Queridos amigos,
Retive este episódio com enorme satisfação, atendendo a que foi escrito por um cavalheiro, disso estou seguro e também passo a contar a história.
O Ministro Valente de Oliveira, que tinha como Secretário de Estado do Ambiente o Engenheiro Carlos Pimenta, em 1977, deu-me indicação, através da sua Secretária, que me recebia no dia tal à hora X, no Terreiro do Paço. Carlos Pimenta já me advertira que propusera o meu nome para coordenador de um grupo interministerial de trabalho que tinha um nome pomposo: para combater a degradação ambiental visual.
Documentei-me, achei a tarefa aliciante, e no dia tal à hora X, um quarto de hora antes, subi aquelas escadarias medonhas e fui metido numa sala com jarrões chineses e uma mesa Luís XV. Escassos minutos depois da hora marcada, abre-se a porta e aparece o Ministro que me conduz afavelmente para o seu gabinete e me pergunta se quero chá ou café, ele próprio iria preparar. Olhei-o atónito, era a primeira vez que um ministro agia com tal deferência comigo. Discutimos qualidades de chá, abriram-se e fecharam-se caixas, escolhi um chá russo, o Ministro preparou as coisas, ao mesmo tempo ia conversando comigo sobre o que se esperava deste grupo interministerial de trabalho.
A tudo disse que sim, garanti-lhe que seis meses depois teria relatório, ele disse-me que já sabia que era adepto da prontidão. Houve mais cavaqueio, o Ministro levantou-se, abriu a porta e conduziu-me ao topo da escadaria, curvámos a cabeça, exprimi-lhe a minha satisfação em poder trabalhar com alguém com tais primores de caráter. O Ministro agradeceu. Fiquei seu admirador.
Mais tarde, mostrou-se apreciador do trabalho que tínhamos desenvolvido, uma equipa de luxo. Mas é assunto que não cabe aqui.
Um abraço do
Mário
Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante
Beja Santos
Encontrei no livro “A Engenharia Militar na Guiné”, coordenado por Alberto da Maia e Costa, edição da Direção de Infraestruturas do Exército, Julho de 2014, de que já aqui se fez recensão,[1] um testemunho bem divertido assinado pelo Tenente Miliciano de Engenharia Luís Valente de Oliveira, que, como é de todos sabido, desempenhou por muitos anos cargos ministeriais.
Diz Valente de Oliveira que integrou a primeira Companhia de Engenharia que foi para a Guiné, a Companhia Mista de Engenharia n.º 447, em 1963.
A parte mais expressiva do trabalho que lhes coube teve a ver com a construção de quartéis de todo o tipo, mas também melhorias em instalações já existentes, a fortificação de unidades, e o abastecimento de água potável.
Estavam instalados no antigo aeródromo de Brá:
“Havia um hangar que servia para quase tudo, desde arrecadação de material a caserna. A messe dos oficiais era uma tenda de lona, e a messe dos sargentos era uma antiga construção de apoio à base aérea. Esperando-se a chegada de mais companhias, foi decidido começar a construir um novo quartel em Brá. Foi-me atribuída a coordenação de apoio a todo o setor Norte da Guiné e a construção dos aquartelamentos de Brá”.
Tudo se processou como abreviadamente se passa a contar. O Engenheiro Valente de Oliveira pediu ao Capitão Perry da Câmara que lhe enviasse livros respeitantes à construção em países tropicais húmidos, a necessidade de inventar e improvisar era enorme, como ele explica:
“A estrutura de base dos diversos pavilhões era metálica, pré-fabricada pela Mague e suscetível de um aproveitamento bastante elástico. Mas, tirando a cobertura tudo o resto teve que ser inventado, de preferência com recurso aos meios de que dispúnhamos no local: madeira e blocos de cimento usando laterite desagradada como inerte. As boas regras recomendavam que as construções fossem orientadas transversalmente às correntes de ar dominantes, que as fachadas ficassem à sombra, que se assegurasse uma ventilação permanente, a todos os níveis, que o pavimento fosse relativamente elevado em relação ao terreno circundante. Assim, fizemos, em toda a Guiné, dezenas de pavilhões para casernas ou refeitórios, para gabinetes ou enfermarias… Só os balneários e as arrecadações escapavam a estas regras estritas, os primeiros porque eram muito abertos, os segundos porque tinham, mesmo, de ser fechados. Todas as aberturas eram providas com rede mosquiteira”.
Eng.º Luís Valente de Oliveira |
“Sucede que, passados 30 anos, exercendo eu funções governamentais, fui convidado pelo meu homólogo do Governo da Guiné para fazer uma visita oficial ao seu país. É costume eles chamarem-nos mesmo de homólogos: o homólogo quer café ou chá? O que dá um colorido especial às conversas.
Em Bissau não há muito para fazer, de modo que eu visitei praticamente todos os membros do governo, com quem mantive agradáveis trocas de impressões. Eu conhecia bem o território e tinha lido muito o que, sobre ele, haviam escrito personalidades ilustres como o Almirante Sarmento Rodrigues, os Comandantes Teixeira da Mota e Peixoto Correia, António Carreira e alguns outros. Isso permitia que a conversa fosse viva e lhes interessasse, nunca nenhum deles tendo perguntado porque é que eu estava tão bem informado acerca dos problemas da Guiné. Ou achavam que eu me tinha preparado para a visita ou, então, que era natural que os portugueses soubessem bastante acerca do seu país.
Assim, desde o Primeiro-Ministro e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, sempre acompanhado do meu homólogo, visitei cerca de uma dezena de membros do Governo.
Em determinada altura, fomos ver o ministro das Obras Públicas. Qual não é o meu espanto quando verifiquei que o ministério estava instalado no antigo Quartel de Engenharia e que o gabinete do Ministro era um dos espaços onde eu e os outros camaradas tínhamos tido as nossas secretárias.
Verifiquei que as aberturas guarnecidas com persianas que asseguravam a ventilação tinham sido tapadas para encaixar um aparelho de ar-condicionado que não trabalhava. O calor era insuportável mesmo tendo-nos posto em mangas de camisa. Falámos um pouco de tudo, nomeadamente das estradas que estavam em reparação ou construção, das pontes projetadas e dos barcos que ainda asseguravam a passagem dos rios em certos pontos que eu bem conhecia. Em fim de conversa desabafei: 'Senhor Ministro! O seu gabinete é muito quente!'...Logo veio a resposta esperada: ‘Montou-se o ar-condicionado mas ele avariou, não havendo ninguém na Guiné que o saiba reparar, de modo que eu sofro este calor que não abranda, mesmo com a porta do gabinete aberta!’.
Vi que todas as aberturas que asseguravam a ventilação transversal do edifício tinham sido cuidadosamente tapadas com argamassa, tendo permanecido, contudo, os elementos de madeiras originais.
Cuidadosamente perguntei-lhe se ele não tinha pensado em voltar a assegurar o funcionamento original do edifício retirando o aparelho avariado e a argamassa, aliás posta sem grande cuidado. Olhou para mim intrigado: ‘Acha que melhora?’. ‘Tenho a certeza’, foi a resposta. ‘Como é que sabe?’. ‘Foi eu que fiz!’.
Nunca esquecerei a cara do ilustre ministro. Esbugalhou os olhos e, como sucede frequentemente em África, tudo acabou com uma enorme gargalhada e um grande abraço de amigos para sempre".
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Notas do editor
[1] - Vd. poste de 16 DE MARÇO DE 2020 > Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20880: Notas de leitura (1280): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (3) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Mário, deliciosa a história... E podia ter um mural ao fundo com uma lição de "moral": Não há Estados de tipo pronto a servir, ou de chaves na mão...
Sem quer pretender ser paternalista e, muito menos, sem querer ofender os nossos amigos da Guiné-Bissau, foi isso que aconteceu sob o regime de Luís Cabral e seguintes... De repente choveram "presentes envenenados", da Suécia, da URSS, etc., como jactos particulares, Volvos, fábricas novinhas em folha...
E, naturalmente, o deslumbramento... Depois é uma tristeza, ver como eu vi em Luanda equipamentos hospitalares com alguma sofisticação tecnológica, oferecidos pela Itália, a apodrecer a um canto, á chuva e ao sol, porque ninguém os sabe montar e operar... Vi isso em 2003, no Hospital Amércio Boavida...
Os efeitos perversos do "novo riquismo" são visíveis hoje em plena pandemia de COVID-19acontecer: perdemos muitas competência, como a mecânica, as artes e ofícios tradicionais, etc., porque é tudo "muito mais barato", deslocalizando a produção e importando de fora, "made im China", ao preço da chuva mijona...
As nossas avós sabiam fazer o pão em casa... Os netos estão agora a aprender... Não temos máscaras, gel detergente, ventiladores, etc., porque descurámos coisas tão alimentares como a "segurança estratégica"...
Enfim, pode ser que aprendamos alguma coisa com esta situação-limite... Desde que tenhamos humildade e capacidade de autocrítica e sentido de solidariedade intergeracional, nacional e internacional...
Os edifícios públicos e também os automóveis, com ar condicionado cairam no goto nas ex-colónias e ...cá.
Isto (obrigatório) apenas após o 26 de Abril, que sorte a minha, retornado.
Foi o ar condicionado e a SIDA, tudo depois do 26 de Abril, que sorte a minha.
Houve coisas piores, bem entendido.
O relato desse episódio passado com o então ministro português Valente de Oliveira é notável.
Ele representa de uma só vez muito do que por aqui se tem falado e que muitos de nós têm revelado.
A calma, a serenidade, o "saber fazer e o saber estar" de quem tinha estado na Guiné, o bom relacionamento que havia (e ainda há) por parte das "partes envolvidas", a inadaptação das novas entidades governativas às realidades citadinas.
E achei particularmente interessante ter escrito como resultado do diálogo e da colocação em cheque da incúria que "...como sucede frequentemente em África, tudo acabou com uma enorme gargalhada e um grande abraço de amigos para sempre".
Interessante.
Hélder Sousa
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