segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17796: Notas de leitura (998): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Não se trata de um testemunho qualquer, o seu autor é um conceituado escritor camaronês que nasceu e viveu a sua infância e juventude numa colónia. Regressa décadas depois e dá de caras com uma independência fictícia, uma ditadura que os sucessivos governos franceses deram cobertura.

Os Camarões não andam muito longe do que se passa hoje no Ocidente: os ricos estão cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres. Há momentos em que parece que estamos em viagem no inferno, partilhamos a mágoa do escritor. E, incidentalmente, confrontamos os arremedo de regime democrático que irromperam nesta região africana depois da queda do muro de Berlim, e pensamos na Guiné-Bissau.

Garanto-vos que as analogias são fortes.

Um abraço do
Mário


Há alguma analogia possível entre os Camarões e a Guiné-Bissau? (1)

Beja Santos

O escritor camaronês Mongo Beti (falecido em 2001), é reconhecidamente uma das figuras de topo da intelectualidade do seu país, deixou-nos obras emblemáticas da moderna literatura africana. Atraiu-me o seu livro “A França contra África”, Editorial Caminho, 2000, ao folhear o livro apercebi-me do vigor da escrita, da dor contida a descrever um país em descalabro, trouxe o livro para casa e devorei-o como um depoimento incomparável de um cidadão bem documentado e muito torturado pelas infelicidades que reinam na sua pátria.

Mongo Beti concluiu o liceu e foi estudar para França em 1951, aqui se diplomou e foi professor. No início da década de 1990 voltou ao país e o resultado é este documento pungente, rigoroso e que me obrigou a refletir quanto à superficialidade das mudanças operadas depois da queda do muro de Berlim, no continente africano. E sem esforço fui resvalando para um conjunto de analogias entre países da África Ocidental que têm tido percursos transviados.

O país que aqui Mongo Beti descreve na sua escrita lancinante, mas muito bela, remete-nos para o fracasso da visão ocidental sobre a sua conceção das democracias africanas, a cooperação, a ajuda humanitária e o formato padronizado pelos valores culturais aqui existentes. As antigas potências coloniais deixaram vingar falsos modelos de desenvolvimento que acabaram na criação de grandes cidades, hoje incontroláveis (como é o caso de Lagos) e na delapidação de recursos e a formação de castas económicas e financeiras na órbita do poder ditatorial.

Mongo Beti mostra-se embevecido com a vida aldeã da sua terra-natal e a sua disposição espacial, reconhece que este modelo da organização do espaço denota uma vincada cultura, possui este habitat um equilíbrio extremamente delicado e miraculosamente preservado:

“A antropologia Ocidental, tão loquaz sobre estas civilizações, não se apercebeu deste facto. Sob a sua influência, nem uma administração colonial nem os governos africanos que lhe sucederam pensaram em pôr de alguma maneira tais predicados ao serviço do desenvolvimento”.

O autor identifica uma paz social que não tem equivalente no Ocidente, visto dispor cada indivíduo de terrenos para cultivar, num contexto de igualitarismo. Não se trata de uma observação idílica, não se ilude a miséria a que este povo está subjugado, fala-se da mulher como pilar da sociedade, dos dramas do êxodo rural, dos tremendos desequilíbrios demográficos, das cidades sem emprego.

Destaca-se a ausência de líderes e o vazio hierárquico, a ditadura gerou uma sociedade totalmente invertebrada. O autor encara a aldeia como o único elemento credível de dinamismo e de iniciativa e acusa a ditadura: “Tudo a extorquir a aldeia, sem nada lhe dar em contrapartida, tais parecem ser a divisa e a fatalidade do Estado”.

Os Camarões e a Guiné-Bissau são países distintos. O país francófono viveu sob a monocultura do cacau, tem uma grande superfície, mas há paralelismos que nos fazem pensar. Ele estudou uma pequena cidade chamada Mbalmayo, a uns 50 quilómetros a Sul de Yaoundé, a capital e fala-nos na decrepitude da cidade, nas ruas esburacadas onde os automóveis não podem andar a mais de 5 km/h, obrigados a desviar-se dos buracos que os espreitam. Por toda a parte montes de lixo, não há bombeiros, não há polícia, o viajante tem uma sensação persistente de anarquia: peões e viaturas disputam os raros espaços. O comércio atrofiou-se, não há investimentos. E sentimos o mesmo amargor quando nos descreve Yaoundé:

“Aqui encontram-se todos os vícios da demência da África francófona. Os edifícios que abrigam os ministérios são edificados num estilo desconhecido, uma espécie de barroco mourisco que roça o puro delírio surrealista. Um arranha-céus nunca acabado por falta de dinheiro ergue o seu gigantesco coto para as nuvens. Bairros de aspeto muito urbano estão afogados no meio de aldeias africanas, bairros de lata em que as ruas são de terra batida e que a cada passagem de um automóvel são assoladas por um turbilhão de pó vermelho que sufoca os peões e se agarra ao vestuário (…) 

Cidade de políticos corrompidos, demasiado depressa enriquecidos em detrimento do Estado, de funcionários conformistas, muitas vezes desonestos, e de empregados de escritório indolentes, Yaoundé não tem indústrias. Os desempregados, diplomados disfarçados de vendedores ilegais, pululam, assim como as prostitutas, disfarçadas de costureiras ou cabeleireiras, os muitos jovens vagabundos vivendo de pilhagens, os desocupados cínicos, toda uma arraia-miúda quase sempre numa situação desesperada de tal modo precária é a sua situação”.

E disserta sobre as grandes metrópoles africanas:

“As megalópoles africanas estão condenadas a tornarem-se oceanos de bairros-de-lata votados à anarquia, à miséria, ao crime. Como, por exemplo, integrar as hordas de jovens que submergem estas metrópoles, quando os Estados não têm absolutamente nada para lhes oferecer no domínio da educação e muito menos ainda na do emprego?”.

Estas são as cogitações que nos deixa sobre a vida de aldeia e da cidade. A seguir fala da vida quotidiana, de um sistema universitário paralisado, de uma liberdade de expressão fictícia, o partido único recorre a todos os expedientes para sufocar a crítica, as comunicações são dispendiosas e morosas, o sistema sanitário, as deslocações, a segurança afundam-se. E temos o sistema policial completamente arruinado, aquele país africano é o inferno das barreiras policiais:

“Se algumas barreiras são fixas, outras nascem e desaparecem ao sabor das circunstâncias. As barreiras fixas estão equipadas com um dispositivo, em que aquilo em que se repara sobretudo é uma comprida vara de madeira que se ergue ou se baixa de acordo com a vontade dos polícias. Mas as barreiras ligeiras, que são assinaladas por dois bidões vazios colocados de qualquer maneira na estrada, e ladeados por uns trangalhadanças de uniforme, são as mais numerosas”.

 Polícias que vivem de extorsão, explorando os pequenos transportadores, é uma tremenda vigarice, um círculo vicioso em que o Estado é o único a não ganhar nada. E conclui:

“Os polícias, mal pagos, são tentados a transformarem-se em bandidos, muitos não resistindo à tentação de um atividade simultaneamente lucrativa e mito pouco arriscada”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17786: Notas de leitura (997): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Juvenal Amado disse...

Um retrato do neo-colonialismo comum em toda a África. Se não são as antigas potências são os que as substituíram.
Sobre isso escreve o jornalista de investigação premiado Tom Burgis no seu livro a A Pilhagem de África.

SENHORES DA GUERRA, MULTINACIONAIS,CONTRABANDISTAS E O ROUBO DA RIQUEZA AFRICANA.

Os povos africanos estão enredados numa teia de pobreza e miséria que os faz ser os mineiros dos outros. Mas a maioria de nós, só olha para o que uma pequena classe africana esbanja. Mas isso são migalhas do que, é roubado em toda África por multinacionais que envenenam rios e solos , fomentam guerras civil e conflitos regionais

Só assim se compreende o continente mais pobre do Mundo seja também o mais rico.
Embora concentre apenas 2% do PIB Mundial, alberga 15% das reservas de petróleo, 40% do ouro, 80% da platina.
No seu subsolo jaz um terço das reservas minerais do nosso planeta.
Tudo isto que em vez de ser a salvação do seu povo é, pelo o contrário uma maldição

um abraço

antonio graça de abreu disse...

Logo o título é enganoso. "A França contra a África". Podia ser "Portugal contra a África", ou "Portugal contra a Guiné Bissau". Já está tudo explicado. Afinal, nós, neo-colonialistas, é que somos os culpados das desgraças e das ditaduras africanas dos países que, por bem ou por mal,colonizámos.
O excelente Mário Beja Santos explica:
"As antigas potências coloniais deixaram vingar falsos modelos de desenvolvimento que acabaram na criação de grandes cidades, hoje incontroláveis (como é o caso de Lagos) e na delapidação de recursos e a formação de castas económicas e financeiras na órbita do poder ditatorial."
Tudo explicado por a mais b. Os povos africanos, tudo boa gente, os colonialistas europeus, gente execrável, do pior. Portanto, foram as "antigas potências coloniais" e fomos nós,portugueses, quem deixou "vingar falsos modelos de desenvolvimento"
que "acabaram na criação (...)e na delapidação de recursos e a formação de castas económicas e financeiras na órbita do poder ditatorial." Ai, Angola,ai Moçambique, ai Guiné Bissau! É tudo culpa nossa.
Curioso, estes países, independentes há quatro ou cinco dezenas de anos,o que é que fizeram por si próprios? Continuam a assacar as culpas ao velho colono. E o Mário Beja Santos, na sua excelsa cátedra neste blogue, e o meu amigo Juvenal Amado acham que é verdade. Ora estas países, em número de quase cinquenta, espalhados pela malha africana, não se puseram de pé, nada fizeram por um futuro melhor para o seu povo, passaram os anos, décadas a lutar pelo poder entre os seus dirigentes, a assassinarem-se uns aos outros e, no fundo, a culpa é do colonialismo, é sempre do neo-colonianismo. O Juvenal sabe destas coisas, mas não explica nada.
No Brasil, já conhecemos esta história, quase há duzentos anos. Ainda hoje ainda há uma corrente brasileira anti-colonialista que continua a deitar as culpas do mau governo da pátria ao "português que os pariu", a culpa pela brasileiríssima corrupção desenfreada, pela da falta de respeito pelos mais elementares direitos humanos, pelo caciquismo, pelas favelas, pela insegurança e pela miséria de parte do povo. Tudo tem a ver com os portugueses. Até quando estas análises de anticolonialismo primário? Um país que se agacha sempre, que sistematicamente deita as culpas para os outros que o colonizaram um dia, de quem se libertaram há décadas ou séculos, caminha para onde?
Onde está o orgulho destes povos, muitos deles heróicos nas suas lutas de libertação?
Abraço,

António Graça de Abreu

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

A Europa só fez asneiras em África (subsariana)desde 1880.

A culpa dos males africanos, pode ser também nossa, (Portuga)porque mostrámos os contornos bonitos da África negra aos pragmáticos e gulosos e "democráticos" e "humanistas" europeus de primeira.

Mas a maior asneira, que aliás foi o maior crime que faz esquecer a escravatura para as américas, foram as cínicas, demagógicas e infelizes independências dos anos 50/60, contra as quais nós aqui neste recanto de velhadas, muito humildemente quais Quixotes lutámos, uns consciente, outros inconscientemente.

Neste momento cidades como Luanda ou Lagos, (Nigéria) ou Maputo, há milhões, (6 zeros) de jovens sem qualquer perspectiva de vida.

E eles sabem, e caladinhos como este autor vão acusando a Europa, e a Europa que resolva.

É só ver o rosto tranquilo como homens mulheres e crianças africanas naufragam nas costas de Espanha da França e da Itália.

E nós daqui do blogsforanada a ver!

É a vida!

Obrigado BS esmiuça o que possas, porque a luta continua.

Anónimo disse...

António Rosinha e António Graça Abreu, pelos vistos só quem desgastou o cabedal e os miolos em áfrica é que se preocupa com os povos que morrem de fome e não tem direito a nada.A demagogia das nações unidas continua igual ou pior, com os burocratas bem pagos e barriga cheia.
Alguem acredita ainda que este tipo de gente resolve alguma coisa?
Um abraço
Carlos Gaspar

Cherno AB disse...

Caros Amigos, caro MBS,

Para uma melhor compreensao da recensao que nos ofereces, era importante sabermos quem eh o autor e qual a sua dimensao politica e/ou literaria.

Mongo Beti, alias, Alexandre Biyidi Awala (1932), terminou os seus estudos de filosofia e de Letras em 1951 e foi Professor de Letras em Franca durante muitos anos. Ao mesmo tempo, foi um dos mais proficuos escritores de Africa e sobre Africa, tendo denunciado sempre os mecanismos de alienacao e de opressao dos povos africanos, utilizados pelas potencias que dominam o mundo, em particular dos povos de Cameroes, seu pais natal, pela Franca, ao ponto de, em 1972, os seus livros serem proibidos nesse pais, com a publicacao de: "Main basse sur le Cameroun: Autopsie d'une decolonization" e "Le process du Cameroun".

Voltou ao pais em 1991 e regressou definitivamente em 1994, mas sempre engajado na denuncia dos atropelos e da ma governacao dos poderes que a Franca ajudou a instalar nas suas ex-colonias, muitas vezes, a custa de muitas vidas. a este proposito, o antigo Presidente Frances, Francois Hollande, pediu desculpas e reconheceu o papel nefasto da Franca nos primordios da independencia dos Cameroes que foi a primeira colonia em Africa a revoltar-se contra a colonizacao.

Mas, Mongo Beti nao tinha somente admiradores em Africa e no mundo, muitos o criticavam pelo facto de criticar a Franca e os seus metodos neo-coloniais e ao mesmo tempo nao poder dispensar a "vida facil e comoda" na Capital Francesa.

Para terminar, quero agradecer ao Juvenal Amado pela lucidez e a humanidade das suas palavras e dizer, por minha conta, que quando se fala de Colonialismo os Portugueses podem ter motivos para preocupacao, mas quando se fala do Imperialismo e Neo-colonialismo, ja Portugal nao faz parte ou se faz parte nao ocupa os lugares cimeiros, conforme nos esclareceu A. Cabral desde os anos 60.

Com um abraco amigo,