quinta-feira, 15 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17473: Notas de leitura (968): Saiu o II volume de "Memórias Boas da Minha Guierra", de José Ferreira (Lisboa, Chiado Editora, 2017): Sabemos, desde Fernão Lopes, que não há História com H grande sem as pequenas histórias da arraia-miúda. Este é também um livro de homenagem à arraia-miúda (Luís Graça, prefácio)


Capa do livro, editado pela Chiado Editora, Lisboa


Próximas sessões de lançamento

Aqueles que souberam fazer a guerra e a paz, com “sangue, suor e lágrimas”… e uma boa pitada de humor de caserna


prefácio de Luís Graça

1. Não tenho a pretensão de ser um descobridor de talentos literários... Mas a verdade é que o nosso blogue (“Luís Graça & Camaradas da Guiné”) tem sido um verdadeiro seminário de vocações literárias... 


Ao José Ferreira da Silva (Zé Ferreira, “tout court”) já lhe tinha posto o olho em cima desde que entrou na Tabanca Grande e começou a escrever, há mais de seis anos, em 8/6/2010... Neste espaço de tempo, foi alimentando, com maior ou menor regularidade, uma curiosa série a que ele próprio chamou "Memórias boas da minha guerra"... 

Há quem só tenha "memórias más", o Silva da CART 1689, o ex-fur mil José Ferreira da Silva, que fez a guerra “pura e dura”, também terá as suas, mas no cômputo final são as boas (ou, talvez antes, agridoces…) que vêm ao de cima e que ele faz questão de partilhar connosco... 

Criaria depois outra série a que chamou "Outras memórias da minha guerra", onde a guerra e a sua (des)humanidade vêm mais ao de cima. No nosso blogue, ele conta já com quase um centena de referências.

Finalmente, o Zé Ferreira coligiu estes textos e publicou-os em livro, sob a chancela da Chiado Editora, para regozijo de alguns leitores do blogue que se tornaram seus fãs, e terão também, pelo apreço e incentivo manifestados, uma pequena quota parte de responsabilidade nessa feliz decisão de passar a papel as "memórias boas da (sua) guerra", de que se publica agora o 2.º volume.

O título pode ser irónico ou provocatório já que a sua companhia, a CART 1689, esteve longe de ter ido passar férias à então "província portuguesa da Guiné". Bem pelo contrário, teve uma intensa atividade operacional, tendo estado debaixo de fogo inúmeras vezes e deambulado por quase todo o território, de tal maneira que era conhecida por “Os Ciganos”.

Recordo-me lhe de ter dito, há uns anos, que “o humor é uma arte” e que esse  título, “Memórias boas da minha guerra”, era um achado, que me fazia lembrar as rábulas do saudoso Raul Solnado na sua ”guerra de 1908”. E até antevia que era um bom título para um possível "best-seller"... De qualquer modo, o mais espantoso é que no blogue ninguém o insultou por reivindicar o direito a ter também "memórias boas” da vida, da tropa e da guerra, de Lamego a Catió, do Porto a Gandembel, da Feira a Canquelifá.

2. A primeira impressão que eu retive deste camarada que se estreava na escrita, era a de um bom contador de histórias, às vezes até já mestre, exímio sobretudos nas “short stories”, nos relatos “claros, concisos e precisos”, no traço caricatural de personagens, mas onde nunca falta uma ponta de ironia, humor, brejeirice, malícia, cumplicidade ou compaixão. 

Tem, como os bons contistas, também a capacidade de saber “ler, parar e escutar”… Tem matéria-prima existencial para dar e vender, “tem mundo”, é "homem de vida", como se diz no Norte, e sobretudo um apaixonado pela vida, mas também um grande observador do "zoo" humano, e um grande escultor de corpos e almas.. 

O eacritor, José Ferreira
Basta, de resto, conhecer a sua biografia de homem que se fez a si próprio, e que começou muito cedo a trilhar a dura “picada da vida”. Revela também essa rara qualidade de saber ouvir os outros com perspicácia e empatia…

O que vem ao cima, desta espuma existencial, são todos os ingredientes que nos fazem, a nós, seres humanos (e portugueses), sermos como somos, humanos (e portugueses)...

Devo dizer que tive o grato prazer de conhecer, em carne e osso, o Zé Ferreira na Tabanca de Matosinhos, no nosso convívio de 29/12/2010... As circunstâncias não foram as melhores, para mim, devido a uma maldita ciática que me atormentou na última quinzena do ano de 2010... Reencontrei, entre muitos outros camaradas, o saudoso Jorge Teixeira (“Portojo”) (1945-2017), um verdadeiro cavalheiro, tripeiro, como deve ser, de fino humor e verbo fácil. O Zé Ferreira e o Portojo estiveram em Catió, no sul da Guiné, e "reconheceram-se" (!) ao fim destes anos todos... na Tabanca de Matosinhos que costumam frequentar, com maior ou menor regularidade.

Ficámos, no fim, eles, eu e mais um  ou outro camarada, a contar algumas histórias... Qualquer deles, são dois grandes contadores de histórias e camaradas divertidos... O “Portojo” mais expansivo, o Ferreira da Silva mais discreto... Uma das histórias que vem no livro (volume I) é do “Piteira, o ranger do Alentejo” (pp. 43-49), foi-me contada por alto por ele mesmo, Zé Ferreira... Achei-lhe um piadão e esqueci por uns largos minutos a maldita cialgia... Mas ao relê-la, agora em forma escrita, é que me ri que me fartei, sozinho… Ri com gosto, a bandeiras despregadas, ao lê-la com calma e com todos os detalhes...

Enfim, foi um momento alto do nosso "humor de caserna", que é bipolar (dizem os psiquiatras de fora)... Na realidade, a tropa e a guerra não foram feitos para “meninos de coro”... mas também um “ranger” (à força, como aconteceu com o Zé Ferreira e o Piteira) não era um homem que deixava a sua humanidade (e a sua cidadania) em Lamego para se transformar numa “máquina de guerra” nas matas e bolanhas da Guiné.

Outra história fabulosa, de resto contada em primeira mão numa roda de amigos, é a do soldado comando Dionísio, de Valbom, desertor e herói, em “É guerra, é guerra… (Será?)” (volume I, pp. 119-129).

Mas, enfim, não há só “mouros” e “morcões”, nesta galeria que ilustra bem a educação erótica, sentimental, cívica e militar, de toda uma geração, também há figuras femininas, com individualidade própria. Do ponto de vista socioantropológico, o Portugal aqui retratados, era muito diferente, nos anos 60/70, do país que conhecemos hoje... (Como era diferente, mas eu não tenho saudades!)... Era diferente, para o melhor e para o pior... a ponto de ter conseguido aguentar uma guerra durante 13 anos, em três frentes, a milhares de quilómetros de casa. Em todo o caso, era (e continua a ser) um país que é feito por grandes mulheres e grandes homens como, por exemplo, a Ilda e o Neca (volume I, pp. 91-99)... Cá está, esta é uma comovente história de amor em tempo de guerra!...

3. Leitor necessariamente indisciplinado e, muitas vezes distraído, fui escrevendo alguns comentários, ao correr das teclas, a alguns dos postes das séries "Memórias Boas da Minha Guerra" e “Outras memórias da minha guerra” e com isso fui assistindo ao "making of" deste livro em dois volumes, que não tem propriamente um “fio condutor”, é uma coleção de meia centena “sketches” ou pequenas histórias, uma escolha nem sempre fácil de um lote maior.

O Zé Ferreira conta-nos aqui históricas pícaras, verosímeis, reais ou fictícias, não interessa. Costuma-se avisar o leitor de ficção, de que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"... Os textos do Zé Ferreira estão entre a ficção literária e a biografia, a crónica e a memória: as figuras que desfilam no seu ecrã são portuguesas e portuguesas de carne e osso (mas também guineenses)... E, nalguns até, com “chapa fotográfica”, podendo eventualmente, questionar-se se o autor tomou as devidas cautelas para salvaguardar o direito de cada um de dos nossos camaradas, ainda vivos, à "reserva da intimidade", ao sigilo, e até ao esquecimento… Mas também aqui parece haver uma evidente cumplicidade entre o artista e o modelo, o criador e a criatura.

Tive o privilégio de ser um dos primeiros a ler as suas "short stories", pequenos contos onde cabe sempre uma parte das nossas vidas, de quando éramos jovens e filhos devotados da Nação... Não sendo "meninos de coro", nem "virgens púdicas", cedo aprendemos que o "pícaro", o picaresco, fazia parte da(s) nossa(s) vida(s)... Ora o autor tem esse notável sentido do picaresco, do burlesco, do humor de caserna, e as suas histórias não nos deixam indiferentes, tocam-nos, justamente pela sua humanidade...

Quem o conhece sabe que é um homem afável, no trato e na linguagem. Quanto à linguagem eventualmente "inapropriada", bom, a reprodução da oralidade (incluindo o calão) é um recurso que decorre da liberdade narrativa e criativa... O Zé Ferreira fá-lo, em geral, com bom gosto, bom senso, ironia, sentido de humor...

O autor teve necessariamente de fazer um seleção dos seus escritos, não conhecendo eu ainda o índice definitivo do seu 2.º volume. Mas tenho pena que alguns possam ficar de fora, como o “Deixem-nos trabalhar”, um roteiro completo pelo Porto castiço, “lúmpen”, "underground", onde floresciam as “casas de passe”, ligadas à iniciação sexual da geração nascida nos anos 40, o Porto da adolescência e juventude do autor que não existe mais mas que é recriada, graças a uma fina sensibilidade socioantropológica que lhe permite descrever, com propriedade e humor, tipos e cenas que escapavam ao olhar distraído da maioria... Esse texto é bem o retrato social e humano da época a que ele se reportava (anos 50/60), que era de miséria e de pobreza... O Porto estava cheio de "ilhas" (zonas de habitação degradadas e degradantes), tal como Lisboa ("bairros de lata" e "vilas")...

Enfim, não é por acaso que os últimos textos são memórias da “guerra pura e dura”, do suplício de Sísifo que foi aquela guerra (, de que Gandembel é um símbolo,) mas também testemunhos da importância que têm os laços de camaradagem entre os antigos combatentes, a tal ponto que persistem para lá da tropa e da guerra, ao fim de meio século.

Em suma, este livro acaba por ser o autorretrato de uma geração de portugueses que fechou um ciclo de 500 anos, que soube fazer a guerra e a paz, com “sangue, suor e lágrimas” e uma boa pitada de humor de caserna, e que se recusa a ir para a “vala comum do esquecimento”… Não é a História com H grande, nem dos heróis com direito a Panteão Nacional. Mas sabemos, desde Fernão Lopes, que não há História com H grande sem as pequenas histórias da “arraia-miúda”. Este é também um livro de homenagem à “arraia-miúda”.

Luís Graça, 

editor do blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17457: Notas de leitura (967): Honório Pereira Barreto (Notas para uma biografia), por Joaquim Duarte Silva (Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

LUÍS

Estou deliciado.
GRANDE ANÁLISE ESTE TEU TEXTO! GOSTEI MUITO!
Estão lá dentro, principalmente, o Silva (Zé Ferreira), um espaço territorial (grande Porto), a sociedade em nos fizemos homens de repente (anos de 60's/70's), uma geração (a nossa) e uma guerra (que fizemos a contragosto).

Grande abraço
Alberto Branquinho

José Ferreira disse...

Índice do II Volume de "Memórias boas da minha guerra"

1 – Apresentação introdutória
2 - Guerra em Dunane
3 – Deixem-nos trabalhar
4 – Os Bravos do 13º Pelotão
5 – Os sonhos do Farinha
6 – Cegueira e Religião
7 – Bolos de Bacalhau à moda de Catió
8 – O Chico d’Alcântara
9 – O Cabo Felgueiras
10 – O Básico dos básicos
11 – O Lourosa – Férias, Padres, Religião, etc.
12 - Morteiradas em Canquelifá
13 - Raul Pires – O mergulhador do Funchal
14 - Assalto ao Pilão
15- Que rica foda
16 - A cabra do Berguinhas
17 - Florita e o tio que pescava
18 - Amores e desamores
19 - Outras memórias
19 - Promessas
20 – O Furriel Zé Maria
21 – Memórias da Guerra ou guerra de memórias
22- Vícios estranhos
23 - O Tininho da feira
24 - Oficial não cavalheiro
25 - O Valente era mesmo Valente
26 - Sexo, a quanto obrigas
27 - Op Bola de Fogo (O inferno em Gandembel)
28 – Lançamento e Apresentação do I volume

Todos estes textos foram aqui publicados, no nosso blogue "Luís Graça". Por isso, manifesto a minha gratidão a toda esta "família"
Abraço
JFSilva