Foto nº 3
Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar]. [P18848].
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER,
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE >
A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE > AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NA BASE DO SARÁ (FOTOS DO MÉDICO HOLANDÊS ROEL COUTINHO)
(Parte II – Resposta ao P18848) (*)
1. INTRODUÇÃO
Ainda que com algum atraso, o que lamento, a presente narrativa surge na sequência de uma outra relacionada com a temática em título – P18848 – com o objectivo de alargar um pouco mais a reflexão sobre os conteúdos então apresentados. Pretende-se, assim, dar cumprimento à promessa feita no fórum, no sentido de melhor esclarecer as dúvidas suscitadas em cada um dos comentários elaborados pelo auditório, e foram muitos, o que naturalmente agradeço.
São relevante neste caso, por exemplo, os cometários do C. Martins, que aproveito para citar:
"CONFUSÕES… PROPAGANDA [Vd. foto nº 1]
É sabido da grande dificuldade na evacuação de feridos do PAIGC, no interior do território da Guiné. Analisando as fotos nomeadamente a da dita intervenção cirúrgica verifica-se que o cirurgião [médico cubano Dr. António] tem bata cirúrgica e tem luvas, mas não tem máscara facial. O doente está coberto com um lençol do qual se encontra material cirúrgico, supostamente já utilizado.
Suponho que esteja a suturar um ferimento no abdómen. O doente foi anestesiado com anestesia local ou geral? Ninguém em redor tem qualquer preocupação com a assepsia, no mínimo colocarem máscaras faciais, e estarem afastados. Não se vêm quaisquer insectos, sendo a intervenção cirúrgica ao ar livre e no meio da mata, é de estranhar. Não se vê qualquer aparelho para avaliar os sinais vitais, nomeadamente um esfigmomanómetro (medidor de tensão arterial).
Julgo que se o doente não morreu do ferimento… morreu da cura. Como foi esterilizado o material? Segundo as informações que tenho… tentavam evacuar os feridos… só que a esmagadora maioria morria durante o trajecto. O PAIGC tinha hospitais de rectaguarda em Boké, na Guiné Conacri, e em Ziguinchor, no Senegal. Foram efectivamente ajudados por médicos cubanos, e provavelmente alguns estiveram no interior da Guiné, mas a grande maioria só estiveram nos respectivos hospitais já referidos.
É preciso analisar se são factos reais ou se é mera propaganda". AB. C. Martins.
Antes de mais, considero as questões acima identificadas como pertinentes. Aliás, a mesma opinião já a tinha manifestado no comentário escrito a este propósito.(*)
Chegados aqui, convém recordar que a narrativa anterior, tendo por base uma dimensão histórica específica, foi estruturada a partir da triangulação das fontes consultadas, em que grande parte do espaço foi ocupado com imagens seleccionadas de um universo de algumas centenas, do álbum do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC no apoio aos actos médicos, quer de combatentes, quer da população sob o seu controlo.
Por isso, acredito que as imagens apresentadas correspondam a "factos reais", todas elas obtidas num contexto de "reportagem fotográfica" de dimensão deontológica, para mais tarde recordar como experiência vivida naquela região e naquela época, e como valor sociocultural e profissional a partilhar ao longo da vida. Adiciona-se, também, o facto do médico Roel Coutinho ter percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, nomeadamente as bases de Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).
Para além das imagens (fotos) terem sido obtidas há quarenta e cinco anos, não entendo o conceito "propaganda" como perspectiva enganosa, mas sim "propaganda" como conjunto de acções específicas para dar a conhecer algo. Estou nesta… por ser este o objectivo das minhas narrativas.
2. TESTEMUNHOS DO MÉDICO DOMINGO DIAZ DELGADO (1966)
Como suporte historiográfico, recordo alguns dos testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n-1936-), referentes à sua passagem pela base do Sará, durante o segundo semestre de 1966, ou seja, sete anos antes das imagens do médico Roel Coutinho.
Diz ele: […] "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte.
De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo [NT].
O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.
De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 1966] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]
Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as principais bases do PAIGC existentes nessa região e os possíveis itinerários até à fronteira com o Senegal de modo a proceder à evacuação dos feridos para o Hospital do PAIGC, em Ziguinchor.
3. TESTEMUNHOS DO MÉDICO ROEL COUTINHO (1973-1974)
Aos depoimentos do médico cubano Domingo Diaz Delgado reportados ao ano de 1966, e referidos no ponto anterior, apresentamos abaixo uma sequência de imagens do espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho] obtido durante os anos de 1973/1974.
Na ordem estabelecida, independentemente da omissão de explicações sobre cada detalhe, creio ser possível encontrar respostas às questões pertinentes apresentadas pelo camarada C. Martins. No global, com a divulgação destas imagens, procura-se satisfazer, igualmente, a curiosidade de todos.
Por último, é justo agradecer ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG, contributos importantes para o esclarecimento possível sobre a prática dos actos médicos em contexto de conflito bélico e como uma visão «do outro lado do combate».
Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974
[fotos de 3 a 13]
Foto nº 4
Foto nº 5
Foto nº 6
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 02 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Putting on a surgical gown. [O médico cubano, Dr. António, vestindo a bata cirúrgica].
Foto nº 7
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Preparation of local anesthesia. [O Dr. António preparando a anestesia local].
Foto nº 8
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 05 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Surgical instruments table. [Mesa com instrumentos de cirurgia].
Foto nº 9
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 09 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Local anesthesia. [O Dr. António introduzindo a anestesia local].
Foto nº 10
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 35 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Cuban nurse checks blood pressure. [O enfermeiro cubano Gustavo medindo a pressão sanguínea durante uma operação cirúrgica].
Foto nº 11
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Operation from distance. [Operação cirúrgica observada à distância].
Foto nº 12
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat. [O médico cubano, Dr. António, durante uma consulta].
Foto nº 13
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - "Waiting room". [População do Sará aguardando pela sua consulta médica].
Nota Final:
Para concluir este texto, quero relevar as preocupações, enquanto médico, do camarada C. Martins. Outra coisa não era de esperar de um profissional que diariamente tem na sua frente, e como principal preocupação deontológica, a segurança dos cuidados de saúde prestados a quem deles precisam.
Outro caso, é a missão dos profissionais de saúde em contexto de guerra, particularmente a do conflito armado que nós, os ex-combatentes, conhecemos há mais de meio século no CTIG. Essa situação não era apenas problemática para a logística das nossas forças armadas. Para o PAIGC, quer gerir recursos que não havia/tinha, materiais e humanos, seria certamente muito mais dramático e doloroso, onde, por essa causa/efeito, a questão do "protocolo clínico" não era possível observar/respeitar.
Não pondo em causa a competência de cada um dos clínicos que decidiram colaborar com os movimentos de libertação, creio que o primeiro objectivo, presente em cada acto, seria "não fazer mal", esforçando-se por reduzir, tanto quanto possível, os efeitos adversos das diferentes práticas de saúde não seguras, onde se incluíam, também, as cirurgias. (**)
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
22OUT2018.
_______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 15 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)
(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19046: (D)o outro lado do combate (36): Bigene, agosto de 1972, «Operação Silenciosa"... (Jorge Araújo)
8 comentários:
Como eu já suspeitava, o dr. Roel Coutinho é de origem judaico-portuguesa, do lado do pai. A mãe é de origem alemã.
A família esteve escondida durante a guerra. Ele nasceu em 1946, mas a irmã nasceu durante a guerra, escondida em casa de vizinhos...Ele acabou por assumir o seu passado de judeu sefardita... Foi pelo menos o que eu conseguiu perceber de uma entrevista a um revista, em holandês, língua que não domino. Utilizei o tradutor do Google. A revista, trimestral, é a "Benjamin", editada pela JMW (Ação social judaica), portanto uma revista que tem como público-alvo os holandeses de origem judaica.
https://www.joodswelzijn.nl/sites/default/files/pdf/benjamin_pdf/Benjamin_111_PESACH_voor_internet.pdf
Fiquei a saber que a revista "Benjamin" é publicada pela JMW (Serviço Social Judaico) e aparece quatro vezes por ano com uma tiragem de 9.000 exemplares. Tme distribuição gratuita nos Países Baixos.
O título da entrevista em holandês, a Roel Coutinho, sobre a vida e a sua obra e a sua história de família é:
“Ik had dat Joods-zijn gewoon weggedrukt.”
O que, para o tradutor do Google, quer dizer:
"Eu tinha aquele judaísmo apenas empurrado para longe"... (Não é tradução perfeita, mas percebe-se...)
Hebt u als jongetje barmitswa gedaan?
“Nee, mijn ouders waren niet gelovig. Mijn vader heeft een
Portugees-Joodse achtergrond, zijn familie is al eeuwen
hier. Mijn vader was een anarchist, hij was links, het geloof
was niet belangrijk voor hem. Mijn moeder, die een Duitse
achtergrond had, was ook niet gelovig opgevoed. Mijn
ouders waren totaal geassimileerd. De uitbraak van de
oorlog, de vervolging, de onderduik, hebben mijn vader en
moeder juist daardoor diep geschokt.”
O que eu percebi deste excerto da entrevista é que o Roel Coutinho não teve uma educação religiosa, porque os pais não eram religiosos. O pai era de origem "judaico-portuguesa" (sic), "sua família existe aqui há séculos" (sic), os Coutinho... Seguramente expulsos de Portugal, perseguidos pelas leis anti-semitas de Dom Manuel I e sucessores e depois pela Santa Inquisição...
"Meu pai era um anarquista"... A mãe, de origem alemão, também não era uma pessoa crente. Os pais estavam perfeitamente integrados e identificados com a cultura holandesa... A ocupação nazi na Holanda, na II Guerra Mundial, veio obrigá-los a assumir ou repensar as suas raízes...
Quando ele foi para a Guiné, com 27 ou 28 anos, em 1973/74, será que o médico holandês já sabia das suas origens portuguesas ? Uma pergunta intrigante...
Ao que parece, ele tem-se interessado, agora, depois de reformado, pela história da família... De qualquer modo, Coutinho não é decididamente um apelido holandês...
Caro camarada J.Araújo
Observando atentamente as fotos,não é uma cirurgia a um ferimento de guerra,mas provavelmente uma herniorrafia (operação a uma hérnia )eventualmente estrangulada, ou uma oclusão intestinal , que no contexto de estadia no mato se justificaria,porque o doente morreria se não se fizesse.
Não sejamos ingénuos, o PAIGC e seus aliados eram peritos em fazer "PROPAGANDA" muitas vezes exageradamente--ex. (MARIA TURRA).
Em guerra a contra-informação é muito importante.
Os médicos cubanos foram importantes nos cuidados médicos aos combatentes do PAIGC,mas cuidado com os mitos sobre a "medicina cubana" no passado e no presente.
AB
C.Martins
Camaradas: estas fotos mereciam ser vistas pelos olhos de um cirurgião... Temos aqui alguns na Tabanca Grande. De qualquer modo, o nosso obrigado pelas "achegas" do C. Caria que é médico de clínica geral e familiar, além de ter sido, no passado, um valente artilheiro.
Interessante, o pormenor da bata dos enfermeiros, não é branca (dava muito nas vistas dos nossos aviões...) mas "camuflada"... A rapaziada do PAIGC também tinha os seus profes e os seus buques...LG
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