

O nosso camarada Matos, na Guiné, era um homem que brincava com o fogo, um sapador, o tal das minas e armadilhas ( o terror de qualquer infante, de um lado e do outro), o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava... Felizmente regressou inteiro... Mas deixou lá dois anos de vida (só ?). Ei-lo aqui ao espelho, fazendo a sua autoscopia... Mais um texto de antologia do nosso blogue (entre centenas que temos publicado)... Obrigatório ler para quem quiser conhecer, do lado de cá do monitor, a angústia do sapador em acção... Um abraço para o António Matos e outro para o Luís Faria, que felizmente regressaram para contar aos filhos e aos netos essa estranha história de gente que aos 20 anos andava em cima do fio da navalha (quer eu dizer, da faca de mato)... (LG)
1. Mensagem do António Matos:
Meus caros editores,
Após o desafio do Luís Graça, aqui está uma pequena contribuição minha para o tema (**).
Anexo 4 fotos:
(i) Uma de quando cheguei à Guiné;
(ii) outra a meio da comissão, no campo de minas;
(iii) uma outra da mina descrita no texto;
(iv) e finalmente outra da actualidade.
Façam como entenderem melhor no seu aproveitamento.
Embora ande por aí um texto meu por publicar, gostava de pedir que este fosse mais rápido por uma questão de actualidade com o pedido do Luis.
Se puder, óptimo !
Se tiver que ultrapassar outros textos, .... óptimo !
Se não puder ... Stº António !
Um abraço,
António
2. Espelho meu, diz-me quem sou eu (2) > António Matos
Um dia, vejo-me de faca de mato em riste, camuflado desbotado de tanta lavagem ter suportado, olhando para o céu como que a implorar capacidade de compreensão da situação do momento, rodeado de alguns camaradas mais absortos uns do que outros, numa missão cujas consequências não nos era dado reflectir ainda que as alterações comportamentais pessoais viessem a ser extremamente condicionantes do que seria de supor se se observassem, exaustivamente que fosse, as apetências que o nosso ADN deixaria antever.
Em menino também fui dos que brinquei ao Zorro e ao Tonto (eu era o Zorro !), ao David Crocket, ao chefe da Brigada Montada, ao Major Alvega e neles via os heróis, os justiceiros, os aventureiros que queria imitar...
Eram saudáveis as lutas que travava de espada (de madeira e numa imitação de O Pirata Vermelho protagonizado pelo Burt Lancaster ) ou aos cowboys onde o cavalo mais não era do que o som imitativo dum galope (às vezes umas relinchadelas ) e a postura se assemelhava ao do equídeo a correr numa cadência de trote...
De quando em vez o nosso quintal que dava vida aos desfiladeiros do Grand Cannyon, transformava-se em palco de tiroteio de TÁTÁRÁTÁTÁ TRRRRRÁÁÁÁÁÁ e discutíamos acerrimamente que “tu já morreste !”, “eu acertei-te !”, “tens que morrer !”
Depois começava a escurecer e regressávamos a casa para jantar e fazer uma sabatina com o pai sobre tabuada ou os rios de Portugal...
Um dia, a faca do mato de lâmina afiada, emparelhando com objectos detonantes que não se destinavam às lutas do faz-de-conta, transportava-me para uma realidade abjecta e da qual eu participava activamente, calculando, milimetricamente, a colocação mais adequada do engenho para potenciar a sua eficácia destruidora ….

E ali estava eu, confrontado com o mata-ou-safa-te, não discernindo capazmente entre o Bem e o Mal, o Dever e o não-Dever, entre o conceito de Humanidade e o de não-Humanidade que uma guerra gera ….
E eis-me estupidamente no meio dum mato, a colocar minas estrategicamente pensadas, de acordo com sofisticadas tácticas de destruição, separadas a distância rigorosa umas das outras, numa densidade de penetração no terreno tal que não permitia a veleidade de alguém atravessar aquela zona sem accionar, pelo menos, uma delas...
E eis-me a esboçar um sorriso cada vez que concluía a montagem de mais uma, num claro sinal dos efeitos da guerra na integridade intelectual e psicológica dum menino de 22 anos obrigado a ser homem rapidamente, custasse o que custasse !
- PUM !
- Ah foda-se ! O que foi isto ?
O coração saía pela boca tal a pulsação perante o inesperado rebentamento.
- O que foi, porra ?
Desta vez o caso não foi grave. Tinha sido um macaco que acionara a mina e ficou espalmado no terreno.
Porém, a extrapolação do espectáculo para um cenário cujos protagonistas fossemos nós, criou reacções de grande constrangimento e os efeitos psicológicos não tardaram a aparecer.
O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas.

Essa tarefa era passada para os outros graduados do grupo mas ficava-nos sempre o aperto no peito ao imaginar que as tais regras básicas de segurança pudessem ser alijeiradas .
O dia acabava para aquela equipa passadas que estivessem cerca de 3 ou 4 horas ou se, por outro lado, houvesse um acidente.
Nessa altura seríamos imediatamente recolhidos para tentarmos lavar as más imagens.
É, pois, fácil de imaginar a alteração do estado de estabilidade emocional de cada um. A cada passo, e para não baixarmos a guarda, dava-se mais um acidente e mais um e mais outro...
Tenho para mim que foi a prova mais difícil em toda a minha vida onde tive que dinamizar um grupo de pessoas na concentração num objectivo (regresso à Metrópole ) e, simultaneamente, tê-las despertas para um perigo eminente mas que podia ser avaliado e minorado.
Nessa grande aventura tive sempre a companhia do nosso camarada Luís Faria e com ele protagonizámos uma cena que tem tanto de dramático e aterrador como de patético.
A situação passa-se aquando da desmontagem desse famigerado campo de minas.
Fácil será de compreender que havia factores que tornavam a operação responsável por elevadíssimos níveis de stress e entre eles estava o fim da comissão à vista e o facto de as minas não estarem todas nos sítios onde tinham sido colocadas (chuvadas e animais ocasionaram a deslocação de muitos dos engenhos) e, finalmente, uma catadupa de acidentes que aconteceram nessa altura.

É nesse ambiente que eu e o Luís Faria nos propusemos neutralizar uma determinada mina. Fruto do tempo passado desde a sua instalação até esse dia, a vegetação cresceu à sua volta bem assim como um bagabaga.
Aquela mina estava complicada mas por razões que agora não recordo, não optámos pelo rebentamento puro e simples.
Com a coragem que os 20 anos fazem confundir com irresponsabilidade, começámos a tornear o terreno circundante com o auxílio das facas de mato.
Pé-ante-pé, ou melhor, mão-ante-mão, estávamos a conseguir o objectivo definido –levantá-la com a prévia neutralização.
A cena não foi cronometrada mas hoje arrisco que podem muito bem ter sido uns 20 minutos de tensão ao máximo e com os nervos à beira dum colapso.
Nisto, entrámos numa dimensão etérea... O suor escorria pela cara como se uma torneira se tivesse aberto...
A noção que tenho foi de que entabulámos uma conversa de mortos onde nos questionávamos o que tinha corrido mal para termos morrido...
A escassos dois palmos das nossas caras, nós accionámos a puta da mina !
Reconheço a incapacidade de traduzir por palavras as emoções, os desesperos, as aflições por que passámos naquele momento enquanto não nos apercebemos que aquela mina, AQUELA E NÃO OUTRA ! tinha apodrecido e, embora accionada, não rebentou !
A ter acontecido, e tratando-se da mina que se tratava, julgo que seria difícil a um qualquer instituto de medicina legal recompor o puzzle e dizer quem era quem.
Julgo que esta cena não foi do conhecimento geral e, após fumarmos meia dúzia de cigarros seguidos, respirámos fundo e continuámos, alarvemente, a levantar minas...
António
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)
(**) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves