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terça-feira, 6 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26769: A nossa guerra em números (29): nos quartéis do mato, dentro do arame farpado, a malta consumia em média, por ano e "per capita" , 21 litros de... álcool puro (14 em vinho, 5,4 em cerveja, 1,6 em bebidas destiladas)... (Aníbal Silva / Luís Graça)



O Luís Dias, ex-alf mil,  CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) dizia-nos, em 2010, que ainda tinha lá em casa "5 garrafas de uísque das que trouxe da Guiné"... Eram elas "uma 'President', uma 'Something Special', uma 'Dimple', uma 'Smugler' e uma 'Logan' (conforme foto...). Umas autênticas belezas". (*)

E acrescentava:

 "Alguns dirão que isto é um sacrilégio; porque será que o Dias não tratou destas 'meninas' em conformidade? Outros dirão que não é lá muito de beber e que, por tal facto, foi deixando andá-las lá por casa. Eu respondo: fui bebendo algumas, deixei outras ao meu pai, também ao meu tio Armando – este sim um grande apreciador – e fui ficando com outras e, olhem, ganhei-lhes amizade, porque olhava para elas e ia-as destinando a grandes momentos. Bebi uma, já não me lembro a marca, quando o meu filho nasceu há 30 anos. (...) Vou abrir a 'Dimple' quando fizer 60 anos, se Deus permitir que eu lá chegue,  e as outras serão para outras 'special ocasions' ” (...).

Comentário do editor LG: A Dimple já se foi!... E não faltarão ainda essas ocasiões outras especiais: os 80, os 90, os 100 anos... O uísque bom e velho não se estraga...

Foto (e legenda): © Luís Dias (2010). . Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Quais os artigos que mais se consumiam nas cantinas da tropa, no mato, na Guiné ?

Temos algumas indicações, a avaliar por uma pequena amostra das vendas (mensais)  na cantina da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), de acordo com os dados do balancete que nos foi fornecido pelo nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-fur mil vagomestre.(**)

Os dados respeitam às vendas no mês de maio de 1970. A companhia tinha 150 homens. Não havia subunidades adidas (a não ser um Pel Caç Nat no início da comissão). Por outro lado, só havia uma cantina / bar, embora houvesse refeitório (para as praças) e messe (para sargentos e oficiais).

Os artigos então mais vendidos foram (em unidades) (> 50):

  • Cerveja 0,3 l > 3977 (garrafas):
  • Tabaco Porto > 1034 (maços);
  • Coca-cola > 1402 (latas);
  • Tabaco SG > 754 (maços);               
  • Fósforos > 718 (caixas);
  • Leite c/ cacau 411 > 595 (embalagens);
  • Tabaco Português Suave > 395 (maços);
  • Cerveja 0,6 > 268 /garrafas);
  • Laranjada Shellys > 223 (latas);
  • Bacalhau > 96 (quilo ? embalagem ?);
  • Água Castelo > 65 (garrafas);
  • Sumol > 53 (garrafas ou latas);
  • Pilhas 1,5 v > 51


2, Se agruparmos estes itens por géneros (cerveja, tabaco, refrigentes, bebidas destiladas),  temos:


(i) Cerveja (0,3 l e 0,6 l) > 4245 garrafas (equivalente a 1353,9 l):

(ii) Tabaco (todas as marcas) > 2215 maços:

(iii) Refrigerantes (coca-coca e sumos) > 1680,5 (latas / embalagens)

(iv) Bebidas destiladas (uísque, gin, vodca, aguardente...) > 72,5 garrafas de 0,75l.


3. Admitindo que o mês de maio não era um mês "atípico" do ano, em matéria de consumo na cantina (estava-se no início da época das chuvas, já se saía menos vezes para o mato, embora no tempo seco, a partir de outubro, se pudesse beber mais cerveja...) podemos tentar calcular um valor médio anual "per capita" destas 4 categorias de bens consumidos:


(i) Cerveja:

  • 1353,9 l a dividir por 150 homens (=9,026 l) e a multiplicar por 12 meses, dá um consumo "per capita" anual de 108,3 l;
  • este valor pode estar subestimado; de qualquer modo, 108.3 l  "per capita" era já um valor seguramente muito superior à média nacional de 1970, e mais do dobro do consumo atual (em 2022, foi de 53 litros, segundo dados da European Beer Trends);

(ii) Tabaco:

  • 2215 maços de cigarros por mês dá uma média anual "per capita" de 177,2 maços;
  • é peciso ter em conta  que nem toda gente fumava: a prevalência de tabagismo entre homens com 15 anos ou mais anos de idade, em Portugal,  era estimada entre 40% e 50% em meados da década de 1970; 
  • portanto, aqueles de nós que fumavam, consumiam pelo menos um maço de cigarros por dia;

(iii) Coca-cola e sumos (refrigerantes):

  • 1680,5 latas ou embalagens num ano:  83,4 % corresponde à coca-cola... 
  • consumo anual "per capita" da coca-cola (=1402 x 12 =16824) seria de 112 latas; 
  • recorde-se que era uma bebida  proibida na metrópole, por teimosia de Salazar e das autoridades de saúde: além de ser vista  como um símbolo do ostensivo estilo de vida americano, haveria também um "argumento de saúde pública": além de poder ser facilmente associada à cocaína  ( e à "droga em geral"), o elevado teor de cafeína podia criar "habituação";
(iv) Uísque, gin, vodca, aguardente e outras bebidas destiladas:

  • temos um consumo mensal de 72,5 garrafas de 0,70l (ou de 0,75l, nalguns casos), o que dá 870 num ano;
  • a  maior parte é uísque de várias marcas =61 (84 %);
  • o restante: brandy (Macieira)= 4,5; gin = 6; vodca=1;
  • é mais difícil é saber o consumo destas  bebibas "brancas" (muito mais caras na metrópole) porquanto havia quem comprasse uísque  (mas também conhaque) para fazer "stock" e levar para casa, nas férias ou no final da comissão;
  • apesar de ser mais barato (no CTIG), o uísque (e o conhaque) era ainda um artigo de luxo para a maior parte da malta (as praças); mas era era também uma mercadoria muito apreciada; 
  • temos mais de 60 dezenas de garrafas de uísque vendidas por mês (720 por ano), incluindo o consumo avulso, na cantina (ao copo, com água mineral e gelo, se o houvesse) 
4. Mais difícil ainda é estimar o consumo de "álcool puro", per capita, anualmente...


(i) Vinho:

  • além destas bebidas (cerveja e bebidas brancas), os militares portugueses tinham direito a um copo de vinho à refeição; e  podiam também comprar na cantinha vinhos de marca como o Mateus Rosé ou o vinho verde branco Aveleda, Três Marias, Lagosta, etc.... (Vamos desprezar esses consumos, o vinho engarrafado era caro, a alternativa era a cerveja);
  • se cada militar bebesse 1 copo de vinho (200 ml) à refeição (almoço e jantar), ao fim de 365 dias seriam 140 litros;
  • admitindo que o vinho fornecido pela Intendência não ultrapassava os 10 graus, temos, um volume de álcool puro de 14 litros... (o vinho era mau e "batizado". toda a gente se queixava):

(ii) Cerveja:

  • sabendo que a cerveja Sagres tinha/tem 5º de teor alcoólico, o valor de 108,3 l consumido anualmente por cada militar correspondia a 5,415 l de álcool puro;

(iii) Bebidas destiladas:

  • o consumo anual médio, por companhia, poderia ser estimado (por baixo...) em  870 garrafas (0,70l, a 40º de teor alcoólico);
  • a dividir por 150  homens corresponderia a  5,8 garrafas (pouco mais de 4 litros);
  •  4060 ml x 0,40 (grau alcoolíco, médio)  = 1624 ml de álcool puro;


(iv) Álcool puro:

  • Somando o vinho (14 l), a cerveja (5,4 l) e as bebidas destiladas (1,6), são 21,0  litros no mínimo de álcool puro "per capita";
  • claro que aqui temos a velha história da falácia da média estatística: metade não fumava, mas grande parte bebia; o álcool era uma necessidade fisiológica e psicológica... nas condições de isolamento e de guerra em que se vivia.

5. Agora com a ajuda da Gemini IA /Google, acrescente-se em jeito de comentário:

  • de acordo com as estimativas mais recentes do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), referentes a 2019, o consumo anual per capita de álcool puro em Portugal (para a população com 15 ou mais anos) era de 12,1 litros;
  • este valor inclui o consumo de vinho, cerveja e bebidas destiladas, tanto o consumo registado como uma estimativa do consumo não registado, e exclui o consumo por turistas;
  • note-se que Portugal apresenta um dos consumos de álcool "per capita" mais elevados entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico).

De qualquer modo estes números, nomeadamente  sobre o consumo de bebidas alcoolólicas, têm que ser lidos e analisados com muitas reservas. 

Baseámo-nos no consumo de um só mês (maio de 1970) e de uma única subunidade de 150 homens (CCAV 2483, aquartelada na região de Quínara)... 

Os resultados são extrapolados... Precisamos de os confrontar com outros dados de outras fontes de informação (balancetes das cantinas de outras companhias, fornecimento mensal / anual da Intendência, etc.). 

Em todo o caso, estes números (***) ajudam-nos a ter uma ideia aproximada da "nossa grande sede", a  que pássavamos/passámos no CTIG, ao longo dos 22, 23, 24 meses de comissão... 

O tema do álcool em tempo de guerra é delicado mas não é tabu... Temos 45 referências a este descritor no nosso blogue. Mais de dois terços da nossa malta bebia, com maior ou menor moderação... E alguns já aqui admitiram, sem bravata nem falso pudor, que sim, que também lá apanharam alguns "pifos... daqueles de caixão à cova"... (AS/LG)
 __________________

Notas do editor LG:


(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5672: Estórias avulsas (23): Old Parr e Antiquary a 90$00 (Luís Dias)

(**) Vd. poste de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

Vd. também 2 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26754: (In)citações (269): Quem se lembra destes preços? (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

(***) Último poste da série > 2 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26644: A nossa guerra em números (28): Ainda a nossa 'adorável' ração de combate, nº 20...(que dava 3 refeições para um homem, por dia, no mato)

5 comentários:

João Rodrigues Lobo disse...

Recordando os bons momentos, lembro-me das boas cervejinhas geladas (já não me recordo da marca , (quem me lembra?), que bebiamos no meu pelotão sempre que reuníamos um bom grupo que não estivesse de serviço e que acompanhavam belas e saborosas ostras. Comi então tantas ostras que, depois de sair da Guiné nunca mais as comi ! Nem sei bem porquê. Mas das cervejitas ainda gosto. Quanto ao Whisky, sempre de boas marcas, era saboreado normalmente na messe ao fim do dia. Nunca fui grande bebedor mas por vezes lá ia um só com gelo ou com água Perrier. ( desta marca ainda me lembro). Há quem diga que era estragar o whisky. Mas sem querer ser indiscreto, depois de mais de 50 anos, ainda me lembro que na primeira parte da comissão, um oficial superior, alegadamente, andava quase sempre com um copo de whsky na mão. Quando vinha de férias e quando acabei a comissão também trouxe umas garrafitas de whisky para os amigos. Bons momentos são sempre de recordar.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João, na engenharia vocês podiam dar-se ao luxo de ter umas boas cervejinhas geladas... Mas no mato ?!... A malta tinha geradores nos quartéis (mas não nos destacamentos e tabancas em autodefesa...). Os geradores funcionavam umas horas, durante a noite, para iluminar (mal) a "rede de arame farpado"...Mal despontava a luz, de madrugada. eram desligados... Economia de guerra...

Nalguns casos, tínhamos minifrigoríficos a petróleo, com capacidade de armazenamento limitada (tal como os que existem ou existiam nos quartos dos hotéis)...

O "apagão", recente, da nossa rede elétrica fez-me recordar esses "tempos heróicos" das noites da Guiné... E quem andava no mato, como eu e os meus camaradas brancos e pretos da CCAÇ 12, aprendeu a andar no escuro, altas horas da noite, em bicha de pirilau, nas barbas das "barracas" do PAIGC...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

E viva o "uísque franco-escocês", o "scotch", não com soda mas com água de Perrier, já então mundialmente famosa água de Perrier, do sul da França....Qual água de Castelo, qual água de Vichy (esta tinha uma conotação tenebrosa, que eu sempre associava ao Governo fascita de Vichy!)...

Perrier, sempre, uma água mineral natural reforçada com gás natural da fonte e que apresentava um paladar único, inconfundível, com muitas bolhinhas... No quartel, nunca bebia uísque "puro" , sempre com Perrier (e com uma pedra de gelo, quando a havia...).

Mais do que a Sagres (havia também a Cristal), o uísque com uma pedra de gelo e água de Perrier era "a sede que se deseja(va)"... Em boa verdade, não me lembro de beber "água da Guiné"... Não havia água potável nos sítios desgraçados por onde andámos... Nunca encontrei o raio de uma fonte, de água cristalina como da Serra da Estrela ou do Gerês, onde pudesse matar a minha sede... A nossa grande sede... A grande sede que todos sofríamos, sobretudo depois de dois ou três dias de mato...

Também não era de beber cerveja... Mas já não bebo uísque há muito... Nem o compro. Agora compro, bebo às vezes e sobretudo ofereço uma aguardente DOC Lourinhã (que pede meças ao conhaque)...

Anónimo disse...

Albino Silva (atrvés do Formulário de Contacto do Blogger)
mai 2015 10:14

Caro Luís Graça

O teu telefonema de ontem de manhã foi uma agradável surpresa, que gostei
muito, pelo que agradeço a atenção. Ainda não tinha lido os teus comentários à contabilidade do meu "estabelecimento" e ao completar a sua leitura, fiquei perplexo com a tua capacidade de análise dos números apresentados e com a sua extrapolação. Nunca me passou pela cabeça fazer tal trabalho e até incapacidade para o fazer.

Melhor que dar agora resposta às tuas perguntas, talvez seja mais conveniente mostrar-te os únicos balanços da cantina em meu poder (Maio, Junho, Julho e Agosto de 1969),
muito embora não tenha os anexos de todos eles, numa próxima tua vinda à freguesia vizinha da Madalena VNG.

Fui gerente da cantina, acumulando com a função de vagomestre, de Outubro de 1969 até meio de Setembro de 1970. Já agora e antecipando um assunto a ser "postado" brevemente, passo a referir como eram aplicados os lucros da cantina. " Durante a permanência em Nova Sintra, com a minha gestão da cantina, os lucros resultantes da exploração eram aplicados na aquisição de bens que minimizassem as nossas dificuldades e entre outras, recordo, a compra de ventoinhas para os diversos abrigos.

Saídos de Nova Sintra para Tite, já não havia em que gastar o dinheiro em caixa. De acordo com o alferes Martinho, que na altura passou a comandar a Companhia e dado que eu estava em Bissau na comissão liquidatária, pesquisei em várias lojas artigos com interesse, para oferecer a todo o pessoal da Companhia. A melhor solução encontrada foi a aquisição de esferográficas Parker e com a concordância do alferes comprei uma para cada militar, mais ou menos 150. Foi gravada a inscrição Ccav 2483.

Por agora é tudo e se não for antes, até ao nosso encontro na Madalena, que fico a aguardar ansiosamente.
Um abraço de amizade
Aníbal Silva

Luís Dias disse...

Já posso referir que as minhas garrafas de uísque já se foram todas. Fui encontrando, desde 2010, boas razões para as mandar abaixo. Abraço a todos os camaradas. LD