quinta-feira, 29 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

 



Foto nº 1
  > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã  > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanco final,  com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre” > Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

 


Foto nº 2 > Encontro anual dos Tigres do Cumbijã > À esquerda o nosso querido Furriel Enfermeiro, que no dia mais negro da companhia teve a coragem, o sangue frio e competência na estabilização do nosso camarada alferes com um ferimento muito grave na garganta. Neste dia negro para além do ferido muito grave sofremos o segundo morto em combate e vários feridos ligeiros.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros. 
É engenheiro técnico reformado. Há dias, a 15 do corrente, 
 escreveu-nos o seguinte: 

(...) "Reconfortado pela café oferecido pelo régulo 
da Tabanca dos Melros, que rasgou os ares da Guiné no seu T6, o Gil Moutinho, 
com direito a visita guiada ao magnífico museu (que não paguei,
já que apresentei o meu cartão de antigo combatente) 
e pela agradável conversa com os catedráticos e velhinhos do blogue
o Carvalho de Mampatá e o Ferreira da Silva.
Uma tabanca a 10 minutos a pé da minha casa 
e que ainda não a tinha visitado enquanto tal. Sem desculpa!" (...)


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)


Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago 
(Op Balanço Final)

 

Ao terceiro dia da Operação Balanço Final, dois grupos de combate da companhia saem de Cumbijã com destino a Nhacobá para render os outros dois grupos de combate que aí pernoitaram.

Percorridos uns quilómetros, numa zona de vegetação densa, somos emboscados por um grande grupo de guerrilheiros que nos surpreende com um forte poder de fogo de armas ligeiras, RPG e morteiro. Dada a surpresa e a configuração do terreno demoramos algum tempo a reagir.

Depois da surpresa lá conseguimos rechaçar o ataque, fazendo estragos ao IN, mas com consequências dramáticas para nós: um soldado morto, um Alferes ferido com muita gravidade e alguns feridos ligeiros. 

Depois de acionado o pedido de ajuda à aviação, bem como o pedido de um possível helicóptero para evacuação urgente do alferes gravemente ferido, era indescritível o sentimento em cada um de nós, obviamente de medo no primeiro momento, mas depois de raiva com a vontade de irmos atrás de quem provocou todo aquele horror, num sentimento primário de vingança (compreensível).

Depois de cumprida a evacuação dos nossos camaradas; pois que a preocupação maior era dar segurança ao extraordinário trabalho do furriel enfermeiro e à sua equipa nos primeiros socorros aos feridos bem como assegurar a operação de evacuação; caímos em nós e ninguém conteve compulsivamente as lágrimas.

O nosso camarada alferes, evacuado para o Hospital de Bissau, foi passado pouco tempo, dada a gravidade dos ferimentos, evacuado para Lisboa.

Depois da bem sucedida, complexa e arriscada operação de assalto a Nhacobá, esta emboscada foi um dos confrontos mais duros e de maior dramatismo para a companhia. O IN queria mostrar que a ocupação definitiva da sua antiga base não era assunto encerrado.

As flagelações constantes ao destacamento bem como os ataques ao arame eram momentos de grande aflição, mas o controlo da situação era quase absoluto já que nos viamos uns aos outros e nos sentimos todos juntos a enfrentar a situação. Num contacto no mato, só vemos o camarada que está à nossa frente e o que está atrás de nós. Disparamos por instinto, de onde ouvimos os disparos do IN, mas sem ter a certeza da configuração e disposição no terreno das nossas forças, correndo sérios riscos de fogo amigo. 

A mobilidade do grupo IN que conhece bem a zona e se pode movimentar e dispersar reagrupando-se facilmente num outro local, são fatores que os colocam em situação de grande desvantagem já que a nossa movimentação tem de ser sempre organizada e em grupo sem nunca perder de vista o camarada da frente e o de trás. Quem se perder dificilmente alcançará o destacamento.

Este foi, para mim, o momento mais difícil dos dois anos passados na Guiné. Pelas perdas que nos apertava o coração e nos enchia os olhos de lágrimas, mas também pelo que nos dava a conhecer do que seria o futuro próximo, instalados na antiga base do PAIGC, sem o mínimo de condições de segurança e habitabilidade.

Sentíamos que, o que nos era exigido, depois da ocupação do Cumbijã e o assalto a Nhacobá, para além de injusto (dado tudo o que já tínhamos sofrido), era algo de desumano.

Este foi também o momento de viragem, onde passamos, inexplicavelmente, a relativizar perdas, onde todos perdemos um pouco de nós (tal como éramos) e passamos a ser outros sem deixarmos de ser nós próprios. Confuso, mas foi assim mesmo…

Passamos a esquecer o dia de ontem rapidamente (em defesa da nossa saúde mental); a viver o presente intensamente (não deixando de viver a nossa juventude, mesmo naquelas condições, em convívio com um grupo de amigos que as contingências da guerra nos unia ao ponto de o sofrimento ou alegria de um ser o sofrimento e a alegria do grupo) e a não pensar muito com o amanhã (aprendemos com o tempo a não sofrer por antecipação). 

Lendo tudo o que outros disseram sobre nós (alguns excertos aqui publicados) é claramente percetível o que acabo de afirmar.

Dou comigo, hoje, passados todos estes anos, a ter dificuldade em reconstruir a fita do tempo. Questiono-me muitas vezes se tudo o que a minha memória guardou é verdade ou ficção. Se tudo o que a minha memória me diz é realidade ou sonho.

Não faz parte destas minhas memórias (nunca o faria) transformar os confrontos da CCav 8351 com os guerrilheiros do PAIGC como se de um jogo de futebol se tratasse,  contabilizando os mortos e feridos de um lado e do outro. Contudo, não deixa de ser perturbador o que está vertido em documentos oficiais do exército, bem como em relatos de outros camaradas, transcritos nestas memórias no capítulo: “O que outros disseram de nós”

Uma das imagens que várias vezes me ocorrem à memória, e me continuam a perturbar, é a visão de dois guerrilheiros mortos, já despojados dos seus haveres e “roncos” por milícias africanos, deixados na mata no primeiro dia da operação “Balanço Final”. 

Arrepia-me a indiferença como o fizemos e como permitimos a profanação dos seus cadáveres despojados até das suas fardas. Não concebo, nem aceito, este desprezo pela vida humana. Tinha uma réstia de esperança que tal não passava de um sonho, tudo era fruto da minha imaginação. Infelizmente tal não se confirmou. Fui confrontado com a realidade pura e dura ao ver, duas fotografias, tiradas por um colega de uma outra companhia que participou na operação, com a imagem dos dois guerrilheiros mortos no momento em que passavamos por eles já despojados, pelas nossas milícias, dos seus haveres e “roncos”. Por mais que tente contextualizar, esta imagem continua a ser muito dolorosa e perturbadora…

(Continua)
___________

Nota do editor:

(*) Últimos cinco postes anteriores da série;

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22350: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XII: A primeira noite em Nhacobá (Op Balanço Final)

23 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo

7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

26 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22225: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX: O primeiro murro no estômago

1 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Luís Graça (by email, c/c Gil Moutinho, Carvalhó de Mampatá e José Ferreira)

30 jul 2021 09:06

Joaquim, só hoje de manhã é que me dei conta que afinal o teu poste não tinha saído. Fui para a cama, meio ensonado, convencido que o poste estava "agendado" para depois da meia-noite... Mas já agora já está publicado. Mas na América já o podiam ter lido...

Quanto ao me pedes (, autorizações citações e fotos do blogue), conta comigo e com o blogue. Terei todo o gosto em escrever-te o prefácio ou pósfácio. Quanto a citações, és livre de as fazer e usar... As fotos têm de ter o OK do blogue e do autor...Seleciona as que queres, eu depois entrarei (ou entraremos) em contacto com os autores...

Fico feliz por teres conhecido a malta (boa) da Tabanca dos Melros. Não é malta boa, é do melhor. Tens que fazer uma apresentação do teu iivro lá nos Melros, afinal teus vizinhos... Se puder, irei lá estar, com todo o gosto. Oxalá a saúde (e sobretudo as pernas...) mo permitam.

Um abraço fraterno, Luis

PS - A foto da Joana e do Tigre é um espanto!... Dá para os "miúdos da escola" escreveram uma fábula sobre a "estupidez da guerra"... A cabra Joana do PAIGC, o nosso cão Tigre...

Valdemar Silva disse...

A cabra Joana e cão Tigre.
Até dava uma fábula, 'tá bem mas atenção que as crianças são curiosas e poderiam atirar com: a Joana ao ataque e o Tigre encolhido.
Ou os habituais reparos: mais uma a deitar abaixo a nossa tropa (um tigre) a encolher-se a um ataque no IN (uma cabra).

Costa, venha a continuação do segundo murro no estomago.

Abraços
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Aposto que a cabra Joana acabou no prato dos Tigres do Cumbijã. Chanfana, de cabra velha. Mesmo nascida depois da guerra, em 1974 já devia ser dura que nem um corno. Se assim foi, e o Joaquim confirmará, a pobre Joana terá sido um dos últimos despojos do império. Como a malta não come cão (a menos que houvesse algum macaense na CCav 8351), o resultado só pode ter sido Tigre 1, Joana 0. Mas pode haver outras narrativas...

Anónimo disse...

Julgo que os soldados do PAIGC eram dois jovens cubanos mobilizados ( de modo voluntário ou à força) para aquele território. Pela descrição de camaradas da minha companhia (C.ART.6250) e pelas fotos que me foram mostradas parece-me tratar-se de dois soldados muito jovens. O quadro humano é , para os mais sensíveis, de uma grande violência. Lembro-me até do modo extremamente emocionado como esse cenário me foi relatado pelo Zé Manel da Régua, logo que chegou a Mampatá proveniente dessa operação. Sobre o Angélico (Alferes) gravemente ferido nessa operação de Nhacobá, assisti, em Aldeia formosa à sua evacuação por avião. Felizmente veio a recuperar sem sequelas de monta, apenas uma cicatriz no pescoço.

Um abraço para o Joaquim, para o Luís e para todos os combatentes.

Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

Meu caro camarada e "ex-colega" (na reforma....)

Leio sempre com muito interesse e agrado o que escreves.
Com uma escrita escorreita, sem alardes, com grande humanidade.
Concordo em que esta foto da cabra e do cão é realmente uma preciosidade.
Já por aqui no Blogue foram produzidas memórias de mascotes, quase todas as Unidades teriam as suas. Houve até a revelação de uma noite de "matança" de cães .
Pela minha parte mostrei a companhia que os gatos me faziam nas longas noites de serviço na "Escuta".
Mas esta de dois animais bem distintos e de proveniências diferentes é fabulosa. Até pela "pose" dos dois: a cabra empinada, talvez em posição defensiva, talvez ofensiva e o cão expectante, quase indiferente.

Quanto ao relato em si, aos "murros no estômago", pois tudo pode ser resumido na frase "Este foi também o momento de viragem, onde passamos, inexplicavelmente, a relativizar perdas, onde todos perdemos um pouco de nós (tal como éramos) e passamos a ser outros sem deixarmos de ser nós próprios. Confuso, mas foi assim mesmo…"
Foi isso que se passou com a maior parte de nós. Rapidamente passámos a ser "outros".
E isso era bem notório quando vínhamos de férias. Os silêncios, os olhares, a estranheza. Alguns dos nossos interlocutores, a maioria, não percebia, e até nos incomodavam e irritavam com as suas questões, tantas deles despropositadas e uma das nossas defesas era o mutismo, a relativização, o desviar das conversas.
Mas sim, rapidamente deixámos de ser adolescentes.

Para terminar devo dizer que sou amigo do Vasco da Gama, a quem ouvi alguns relatos, mas que agora os teus completam muito bem.

Abraço
Hélder Sousa