quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18253: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 21 e 22: Tive uma sorte incrível: a minha família na tropa foi a melhor.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) >  Os camaradas (etimologicammente, os que dormem na mesma "câmara", quarto, camarata, no mesmo "buraco",  que dormem, comem, vivem e... morrem juntos), sempre presentes no dia a dia da guerra, vão substituindo a família, os vizinhos, os colegas de escola, os amigos, etc. que ficaram lá longe, na terra... São também companheiros, porque comem o mesmo mão à mesma mesa (do latim, cum + panis, o que partilha o pão connosco). 

 Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Mapa da província (1961) > Escala 1/500 mil > Região de Quínara > Posição relativa de Fulacunda,que tinha a oeste Tite e a leste Xitole, a sudeste Buba e a norte Porto Gole~. Todas as ligações terrestres, em 1972/74, estavam inoperacionais. A ligação ao resto da Guiné fazia-se por barco (a sudoeste, a através do Rio de Fulacunda, afluente do Rio Grande de Buba) e por ar (Heli ou DO-27).



Guiné > região de Quínara > Fulacunda > Mapa de Fulacunda (1955) > Escala: 1/50 mil > Tite ficava a noroeste. Era sede de circunscrição (concelho) e tina pista de aviação... Com a guerra entrou em decadência. Era o coração do "chão beafada"...

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12.º ano de escolaridade.

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande .

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 21/22


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


21º Capítulo  > O RACAL


A primeira grande estupidez que cometi, no teatro de guerra, teve um epílogo feliz, mas podia ter corrido muito mal. Foi no dia 12 de Setembro [de 1972].

O 1º pelotão, do qual eu fazia parte, tinha sido destacado para ir à lenha. De notar que o combustível para cozinhar era lenha que cortávamos nas matas circundantes do aquartelamento.

Nesse dia, estava a decorrer, próximo de Fulacunda, uma operação com forças especiais, compostas por comandos e paraquedistas, na tentativa de expulsar o inimigo da nossa zona.

No exterior do arame farpado, e paralela ao mesmo, tínhamos uma pequena pista de aviação em terra batida e um heliporto. Regra geral, uma avioneta vinha semanalmente trazer-nos correio ou um medicamento urgente. Era a outra forma de sermos abastecidos, embora também o fôssemos de paraquedas mas, na ocasião, era um helicóptero da força aérea que estava estacionado no heliporto para socorrer eventuais soldados que fossem feridos nos combates que se travavam nos arredores.

Não sei porquê, nós não tínhamos sido informados da dita operação, e o único rádio Racal que possuíamos a funcionar estava com os meus colegas no mato, no corte da lenha, de maneira que do quartel não podíamos contactar com os militares envolvidos na operação de combate, que estava a decorrer.

O meu capitão pediu que alguém fosse à procura dos meus colegas e trouxesse o dito rádio. Sem hesitar, ofereci-me para ir de jipe, e dois colegas prontificaram-se a ir comigo. Não me lembrei que iríamos por estrada quase intransitável, Fulacunda-Tite. (Esta estrada está nos meus escritos, mencionada da seguinte maneira):

“O carreiro que se vê à esquerda na foto, é uma estrada internacional que liga Conácri, capital da República da Guiné, a Bissau, capital da Guiné portuguesa, atravessa o quartel ao meio. Devido à guerra, não passam aqui pessoas ou carros, pois está minada, ainda se nota na foto um sinal de trânsito. Fui de Jeep por esse carreiro buscar um rádio correu tudo bem”.
Chovia torrencialmente - uma daquelas fortes chuvadas tropicais e podíamos até ficar atolados. O certo é que fomos os três a cerca de seis km de distância e trouxemos o rádio rapidamente.

Sendo eu um medricas, atribuí esta audácia às pastilhas que,  dizem, nos davam para não termos medo ou então era mais corajoso do que pensava. Foi o meu primeiro pequeno ato heróico (ou estúpido) mas uma coisa vos afirmo: “Tomates” tiveram os dois colegas que me acompanharam, pois durante a viagem com as armas prontas a disparar, fizeram-me sentir completamente seguro. Obrigado ao “Zé” que infelizmente já não se encontra junto de nós; o outro ainda anda por cá, não quer que diga o nome.

22º Capítulo >  E VAMOS ESQUECENDO ...


Não andarei longe da verdade se afirmar que é aí pelo terceiro mês que começámos a quebrar as promessas que fizemos antes de partir. Escrever à Ana ou à Rosa, aos irmãos, tios ou primos, amigos, ou companheiros de trabalho passa a ser negligenciado. Pouco e pouco criámos laços com aqueles com quem lidávamos diariamente e, das promessas que fizemos, que escreveríamos muito e a todos, vamo-nos esquecendo. Cumpríamos com a namorada e os pais. (No meu caso,  avó.) E, muito esporadicamente, com os outros. Pelos meus apontamentos, fui diminuindo cerca de 10% ao mês, até estabilizar mais ou menos nas 30/40 cartas/aerogramas mensais. Nos primeiros meses, eram 80/100.

Nada mudou nesse aspecto, até aos dias de hoje. Os que hoje, por qualquer razão, estão distantes, apesar de poderem contactar ao segundo, fazem exactamente o mesmo e vão esquecendo família e amigos. Connosco, uma resposta a uma carta tardava, no mínimo, 15 dias, o que ajudava e desculpava esse “esquecimento”.

Em suma, é no seio dos camaradas de armas que crio uma nova família. Tive uma sorte incrível: a minha família na tropa foi a melhor.

Não sei explicar psicologicamente o que leva a criarem-se laços mais afectuosos com este ou aquele. Dos quatro do “Refúgio dos Mórmons”, somente de um fui íntimo amigo; os outros com quem mais convivi estavam espalhados por toda a unidade.

Pensem no que seria não termos amigos, num lugar como aquele. Garanto que, embora poucos, havia quem não os tivesse. Cada um de nós é singular na sua personalidade, mas foi a convergência de muitas coisas em comum que deram origem aos vários grupos que, melhor ou pior, se ajudaram mutuamente.

Na doença, nos momentos de combate, nas dores da alma por más noticias recebidas, na falta de comida ou bebida, este e os outros grupos da 3ª Companhia, que iriam ficar conhecidos como “Os Serrotes de Fulacunda”, estiveram unidos e pude, nas condições mais dramáticas que alguma vez vivi, aprender o significado da palavra solidariedade, no seu total e completo exemplo, do que deve ser uma família. Desejo, com todo o meu fervor, que todas elas, por laços de sangue ou não, sejam como esta que me colocou no topo da mesa, no dia do meu aniversário.

Não podendo garantir categoricamente que só a eles o deva, posso pelo menos afirmar que o estar hoje a escrever-lhes estes textos, a estes homens formidáveis muito se deve.

(Continua)

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Nota do editor:

8 comentários:

Abílio Duarte disse...

Gostei, de facto a convivência de toda a malta naquelas terras, era a nossa alegria, pelo prazer das brincadeiras e tudo o mais. Mas gostei também da Bateria de ventoinhas que está na foto. Original. Eu só tinha uma, e estava aos pés da cama e dentro do mosquiteiro.Bonita recordação.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... Sim, aquela bateria de ventoinhas é um achado!...LG

Antº Rosinha disse...

Temos aqui o nosso "Lobo Antunes" nos cús-de-judas de Fulacunda.

A maior diferença do resultado final da escrita, está na proveniência de um e do outro.

O nosso saíu de Penafiel, veio de muito longe.

Mas chegou lá.

Valdemar Silva disse...

Muito interessante estes escritos do Dino.
Também interessante, em 1972, o 'Refúgio dos Mórmons'.

Valdemar Queiroz

Fernando Gouveia disse...

José Claudino:
Desde os primeiros capítulos das tuas “estórias” que ando para fazer um comentário sobre o que tens vindo a escrever.
Apesar de também ter publicado um livro relacionado com a nossa guerra, várias vezes referi que não me considerava escritor, não sendo pois a pessoa mais indicada para opinar sobre a tua escrita. Mas vou fazê-lo.
Há muito que não escrevo nada para o blogue mas tu a isso me obrigas.
Podem achar que as tuas narrativas são pequenas, etc., etc. mas para mim não o são. O que em cada capítulo tu contas, porventura “nas mãos” de um qualquer escritor célebre poderia dar um livro. Quero com isto dizer que o que lá está, em cada capítulo, em cada frase, em cada palavra, se pode multiplicar por inúmeras ideias, conceitos, situações, em suma, histórias por nós todos vividas. Porém o que para mim mais me agrada é a forma, aparentemente despretensiosa da tua escrita e não rebuscada, como muitos o fazem mas sem o resultado por ti conseguido. Os tais “muitos” não deixariam de colocar como título do livro “EM NOME DA PÁTRIA” mas tu e muito bem, no meu modesto entender, mudaste para “AI, DINO, O QUE TE FIZERAM”. Acrescentarei que, se as tuas crónicas tivessem o primeiro título, talvez nunca as tivesse começado a ler.
Podes crer que adoro as tuas estórias pois, cada uma, reflete, aliás como já disse, muito do que todos nós lá vivemos. Apesar de não ser original do Eça, na “Cidade e as Serras” o conceito : PLANTAR UMA ÁRVORE, TER UM FILHO E ESCREVER UM LIVRO, não sei se se vai aplicar a ti. Pelo menos a mim, quando escrevi e publiquei o tal livro, fui possuído por uma sensação de satisfação indescritível. Para isso talvez tenha contribuído a viagem de saudade que em 2010 fiz à Guiné.
E agora, Dino, espero pelos novos capítulos. Atualmente, já não leio muita coisa no blogue (por extensas e rebuscadas) mas as tuas crónicas não as perco.
Continua.
Um Grande abraço.
Fernando Gouveia

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando Gouveia, obrigado por reapareceres, obrigado pelos teus comentários elogiosos à série do nosso camarada Dino, e também pelas tuas críticas ao blogue que já não lês muito, e acrescentas como justificação, a publicação de muitas "coisas extensas e rebuscadas"...

Vou tomar boa nota e tentar ver o que se pode melhorar para voltar a atrair autores e leitores como tu. Já agora fica aqui o teu registo: tens mais de centena e meia de referências no nosso blogue.

Boa noite e um grande abraço. Luís

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Fernando%20Gouveia

PS - O blogue precisa da entrada contínua de novos camaradas... Infelizmente não é todos os dias que encontramos gente com o talento para a escrita como tu o Dino ou o Zé Ferreira ou o Jorge Cabral ou o Mário Fitas ou o Juvenal Amado, só para citar alguns de nós.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Levou algum tempo, mas a malta da Tabanca Grande está a render-se à escrita do nosso camarada "bate-chapas" (de Penafiel, aliás de Amarante, aliás da Lixa, onde vive atualmente)...

"Em suma, é no seio dos camaradas de armas que crio uma nova família. Tive uma sorte incrível: a minha família na tropa foi a melhor."

Quem é capaz de dizer isto, em público, sem autocensura, sem medo do ridículo, sem receio da crítica dos outros, sem se imporrtar sequer com as reações da "família biológica" (irmãos, por exemplo, de que ele esteve apartado, em miúdo) ?

Dito pelo Dino a frase tem uma grande força, a da cruel verdade, a da autenticidade, a do testemunho... Recorde-se que ele não teve pai nem mãe, ou melhor, teve uma avó maravilhosa que ele trata com desvelo... Escreve para a namorada (, e futura mulher, ) e pede-lhe: "Não digas nada à minha avó"...

E o título da série (e possível título de um livro a publicar) é tirado da boca da avó: "Ai, Dino, o que fizeram de ti"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dino, aconteceu com todos... é humano: "Longe da vista, longe do coração"... Alguns de nós fomos "cruéis": deixávamos a família sem notícias, semanas a fio...

Eu hoje caio em mim e dou conta do meu comportamento "cruel", involuntariamente "cruel", para com os meus pais e irmãs... Já era lacónica, quando lhes escrevia, telegraficamente... Aproveitava para mandar, de vez em quando, uma foto, como prova de vida... E poucas linhas.

A guerra alienou-me, provocou um "curto-cirucuito" nas minhas relações com a família e os amigos... Só agora estou a reler as cartas que escrevi a alguns amigos e que nunca pus no correio... Por mania da perseguição, por medo de serem intercetadas pela PIDE/DGS, eu sei lá!... Que estupidez, a minha!... Hoje sei que o SPM era um serviço... seguro!...

Em contrapartida, a minha mãe rezava por mim todos os dias!... A minha mãe, as minhas irmãs, o meu pai... Que ingratidão, a minha!... É algo que ainda me dói, e de que tenho pudor em falar... Parilho contigo... É verdade, a puta da guerra ia-nos minando o amor que tínhamos pelos nossos, por aqueles que mais nos queriam... Sim, fomo-nos esquecendo deles, dia a dia....