoço. Eu, e outros camaradas da 12, não resistimos ao apelo da água cristalina nem às piscinas naturais. Num ápice roupa fora e em pelota tomei o melhor banho dos 26 meses que passei na Província. Depois almoço que não deve ter tido nada de surpreendente pois não o recordo.
Depois o regresso até Bambadinca praticamente sem paragens.
joao silva cçac, 12 1973
Um texto de antologia, meu caro Rui Texto e fotos. Parabéns!... C
onheci bem essas paragens, em 1969/70... CAÇ 12 ajudou a reabrir o troço Xitole-Saltinho, interdito, quase um ano, até ao 3º trimestre de 1969... O abastecimento do Saltinho fazia-se então por Galomaro, Dulombi, Quirafo... (interdito a partir de abril de 1972, se não erro depois da tragédia do Quirafo).
Chegámos a levar 2 dias para ir de Bambadinca ao Saltinho, com enormes colunas com viatuars militares e civis. Tempos heróicos, não há dúvida...
Hei-de comentar mais e melhor, com tempo e vagar...
LG
Luís
O Quirafo,estava interdito desde que foi abandonado,com a saída do pelotão pertencente à CCAÇ 2406.Em final de 70 ou início de 71,já não me lembro,abriu-se uma picada,seguindo o "carreiro dos djilas"entre Chumael e Duas Fontes,e por aqui se começaram a fazer as colunas para o Saltinho.Posteriormente,este trajecto foi abandonado,já lá não estava,voltando para o percurso relatado pelo Dr.Rui Coelho.
Vd. postes de:
10 DE DEZEMBRO DE 2010
Guiné 63/74 - P7418: Memória dos lugares (116): As colunas logísticas ao Xitole e Saltinho no tempo do Paulo Santiago (1970/72) e do Joaquim Mexia Alves (1971/73)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/12/guine-6374-p7418-memoria-dos-lugares.html
8 DE DEZEMBRO DE 2010
Guiné 63/74 - P7401: A minha CCAÇ 12 (10): O inferno das colunas logísticas Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, na época das chuvas, 2º semestre de 1969 (Luís Graça)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/12/guine-6374-p7401-minha-ccac-12-10-o.html
Também por uma vez visitei esse lugar mítico do Saltinho (ida e volta), isto foi em meados de Agosto de 1968, aquando da deslocação ocasional de uma coluna auto de Aldeia Formosa - Saltinho - Aldeia Formosa com passagem por Contabane (já evacuado pela Ccaç. 2382).
Gostaria de voltar ao Saltinho e bem como a outros lugares paradisíacos que conheci.
Arménio Estorninho
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