1. Mensagem do nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com data de 22 de Julho de 2016:
Amigo Carlos
Aí vai mais um conto, rigorosamente verdadeiro, de alguns que escrevi e publiquei há vários anos, e que considero um dos mais belos poemas que me aconteceram na vida.
Adão Cruz
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
2 - Cadi
Cadi era uma mulher esbelta. Uma verdadeira Balanta-Bravo. Não tão bonitas como as Futa-Fulas, as balantas tinham um corpo de fazer inveja a quaisquer outras. A Cadi era o ver-dos-olhos de soldados, sargentos e oficiais. Mas apenas o ver-dos-olhos. Mais do que isso Cadi não permitia. Nós vivíamos dentro de uma cerca de arame farpado, de onde só se podia sair, praticamente, de avioneta. Uma companhia militar e uma população rondando os mil e oitocentos negros. Não é de admirar que qualquer mulher pusesse “os olhos em bico” aos militares. Cadi sabia-o muito bem, e, com uma postura digna e distanciada, contrabalançava a sua condição de negra. Cadi sabia que todos gostariam de “fazer conversa gira” com ela (fazer amor), mas tinha grande orgulho em não deixar que lhe tocassem. Eu admirava muito a maneira de ser da Cadi, que assim se valia do que a natureza lhe dera para impor a sua dignidade de mulher, ainda que negra, faminta, e rudemente colonizada pela “supremacia” branca.
Um dia, começou a constar na tabanca que Cadi não era normal. Cadi “ca tem catota, Cadi ca suma outra mulher”. Na mais rudimentar tradução à letra, isto queria dizer que Cadi não era igual às outras mulheres, pois não tinha “buraquinho”, e, por conseguinte, não podia “fazer conversa gira” nem ter filhos. O boato explodiu como uma granada, e, em pouco tempo, a Cadi transformou-se em “avis rara”, vítima da vingança dos que nunca puderam tocar-lhe e da chacota dos que, mesmo assim sendo, gostariam de o comprovar pessoalmente.
Como as neuroses e as depressões não são apenas doenças de brancos e ricos, Cadi começou a andar muito triste e cabisbaixa. Não parecia a mesma, aquela que todos os dias atravessava a picada com ar garboso, peitos erectos, cabeça erguida e um menear de ancas capaz de provocar desmaios
O meu amigo e Chefe de Posto, cabo-verdiano, numa daquelas conversas que nos ajudavam a matar as intermináveis horas que faziam o eterno tempo de guerra que éramos obrigados a viver nestas paragens do norte da Guiné, disse-me com ar pesaroso:
-Doutor, ando chateado com aquele problema da Cadi. Coitada da moça, quer ir embora, quer ir viver para Binta. Sente uma grande vergonha por aquilo que dizem. Não seria possível fazer alguma coisa por ela? Por exemplo o doutor examiná-la? Ela aceitaria imediatamente. Apesar dos seus vinte anos e de nunca ter saído daqui, é uma rapariga com mentalidade evoluída e uma personalidade admirável.
Combinámos o dia e a hora do exame. Exigi a presença do Chefe de Posto e do meu enfermeiro, o qual, apesar de ser electricista de profissão, foi dos melhores enfermeiros que tive na Guiné.
O exame ginecológico da Cadi era absolutamente normal. Tinha “buraquinho” no mesmo lugar do buraquinho das mais famosas artistas de cinema, e com todos os demais apetrechos com que a natureza dotou as mulheres, brancas ou negras. Cadi podia fazer “conversa gira” com quem quisesse e podia ter filhos.
No dia seguinte, o Chefe de Posto reuniu, debaixo do mangueiro que ensombrava o pátio da sua pequena casa, todos os “Homens Grandes” da tabanca. Eram mais de dez, vestindo a túnica branca de cerimónia, e ostentando o turbante que a sua origem muçulmana impunha. Com ar grave, compenetrados da importância da sua presença, ouviram a comunicação em crioulo que o Chefe de Posto lhes fez.
Não sou capaz de reproduzir na íntegra, e tenho pena, mas posso dizer que foi das coisas mais bonitas que ouvi na minha vida de médico e de homem:
- Homem Grande de tabanca, toda gente conhece Doutor. Doutor ser aquele homem que cura meningite de tanto menino, que ensina maneira certa de parir, que faz fanado limpo de infecção, que levanta de noite toda hora para acalmar sezões. Doutor ter palavra sagrada. E Doutor disse: "Cadi suma outra mulher, Cadi ter catota suma outra mulher, Cadi pude fazer conversa gira e ter filho”.
Os “Homens grandes” da tabanca desfizeram-se em vénias e Cadi foi reabilitada. Ganhou até uma certa auréola de heroína, não só entre a população negra como entre os militares.
Eu tinha um jipe muito velho, quase só rodas e chassi. Com ele costumava ir ver o pôr-do-sol na orla da floresta, junto do arame farpado. Embora a distância não fosse grande, cerca de oitocentos metros, dava uma certa ficha e era motivo para entreter a pequenada em gincanas à volta da tabanca.
Já o sol se havia posto há muito. Demorei-me um pouco mais com a ternura desta gente negra e com as carícias que um velho cego de noventa anos me fazia, todos os dias, à volta da cara e nos cabelos, quando desligava o motor frente à sua palhota, onde me esperava sempre à hora do crepúsculo. Na pequena subida para a povoação, já fora da zona das palhotas, em contraluz, vi um vulto de mulher em estilo de aparição, com os pés na terra mas bem desenhado no céu, que parecia querer falar-me. Aproximei-me o mais possível e parei. Com o seu rosto de diamante negro espelhado de orgulho balanta, envolto num lenço negro como ele, eu tinha na minha frente a Cadi.
- Cadi, que surpresa!
- Dôtô, Cadi manga de satisfação, Cadi feliz, Cadi ca sabe como agradecê, dôtô tudo merece. Cadi mist conversa gira.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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11 comentários:
Gostei dr.
Descreve Cadi com aquela beleza que passamos a admirar depois de uma certa leviandade brejeirice com que encaramos as mulheres negras nos primeiros tempos de comissão.
É uma bela história com final feliz.
Parabéns
O que é que significs "mist" em crioulo? Desculpem a minha ignorância.
Abraço,
António Graça de Abreu
António, tanto quanto o meu pobre crioulo "entende", este diálogo pode ser traduzido assim
- "Cadi ca sabe como agradecê, dôtô tudo merece. Cadi mist[i] conversa gira."
[A Cadi não sabe como agraceder, o doutor tudo merece. Cadi quer [misti e não mist] fazer amor com o doutor"...
Julgo que é a tradução possível... Espero a douta opinião dos especialistas cá do blogue (António Estácio, Mário Dias, Cherno Baldé, Nelson Herbert, António Medina, e outros/as)
Um abraço. Luís Graça
Pergunta para os especialistas do blogue não quer = cá mist ?
Eu pedi ajuda ao Cherno Baldé. Ainda não respondeu mas para mim se Cá-tem é não tem ou não ter, cá-mist poderá ser não quer, mist quero ou querer.
Espero que o Cherno nos elucide,
Uma história linda, onde a gratidão é uma luz que nos dá força.
obrigada.
Mais do que linda, é uma histópria fabulosa!... Que nos honra e orgulha a todos!.. E há qui três personagens que merecem o nosso aplauso: a Cadi, em primeiro lugar, um grande senhora: o nosso camarada médico que, além do bom senso de que fez prova, tirou partida da sua autoridade não apenas técnico-científico como mágico-religiosa... E por fim, o chefe de posto, caboverdiano, que percebeu que a Cadi estava à beira da morte social... Nunca foi fácil ser mulher, e para mais atrente, bonita,sexy, numa sociedade ou comunidade domimante pelo poder falocrático... e patriarcal.
Caros amigos,
Com algum atraso, mas esperando chegar a tempo de corresponder ao desejo de alguns amigos que pedem a minha opiniao, aqui vai:
1. A traducao da TG (Editores) esta correcta. o "ka" ou "ca" e um prefixo que da a forma negativa da palavra em crioulo da Guine, mas que pode tomar certas variacoes. p. ex. "ka-misti"= "n'ka-misti":(nao quero); "n'kana-bai" (nao vou).
Quanto a historia, devo dizer que, se se tratar de uma ficcao, estou de acordo com a apreciacao da malta em geral, mas se se tratar da descricao de um acontecimento factual, entao eu teria algumas reservas, sobretudo no referente a descricao do contexto, pois o nome Cadi (de origem arabe, Cadijah, eh pouco provavel que fosse utilizado, naquela altura, pelo grupo Balanta (ver Balanta animista) e, mesmo que fosse, seria do grupo chamado Balanta-Mane, que por forca de uma "colonizacao" ou assimilacao Mandinga dos seculos anteriores a chegada dos europeus a Africa, eh o mais proximo dos Muculmanos, mesmo se muitos continuam nas praticas culturais dos seus antepassados animistas. Os Balanta-Mane habitam maioritariamente a regiao de Cacheu, areas de Bissora, Farim, Bigene, Barro, Binta e Guidage.
O contexto utilizado como fundo da narrativa eh um contexto plausivel, na altura, para a zona leste ou algumas partes da zona sul (Aldeia Formosa, Guilege, Gadamael, etc.), onde a interacao com a populacao decorria em condicoes mais amigaveis, mesmo se predominava a desconfianca, propria de uma Guerra subversiva.
Com um abraco amigo,
Cherno Balde
Errata: Farim e Bissora fazem parte da regiao administrativa do Oio.
Cherno
Do nosso camarada Adão Cruz o Blogue recebeu esta mensagem que aqui deixamos como comentário:
Amigo Carlos, tentei enviar um comentário mas não consegui. Aí vai.
Tanto quanto me lembro, MIST ou talvez MISTI, significa QUERO.
CA significa NÃO.
MIM MISTI = Eu quero.
MIM CA MISTI = Eu não quero
O nome Cadi, muito parecido, não é, como pretendi, rigorosamente o nome da rapariga.
Claro que não tenho os conhecimentos linguísticos e étnicos do Cherno Balde, pelo que pode haver imprecisões nessa área. Conheci muitos balantas, bravo e mane, bem como várias outras etnias, com quem convivi de muito perto, mas não posso ter o rigor do Cherno Balde. Interessou-me fundamentalmente a verdade da reconstituição de uma história que sempre me enterneceu.
Abraço do Adão
Carlos Vinhal
Co-editor
Recebemos do nosso camarada Domingos Gonçalves esta mensagem que deixamos como comentário:
Antes de mais, um abraço para todos os camaradas.
Depois, quero só referir que, a respeito dos médicos que integraram
as forças armadas na Guiné, escrevi que, santos não eram, mas às vezes
até conseguiam fazer milagres.
Estas histórias de vidas reais, constituem de facto, alguns desses milagres.
Por certo, muitos outros milagres ficarão por contar. Mas é pena.
Muito obrigado, Adão Cruz.
Domingos Gonçalves
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