sexta-feira, 26 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11870: O que é feitio de ti, camarada ? (2): Afonso M. F. Sousa, residente em Maceda, Ovar, ex-fur mil, trms, CART 2412 (Bigene, Binta, Guidaje, Barro, 1968/70)



Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > O Furriel Miliciano de Transmissões Afonso M. F. Sousa junto ao centro cripto, cuja entrada é galhardamente protegida por bidões de areia, pintados de branco... Na realidade, o centro cripto era uma espécie de cofre forte dos nossos aquartelamentos, o santos dos santos, o mais misterioso recôndito da pátria lusa naquele pedaço de terra onde flutuava a bandeira das quinas... Neste caso onde só entrava o Afonso e o seu cabo cripto... Mais prosaicamante ele legendou a foto nestes termos: "fotografia deste jovem de então que, como responsável pelo centro cripto, aqui se apresenta de vigília (!) a esse espaço restrito e de seguras (?) confidencialidades ou secretismos".


Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > Localização do monumento de homenagem ao 1º Cabo Enfermeiro Silva, morto em combate em Bigene, a 21 de Setembro de 1968... O monumento, sob a sombra tutelar de um enorme mangueiro, está sinalizado na foto, com seta e legenda. O  edificio que se vê à esquerda (e hoje desaparecido), era a caserna de soldados e o depósito de
géneros. Repare-se no mangueiro cuja ramagem, à esquerda, atingia toda a largura da estrada (Barro-Bigene), e à direita camuflava todo o edifício da secretaria, comando, oficiais e centro cripto.





Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > Um monumento erigido à memória do 1º Cabo Enfermeiro Silva e que foi destruído a seguir à independência .

Fotos (e legendas): © Afonso M.F. Sousa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1.  A primeira vez que se falou dos três G - Guidaje, Guileje, Gadamael  (*)- , no nosso blogue, foi há mais de 7 anos atrás, em poste (o nº 41) de 2 de julho de 2005, da autoria de Afonso M. F. Sousa , ex-fur mil trms da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70), e em que se reproduziu o texto, já sobejamente conhecido,  de Serafim Lobato, jornalista, e antigo fuzileiro especial, "Estamos cercados por todos os lados", editado no Público, 28/12/2003. 

O nosso camarada Afonso Sousa reside em Maceda, Ovar,  e foi um dos tertulianos mais ativos no nosso blogue na I Série (**). De resto, continuou  a colaborar na a II Série do nosso blogue (iniciada em 1 de junho de 2006), tendo organizado diversos dossiês. [Vd. marcador Afonso Sousa.]

Deixou, entretanto,  de dar "sinais de vida", talvez por cansaço, saturação ou desinteresse, por volta de 2010. Continua, todavia,  a ter o endereço de email válido, e mandar-nos as boas festas todos os anos. Espero que ele esteja bem de saúde, que ele continue a ler-nos com prazer  e que se sinta com vontade para voltar a sentar-se, mais vezes,  no nosso bentém, à volta do poilão da Tabanca Grande. Curiosamente, não temos nenhuma atual do Afonso Sousa,  o que pode significar que ele quer manter a sua reserva de intimidade.

Com esta nova série ("O que é feito de ti, camarada ?"), queremos procurar reatar contactos com membros da nossa Tabanca Grande que nos últimos anos têm andado mais arredios do blogue. O Afonso fazia da lista dos 111 magníficos que transitaram da I para a II Série do nosso blogue. Na altura, eram  mais conhecidos como "tertulianos", membros da nossa tertúlia, hoje Tabanca Grande.

Entretanto, reproduzem-se a seguir excertos de alguns postes que o camarada Afonso M.F. Sousa [, ou Afonso Sousa,] publicou na I Série. 

(i) Afonso Sousa, ex-fur mil trms, CART 2412 (1968/70)

A minha companhia fazia parte integrante do COP 3 (com sede em Bigene, onde fizemos o treino operacional entre 31/8/68 e 14/10/68; depois foi a partida para Binta e Guidage).

Entrámos em Guidage em 17/10/1968, a substituir a CART 1648. Mais tarde referirei os dados cronológicos respeitantes à minha CART 2412, que inclui também a sua permanência (até ao termo de missão) em Barro (que o sr. Coronel A. Marques Lopes bem conhece e aonde voltou em 1998).

Porque aqui se fala de COP 3, Guidage e Barro, achei interessante esta crónica, que vocês já conhecem, dos "relatórios secretos sobre a Guiné colonial".

Guidage tinha uma importância extrema tanto para nós como para o IN. Já tínhamos consciência disso quando lá entrámos. E aí está o que se veio a passar em 1973... com a ofensiva do PAIGC contra Guidage (no Norte)e Guileje e Gadamael (no Sul)... Os três G que, na opinião do historiador guineense, Leopoldo Amada, terão decidido "o final do império colonial"...

Publica-se a seguir um texto, do jornalista Serafim Lobato, em que se divulgam pela primeira vez os relatórios secretos sobre a batalha de Guileje e Gadamael, uma peça importante para a compreensão da história da guerra colonial e do seu fim (*). O texto esteve originalmente disponível no sítio do Publico.pt. Está também publicado no blogue História e Ciência > Relatórios secretos sobre a Guiné colonial. Algumas das notas, em parêntesis rectos, são da nossa responsabilidade (A.S., Afonso Sousa) [e/ou do editor].

(ii) COP 3

Um pelotão da CCAÇ 3 (onde também esteve, em 1968, o nosso camarada A. Marques Lopes) reforçou a CART 2412, quando esta se instalou em Guidage. Esse pelotão era comandado pelo Alferes Gonçalves.

Esta CART 2412 integrava-se no COP 3 (comando do Major Correia de Campos, em Bigene).

O COP 3 constituia uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu, entre Barro, a Oeste, e Guidage (Farim), a Nordeste. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé (Fuzileiros navais, sob o comando de Alpoim Calvão), junto ao Rio Cacheu, cujo ancoradouro dá saída para Bigene (2,8 Km, para Norte).

O COP 3 tinha por missão fundamental a eliminação ou amputação dos corredores entre a faixa fronteiriça do Senegal e as densas (e quase impenetráveis) matas do Óio, em cujo coração se situava a base do PAIGC, de Morés.

(iii) O gen Spínola que eu conheci

Caríssimo Coronel A Marques Lopes: Foi por uma lista na Net que localizei o Alferes Gonçalves. Como se referia à CCAÇ 3, contactei-o telefonicamente, para lhe perguntar se conhecia Guidage.

Surpreendentemente a resposta dele foi esta: acompanhei a vossa companhia (CART 2412) no trajecto Binta-Guidage, quando vocês se deslocaram para lá pela primeira vez. Comandava um pelotão da CCAÇ 3 que ficou em Guidage como reforço da vossa CART.

Eu (talvez pelos 37 anos que decorreram ?!) não estou a ver a cara dele, mas o facto é que ele e eu estivemos na mesma coluna, rumo a Guidage (1968). Ainda fomos surpreendidos a pouco mais do meio do trajecto, no sítio do Cufeu, por tiros sentidos na floresta de uma e da outra banda do caminho.

Ele sabe da história da perda do nosso comandante (o Capitão Miliciano A...)  logo nos primeiros dias, naquela terra de fronteira com o Senegal. Logo no início aterrou lá de surpresa o Spínola. Depois da rápida formatura na exígua parada, saíram-lhe estas palavras dirigidas ao capitão: "O senhor é indigno de estar à frente destes militares...o senhor prepare-se e vai já comigo para Bissau".

Viria a ser castigado com despromoção (tenente) e eventualmente com outras consequências que não conheci. Isto resultou do envio, por um soldado, de um aerograma para o general Spónola, queixando-se que estavam a passar fome, visto que o capitão se esquecera de solicitar o reabastecimento. O que valia eram as minúsculas galinhas que comprávamos na tabanca.

Por acaso ainda me lembro que, após o destroçar, de forma menos formal o general Spínola me perguntou:
- Meu militar, precisa alguma coisa para transmissões ?

Ao que eu lhe respondi:
- Precisamos de substituir a antena, meu General.

Passados uns dias essa antena lá apareceu.

2. Comentário de L,G., datado de 13/3/2006, sobre as razões que terão levado a população de Barro (ou mais provavelmente as novas autoridades do país)  a destruir, em  Barro, um momento "tuga" aos seus mortos . Na altura, achávamos (e continuamos a achar) que os monumentos aos mortos (mesmo dos meus "inimigos") são sagrados e devem ser respeitados, em toda a parte e em todos os tempos (**):  

(...) " Obrigado, Afonso! Fico a conhecer o artista quando jovem... Espero, por outro lado, que o Marques Lopes, quando lá voltar [, a Barro,] dentro em breve, desvenda o mistério da destruição do vosso monumento... Simples vandalismo ? Revanchismo ? Incúria ? Estupidez ? Maldade ? Iconoclastia ? ... É sempre lamentável: são marcas da história, quer se goste ou não se goste... E que hoje podiam ter alguma mais-valia turística, museológica, cultural, para a própria Guiné-Bissau... Há tugas a fazer milhares de quilómetros só para redescobrir uma simples pedra de um monumento como este...

Creio que na Guiné ainda estão pior do que nós, quanto à(s) memória(s) do passado recente da guerra colonial (ou da guerra de libertação, como se queira)... Não há arquivos, não há escritos, tudo tem sido pilhado, destruído ou branqueado (o que às vezes ainda é bem pior)... E os que fizeram a guerra - a geração dos guerrilheiros - estão a desaparecer sem deixar testemunhos, registados em suporte de papel, digital ou áudio... Alguma coisa está a ser feita em Guileje, pela AD - Acção para o Desenvolvimento, pelo nosso amigo Pepito e pelos seus colaboradores... Nós, também, à nossa modesta escala, no nosso blogue, com o contributo de magníficos e generosos blogadores como tu e o Marques Lopes... Um grande abraço, camarada." (***).

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Notas do editor:

(*) Vd. I série, poste de 2 de julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael

(**) Vd. I Série, poste de 13 de março 2006 > Guiné 63/74 - DCXXV: Barro, CART 2412, 1968/70 (Afonso M.F.Sousa)

(***) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11140: O que é feito de ti, camarada ? (1): Jorge Canhão, Oeiras (ex-fur mil at inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11869: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7): O meu adeus a Bula

1. Em mensagem datada de 24 de Julho de 2013, o nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) enviou-nos mais uma das suas memórias:


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7)

O meu adeus a Bula

A oito de agosto, deixei Bula com um nó na garganta e sem saber que não mais lá voltava.
Tinha férias marcadas para Portugal e pedi ao comandante que me permitisse ir uns dias mais cedo para Bissau, de forma a poder visitar o Daniel no Hospital Militar.

O Daniel é aquele soldado maqueiro de que vos falo no meu P9877. O tal que na estrada de S. Vicente, já próximo do Rio Cacheu, acionou uma mina anti pessoal, sofrendo a amputação do pé esquerdo.
Leiam o que escrevi, porque se não lerem jamais irão compreender a angustia daquela viagem entre Bula e Bissau.

Saímos manhã cedo. A habitual escolta, uma secção da CCAÇ 2466 e duas Panhard do EREC 2454, deixou-nos em João Landim. Há hora marcada, eu e os que comigo iam, subimos para a jangada que fazia a cambança do Rio Mansoa.

Agora que nisto falo, dou comigo a pensar, quarenta e muitos anos depois, como a primeira e a última viagem que fiz naquela jangada foram iguais em tormento, embora por razões distintas. Recordo-vos que embarquei para a Guiné no dia 6 de fevereiro de 1969. A meio da viagem, o alferes miliciano Vinagre, oficial de informações e ribatejano como eu, encontrou-me no deck do Uíge e confidenciou-me que houvera uma “grande tragédia” no leste da Guiné.
Uma jangada que fazia a travessia do Rio Corubal tinha-se voltado a meio do rio, com uma centena de homens lá em cima. Estimava-se que uns 50 homens tivessem perdido a vida. Foi assim que, em pleno mar alto, entre Lisboa e Bissau, nos chegou a notícia do desastre do Cheche.

Dez dias depois deste acidente, sofrendo com o calor e a humidade, enjoado com os cheiros que me trepavam pelas narinas, atordoado com o movimento de carros e de armas à minha volta, confundido pelas ordens gritadas por homens que me parecia terem um aspecto desvairado, estava em Safim, à beira de um Rio que me disseram chamar-se Mansoa, a entrar para uma jangada que, também me disseram, era para me levar a João Landim, margem de onde se alcançava Bula, o meu destino.

A Jangada de Bula
Foto: © Virgínio Briote (2005) – com a devida vénia ao autor.

A jangada partiu e as minhas pernas tremiam, fosse pelo trepidar do ronceiro motor a gasóleo que a fazia deslizar sobre a água, fosse porque à minha cabeça só acudia o que me contaram ter sucedido no Chéché.
Naquela manhã, pisei João Landim como estando a pisar a terra da salvação.

A minha última viagem naquela jangada (eu ainda não sabia que seria a última, mas foi e trato-a assim), foi também ela feita com o coração ao pé da boca. O Daniel, o drama do Daniel, ocupava os meus piores pensamentos. Como o iria encontrar? Como reagiria ele quando me visse?

A resposta a estas perguntas está lá, na publicação que vos recomendei.

Dispenso-me de vos dizer que, após a visita ao Daniel, parti para Lisboa em férias, bem menos amargurado. Regressei à Guiné na segunda semana de Setembro. Apresentei-me nos adidos para receber ordem de marcha, e foi lá que me disseram que a companhia estava em Bissorã.

Como?!? Ninguém me explicou.

Iam providenciar-me transporte, que não me podia ausentar do quartel porque a qualquer momento podia embarcar. Apressei-me em fazer chegar uma mensagem ao Santos, o furriel miliciano vagomestre que ficara em Bissau a tratar dos assuntos da companhia, para que fosse ao meu encontro dar-me conta do que se passava.

O que se passava – disse-me ele – é que o nosso Batalhão fora rendido em Bula pelo BCAV 2868, por razões que ele desconhecia mas de forma inesperada, que a sede do batalhão passava agora a ser em Bissorã mas com a responsabilidade da mesma zona operacional, que as companhias mantinham as suas anteriores posições, salvo a CCAÇ 2466, que também deixara Bula para se instalar em Encheia.

- Ó Santos, e as minhas coisas, pá?
- Então, isso já eles levaram para lá.
- Bissorã!! – continuava eu, incrédulo, a pensar – Como é que aquilo é?

- A malta já te disse alguma coisa?
- Já pá. Falei via rádio com o Filipe. Diz que é calminho.
- Calminho? Mas Bisssorã não fica próximo do Morés?
- Pois fica, pá, mas o Filipe diz que é calminho, que é que queres?

Às cinco da tarde fui informado que, na manhã seguinte, uma viatura levar-me-ia à Base Aérea onde, num DO, seguiria para Bissorã.

Levantámos voo às oito horas. Lá em cima, ao mesmo tempo que o meu olhar, sôfrego, procurava sinais de Bula, apoderava-se de mim uma estranha nostalgia. Sim, sentira muitas vezes os testículos apertados e as calças ao fundo do cu. Mas também lá construíra sólidas amizades, passara momentos de inesquecível confraternização, ali testemunhara actos de enorme solidariedade.

Bula fora a primeira vez. A primeira vez não se esquece. Portanto, mandavam-me embora de Bula sem me deixarem despedir da malta da 2466, com quem partilhei copos, medos e cansaços, da malta das Panhard, que me “adoptou”, sem beber a última bazuca no libanês, sem gastar mais uns pesos na loja do Zé Maria.

Bula – 1969 – à esq.- o Zé Maria ao balcão e eu encoberto pelo funcionário da Casa Gouveia. À dirt. – No libanês, eu a servir os furriéis Bonito, Mateus, Sousa e Martinho.

O Zé Maria ficava mesmo no fim da Vila, já quase quando a estrada curvava à direita para Binar, ou a esquerda para estrada de S. Vicente.
O Zé Maria tinha tudo. A minha primeira ventoinha, a minha primeira máquina fotográfica, o meu primeiro álbum de fotografias, os meus primeiros isto e mais aquilo para levar de recordação aos meus, e tinha também, e quase sempre, tempo para dois dedos de conversa, daquela de aliviar a saudade.

O libanês foi onde comi as primeiras ostras da minha vida. Sacas enormes, carregadas de ostras, abertas ao calor da brasa, mergulhadas em sumo de limão com muito piri-piri. E também foi no libanês o meu primeiro chabéu.
Só não foi o último porque, ainda hoje, continuo a morrer por um chabéu. E por umas ostras.

E aquelas noites de fado, no bar do quartel ou no das Panhard? (P10354). À meia luz, como a tradição, a guitarra a trinar nas mãos do Dias, “o Guitarrinha”, e eu a cantar versos que falavam de amores, de saudades e de coisas que arrancavam lágrimas a quem ouvia em cada canto meu o canto da sua vida.

E o Xana, o Montagil, o Xico Coelho, o Vladimir, furriéis da CCAÇ 2466, que comigo já levavam amizade feita desde que, em Chaves, formámos batalhão, e que em Bula partilhámos todas as horas, as boas e as más, então não me despedia deles?

Bula – 1969 – à esq., de regresso ao quartel com o fur. mil “Montargil” – à dirt., em Ponta Alfama, descansando com o fur. mil “Xana”.

E o meu conterrâneo Moncada Cordeiro, que me recebeu em João Landim (P10354), e que me fez ganhar amizade com o Francisco Dias, com o Bernardino, hoje nosso camarada tabanqueiro, então eu não podia dar um abraço de despedida àquela gente?

Bula foi tudo isto em que não deixava de pensar. E foi o que vos tenho vindo a falar em relatos anteriores. E do que não vos falei, porque nunca encontrei a palavra certa, aquela que eu queria ter a certeza de não magoar ninguém, nem os que estão em vida, nem os que a perderam.

Foi o pior momento de toda a minha vivência na Guiné.
Era sábado, tinha acabado de almoçar com o pessoal das Panhard que me havia convidado, sentados à mesa distribuía-mos cartas para iniciar uma partida de King, quando chegou a nós o som da metralha.

- É a escolta de Có!

Fui tudo uma corrida. Arrancaram as três Panhard que estavam em prontidão na parada, o sargento Caeiro apareceu depois ao volante da GMC para onde subiram uns quantos atiradores, e eu.
Tarde de mais me lembrei que nem a bolsa de enfermagem levava. Que se lixe – pensei – se for preciso alguma coisa está lá a mala do enfermeiro deles.

E foi. Era pessoal de uma companhia já a caminhar para o fim da comissão. Regressava de uma escolta que fizera a João Landim, caminho tantas vezes percorrido e sem problemas que chegavam a facilitar, como o fizeram naquele dia em que tão pouco pediram o habitual apoio das Panhard, e logo naquela tarde calhou que o IN os esperava, emboscado, um pouco mais à frente do Placo, duas secções apanhadas em tal surpresa, que o cenário, a quem ali chegou para os apoiar, era dantesco.

As Panhard introduziram-se no mato atrás dos guerrilheiros que vieram à estrada para fazer prisoneiros ( levavam consigo três), alguns homens meio perdidos no asfalto, umas quantas G3 debaixo dos bancos dos dois Unimog da escolta, sinal de que foi tão grande a surpresa que ninguém agiu com elas, 4 feridos no chão, um morto, e quando puxei a porta entreaberta de um dos Unimog, para retirar um corpo de que apenas via as pernas e parte do tronco, percebi, confesso que horrorizado, que o corpo era apenas “aquilo”. O resto fora arrancado pela roquetada que perfurara a porta do Unimog e fora despedaçar todo o da cabine.

Procurei o enfermeiro para com ele partilhar a mala de socorro, mas não havia enfermeiro. Carregámos os feridos em cima da GMC que o Caeiro levara, e disparámos em direcção à enfermaria do quartel de Bula.
No caminho já os rádios das Panhard haviam pedido evacuações Y.

Na enfermaria, com a minha equipa, cuidámos do que havia para cuidar. Debrucei-me sobre um dos feridos, deitado numa maca ainda assente no chão e ouvi-o dizer que não sentia as pernas. Menti-lhe sem remorso:
- Tens nas pernas uns estilhaços e isso foi da injecção que te demos para não teres dores.

Arranquei um pedaço de adesivo largo, colei-o de chapa sobre a camisa camuflada, e onde sempre registava o que fora feito, para conhecimento das equipas de evacuação, limitei-me a escrever: Fractura da coluna lombar

O Dornier aterrou em Bissorã eram quase nove da manhã.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados

Guiné 63/74 - P11868: Blogoterapia (233): A Bem da Nação!... A Medalha Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70... (António Azevedo Rodrigues, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, 1968/70)


Medalha [, à direita,] Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70,  que foi entregue ao António Azevedo Rodrigues, de Vila Nova de Fanalicão.

Foto: © António Azevedo Rodrtigues (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada António Azevedo Rodrigues,  ex-1º. cabo, Comando de Agrupamento 2957 (Bafatá, 1968/70), com data de 17 do corrente:


Amigos, ao fim de 3 longos anos de cartas, mails, telefonemas e mais requerimentos (*) (**), eis que o carteiro não precisou de tocar duas vezes, pois sou eu quem estou à espera que ele chegue com a missiva... 

Estava a contar ter de fazer uma almoçarada para receber o tal galardão pelos serviços prestados à Nação Portuguesa, mas como um soldado não conta como um almirante nem como um mercenário, não me foi concedido ser condecorado com as honras militares, como me havia sido indicado. Teria de me deslocar a uma unidade militar o mais perto de minha residência para aí me ser entregue o reconhecimento. 

Mas não,  fui informado que teria de me deslocar 800 km para ir a Lisboa receber, vejam bem que tão grande medalha o Estado Português me envia!... Ora, eu  recuso-me a  deslocar-me a Lisboa depois de ter uma unidade militar em Braga, Póvoa de Varzim e DE ter pertencido ao D.R. Braga...

Por outras medalhas já vistas no Facebook entregues a outros combatentes,  o que tenho a  dizer é que o Estado Português está mesmo em decadência,  estas medalhas são o espelho de quem comanda as Forças Armadas da Nação, que nada tem a ver com as de há 45 anos, sim há 45 anos estava eu a preparar as malas para seguir para a Guiné, para Bafatá... o que aconteceu a 9 Novembro 1968... 

A bem da Nação... que me obrigou a perder 3 anos da minha juventude. Hoje o carteiro me entregou a medalha... mas esta não é a tal de cortiça que pensei ir receber...

António Azevedo Rodrigues
Delães - Vila Nova de Famalicão

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Notas do editor:

(**)
Anexo - Requerimento a preencher e enviar ao Arquivo Geral do Exército (Estrada de Chelas, 1949-010 Lisboa)

EXMO SENHOR GENERAL CHEFE DO ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO


(nome)______________________________________________________, (estado civil) _____________, filho de ___________________________________ e de ________________________________________________, residente em (morada actual)__________________________________________________________ (código Postal)_________-______ (localidade)______________, nascido a (data) ______________, na freguesia de ________________, concelho de _____________________, portador do Bilhete de Identidade nº _______________, de (data de emissão) ______________ do Arquivo de Identificação de ______________, tendo cumprido serviço militar de (data de incorporação) ___________________, até (data de disponibilidade) _________________, tendo sido agraciado com a Medalha Comemorativa das Campanhas.

Consequentemente vem requerer a V. EXª que lhe seja feita entrega física da Medalha Comemorativa das Campanhas nos termos do artº 46 do Dec. Lei 316/2002 de 27 de Dezembro. 

Pede deferimento 


(localidade), _____________ de _____________ de 2009-00-00 

_________________________________ 

(assinatura)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11867: Filhos do vento (17): Comentário: "Não quero nada dele, [do meu pai], apenas o nome" (José Teixeira)



Guiné-Bissau >  Região de Bafatá >  Saltinho > 2005 > "Filho de branco quer conhecer o pai"...

Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados

1. Comentário do Zé Teixeira [, foto à esquerda, em Empada, 1969, no regresso de uma operação,] ao poste P11838, de 14 do corrente (*)

Luís,

Dá imenso gosto e faz vibrar a alma ouvir "Eu sou português de Guiné";  ou ter como toque do telemóvel  o hino português e afirmar com convicção "eu gosto muito de ouvir o nosso hino";  ou ouvir "eu fui soldado português, eu sou português";  ou ainda, "eu gostava muito de me reencontrar com os camaradas brancos do meu pelotão de nativos, éramos uma família";  e tantas outras afirmações.

Até ex-combatentes (soldados) do PAIGC, falam desapaixonadamente e sem sobranceria de acontecimentos do outro lado da barreira nos ataques e emboscadas partilhadas "em demos porrada e levamos porrada"... "Guerra é guerra", como disse o Braima Camará, um dos guarda costas do Nino

É fácil, hoje, falar com os ex-soldados portugueses, sobretudo no interior do país. Falar abertamente e frente a frente sobre o que foi a guerra que tanto nos fez sofrer, e continuou a fazê-los sofrer no terreno. Os vencidos que ficaram no terreno e que por serem negros deixaram de ter a “mãe pátria” para os acolher. Torna-se agradável e afetuoso juntar ex-soldados portugueses. Falam abertamente dos tempos de “convívio” com camaradas portugueses. Falam com nostalgia e saudade mas não deixam que se ponha o seu nome na escrita porque a paz, a verdadeira paz, ainda não chegou. O estigma ainda continua e continuará

Os políticos dos dois países nada têm feito para apagar os resíduos da guerra. Sim,  a guerra não acaba e nasce a paz quando as armas se calam ou se assinam os acordos de paz. A paz constrói-se no tempo curando as mazelas que ficaram e foram muitas. Ou será que nós os que a viveram, não estamos ainda a senti-la no espírito e na carne?!


Basta pensar no abandono a que fomos votados todos nós pelo poder político desde então.

E os milhares de portugueses negros combatentes que lá ficaram esquecidos pela mãe pátria que deixou de ser "mãe pátria" para ser razão para serem votados ao desprezo e a perseguições atrozes por parte dos "vencedores". Tiveram de se calar, se esconder, de fugir da sua terra, de rasgar os documentos de que tanto se orgulhavam, das fotografias que os comprometiam. Destruir a sua história pessoal e coletiva.


["O orgulho de ser... portista!"... Foto á direita, um jovem adepto do FCP. Guiné-Bissau, 2005. 
Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados]


Nós,  os soldados combatentes brancos, os que foram obrigados a fazer a guerra, com as nossas visitas de saudade, com as nossas idas aos locais que nos marcaram estamos a fazer a catarse e são cada vez mais a perder o medo e ganhar coragem para o fazer. 

Por seu lado, os ex-combatentes portugueses africanos guineenses recebem-nos com alegria que vão expandido ainda a medo, mas já se houve dizer com orgulho “eu fui soldado português”. E querem logo saber onde estivemos numa tentativa de encontrar um amigo, um camarada.

Logo se ouvem as suas estórias, quantas delas nossas conhecidas, mas não o seu nome escrito, isso ainda é cedo. Com o passar do tempo foram-se apagando as barreiras que limitavam os campos de soldados ex-PAIGC e ex-tugas do exército português. As "paixões" têm vindo a desaparecer, talvez pelas desilusões que o tempo tem acarretado, mas há marcas que ficaram gravadas na carne como um BI identificativo. Marcas que deram origem a muita dor, sofrimento, fome e mortes no pós-guerra e ainda lá estão.

Os “filhos do vento” são mais uma parte da história da guerra. Não podemos tentar escamotear. São uma realidade que é preciso encarar de frente. Seria bom que os pais dos “filhos do vento” tivessem a coragem de se assumir para que se dê mais um passo na construção da paz. Creio que o tempo já curou muitas feridas, mas não deu respostas àqueles jovens. Conheci três deles nestas minhas andanças e todos eles sonham encontrar o pai. Um disse-me abertamente:  ”Não quero nada dele, apenas o nome”. (**)

Zé Teixeira  (***)

2. Comentário de L.G.:

Zé, se bem te lembras, tivemos logo em 2006, aquando da tua chegada ao blogue, I série, uma conversa sobre os "filhos do vento". Na altura, não usávamos essa expressão, da autoria do Zé Saúde. Recordo-me de um poste teu, de 16 de fevereiro de 2006 (*)... Tinha um sugestivo título: "o raio do puto era branco"... Aqui vão alguns excertos:

(...) "Reafirmo a minha admiração quando peguei no bebé e vi uma criança branca. Parece que tinha vindo da praia. Um branco escuro e muito coradinho. Ao perguntar porquê, tive como resposta um sorriso e depois a informação de que as crianças nascem brancas e rapidamente escurecem. Assim aconteceu, de facto. Conhecia a mãe, mas o pai nunca o tinha visto e até hoje ...Parece que era djila [comerciante ambulante, entre os fulas e futa-fulas].

Conheci outro caso, a Binta de Chamarra, que teve um filho de um colega meu e foi repudiada e recambiada para Aldeia Formosa (Quebo). Quando lá estive, em 2005 procurei-a, sem conseguir encontrá-la. Apareceu-me um jovem de trinta anos a dizer-se filha da Binta e de um branco, só que o outro era mais velho. Vim a saber que este era filho de uma Binta Bobo, de Mampatá, que também conheci e parece que já faleceu." (...)


Nesse mesmo poste eu comentei, a propósito desta conversa, o seguinte:

(...) Por fim, deixa-me dizer-te, Zé, que tu levantaste aí uma questão, no mínimo delicada mas de grande interesse humano: os filhos da guerra, os frutos (proibidos) dos amores dos tugas e das fulas (as mulheres que estavam mais próximas de nós)... O que é feito deles? Como vivem? E as suas mães, como estão, como se sentem?... Talvez por pudor, não temos falado disto, mas tu, com a tua especial relação com a população de Ingoré, Buba, Quebo,Mampatá e Empatá, tu, querido fermero, mauro, sábio, médico, curandeiro..., tu conseguiste pôr o dedo na ferida... Suavemente, profissionalmente...

Já agora explica-nos como e porquê a Binta, de Chamarra, foi repudiada e expulsa da sua tabanca, por ter dado à luz um filho de um tuga... Como é que os fulas (e outras etnias) lidavam habitualmente com estes casos que, se calhar, não foram tão raros quanto isso... Basta lembrar-nos que em mais de uma década de guerra na Guiné passaram por lá largas dezenas de milhares de homens, muitos dos quais tiveram relações sexuais, consentidas, com mulheres da população local...

Não estou a faltar de prostituição nem de violação, estou a falar de relações nalguns casos até maritais, mais ou menos estáveis e até toleradas, quer pelas autoridades militares quer pelas populações locais... Houve ou não houve casos de paixão e de amor de tugas e de jovens guineenses, nomeadamente fora de Bissau?

Alguém mais quer falar sobre isto? Contar estórias que conheça? O Zé Neto já nos trouxe aqui a estória do Dauda, o Viegas, o presumível filho de um capitão de Cacine. (...).

Comentando agora o teu mais recente comentário sobre os "filhos do vento",  acima transcrito (*)... Escreves tu: 

"Creio que o tempo já curou muitas feridas, mas não deu respostas àqueles jovens. Conheci três deles nestas minhas andanças e todos eles sonham encontrar o pai. Um disse-me abertamente:  'Não quero nada dele, apenas o nome' (...)"

Deixa-me dizer-te que o problema não é assim tão simples.como a gente pensa. A tendência é sempre, entre nós, para fazer "sociologia espontânea"...   O Portugal democrático do 25 de abril e a Guiné-Bissau, revolucionária, herdeira de Cabral, orgulhosa e respeitada no seio das nações, no imediato pós-independência, poderiam ter juntado as mãos, inventariado os casos, e lançado um programa de apoio aos filhos dos tugas e às suas mães... A embaixada portuguesa em Bissau poderia ter feito esse trabalho meritório e até humanitário... Todos ganharíamos. Na altura, as memórias ainda estavam frescas. Podia-se ter encontrado o fio à meada... E sobretudo prevenido e combatidas as tendências fratricidas e totalitárias que então já se advinhavam... Mas não, chutou-se o problema para debaixo da mesa... Ou melhor: nunca se chegou a identificar e a formular o problema... 

Ora, como tu sabes, tão ou mais importante do que resolver um problema, é saber identificá-lo e analísá-lo. 

Não quero julgar ninuém, a nossa época e os nossos dirigentes. Constato apenas que havia outras prioridades, na agenda política de ambos os países... Em suma,  não havia lugar para mais esta "pedrinha no sapato" entre os dois "países irmãos" (para usar um chavão da retórica político-ideológica da época)... 

A tal pedrinha no sapato eram os tais "restos de tuga" (que miserável expressão, tão miserável como aquela que usávamos na tropa para designar os gajos baixinhos que formavam a cabeça do pelotão, os meias lecas, os meias fodas... Lembras-te? Nós, os seres humanos, em todas as latitudes e longitudes, somos preconceituosos, somos maus, somos mesquinhos...).

Hoje é muito mais difícil encontrar o fio à meada. Quantas mães não terão já morrido? E os filhos? Quantos deles não terão saído das suas tabancas de origem e montado tenda em Bissau, a cidade do cimento e alcatrão, o eldourado de todas as ilusões e frustrações, o ponto de chegada e de partida de tantos sonhos e pesadelos...

Hoje quando soam as trombetas da profunda crise de valores que assola o ocidente, cada vez menos cristão e cada vez  mais individualista, egocêntrico e anómico, é muito mais difícil sensibilizar o poder político e a sociedade civil para este drama que ainda não acabou, mesmo com meio século de distância... E sobretudo é mais difícil fazer lobbying,  no parlamento e noutros órgãos de soberania... Resta-nos esta série e este nosso blogue que procura dar voz a quem não a tem (ou nunca teve). Mas, infelizmente, os "filhos do vento" também não têm fácil acesso à Net...

Mesmo assim, convém recordar a política editorial do nosso blogue: 

 (...) "Somos sensíveis aos problemas (de saúde, de reparação legal, de reconhecimento público, de dignidade, etc.) dos nossos camaradas e amigos, incluindo os guineenses que combateram, de um lado e de outro. Mas enquanto comunidade (virtual) não temos nenhum compromisso para com esta ou aquela causa por muita justa ou legítima que ela seja. )...) Em todo o caso, a solidariedade, a amizade e a camaragem são valores que procuramos cultivar todos os dias". (...)
____________

Notas do editor:

(*) vd. posye de 14 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11838: Os filhos do vento (13): Em busca do pai tuga: um reportagem, 3 vídeos, 19 histórias, 19 rostos, 19 nomes à procura do apelido paterno... Hoje no "Público", domingo, dia 14. A não perder.


(***) I Série > 16 de fevereiro de 2006 >  Guiné 63/74 - DXLV: O raio do puto era branco (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P11866: Os nossos enfermeiros (9): No caso dos furriéis enfermeiros iam para a Escola do Serviço de Saúde Militar, em Campo de Ourique, tirar o seu curso de enfermagem do qual faziam parte as seguintes disciplinas: Primeiros Socorros, Enfermagem, Profilaxia Tropical, Higiene, Guerra Química e Táctica Sanitária (Adriano Moreira, ex-fur mil enf , CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70)

1. Resposta ao questionário sobre "os nossos médicos" (*), com data de 28 de junho passado, do Adriano Moreira (ex-Fur Mil Enf da CART 2412, BigeneGuidaje e Barro, 1968/70), mais conhecido por Admor:[ Este texto pareceu-nos mais apropriado para ser editado na série "Os nossos enfermeiros" (**), esperando com isso que mais testemunhos de furreis milicianos enfermeiros e de 1ºs cabos auxiliares de enfermagem possam vir a aumentar e enriquecer, ainda mais, o muito que já aqui escrevemos sobre os nossos camaradas (médicos, enfermeiros e outros) que serviram nos serviços de saúde militar. L.G,].


Caro Luís Graça,

Sobre os médicos só sei dizer que, quando estava a tirar a recruta em Santarém, também andavam lá alguns médicos a fazer a recruta deles e alguns, coitados, já com uma rica barriguinha e mais idade do que nós, bem lhes deve ter custado.

No entanto deconheço completamente os trâmites que lhes estavam destinados depois da recruta: talvez tivessem de estudar pelo menos as doenças tropicais.

No caso dos furriéis enfermeiros iam par a Escola do Serviço de Saúde Militar tirar o seu curso de enfermagem do qual faziam parte as seguintes disciplinas: Primeiros Socorros, Enfermagem, Profilaxia Tropical, Higiene, Guerra Química e Táctica Sanitária.

Tinhamos mais uma ou duas ligadas ao estudo do RDM [, Regulamento de Disciplina Militar].

Ficávamos aboletados no Batalhão de Sapadores do Caminho de Ferro em Campo de Ourique e tínhamos que ir para as aulas que eram ministradas nas traseiras da Basílica da Estrela [, ocupadas pelo Hospital Militar Principal]. .

Tínhamos também uma ou duas horas por semana para tomarmos contacto com os Hospitais para colhermos elementos que no futuro nos seriam úteis.


Imagem do sítio oficial da ESSM -Escola de Serviço de Saúde Militar (, reproduzida com a devida vénia...). Trata-se de  "um estabelecimento de ensino superior, integrado na rede do ensino superior politécnico", criado em 2 de Agosto de 1979 pelo decreto-lei nº 266/79.  A ESSM está colocada  na dependência directa do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). É herdeira da Escola de Enfermagem da Armada e da Escola do Serviço de Saúde do Exército, entretanto extintas.  "O ensino nesta escola abrange essencialmente três áreas distintas, dependentes de uma direcção de ensino: a enfermagem, os cursos de tecnologias de saúde e os cursos de saúde militar (...) Os cursos de saúde militar não são conferentes de grau académico e envolvem diversas áreas de formação, nomeadamente socorrismo, emergência médica e patologia de adição (alcoolismo e toxicodependência)."



Depois do Curso terminado, fazíamos um pré-estágio de 10 semanas. No meu caso fi-lo no Hospital Principal. De seguida tínhamos um estágio de 6 meses e só a partir daí é que fcavamos prontos a ser enfermeiros mobilizáveis.

Recordo-me ainda hoje de me ter sido dito por um dos meus professores para nos esquecermos que o mercurocromo existia e passarmos a usar somente tintura de íodo e nunca nos esquecermos de distribuír os comprimidos para evitar a malária.

Quando embarcamos como Companhia Independente que éramos, não ia nenhum médico connosco, mas entretanto quando fomos colocados em Bigene apesar da CART 1745 ser uma companhia independente estava lá um médico a fazer serviço. Nessa altura ainda não tinha enfermaria, mas um ano depois já tinha para militares e civis.

A nossa companhia nunca teve médico nem enfermaria, apenas postos de socorros e o de Guidage nem esse nome merecia. Em Binta e Barro já tinhamos mais condições de trabalho.

Evacuações fiz algumas, devido a ferimentos de guerra e a rebentamento de minas, quando via ou me parecia que podia haver problemas que me ultrapassavam não hesitava. Poucas consultas externas para o HM 241 de Bissau e lá fui atamancando as coisas conforme pude e soube e tive a sorte de não ver ninguém morrer-me nos braços.

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira
Fur mil enf
Cart 2412
Bigene, Binta, Guidage e Barro
(1968/70)

P.S. O atendimento a civis era também prestado pelo corpo de enfermagem ou seja eu e 3 cabos auxiliares de enfermeiro e ainda o pessoal que vinha do Senegal também era atendido quando estivemos em Guidage.

____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11849: Os nossos médicos (66): Não fui evacuado para a Metrópole mas acompanhei três evacuações, duas via TAO, incluindo um Super Constellation de carga, transformado em enfermaria, oriundo de Moçambique, com militares quase todos portadores de queimaduras provocadas pelas granadas de 'fósforo' (J. Pardete Ferreira)

(**) Sobre a série "Os nossos enfermeiros", vd os postes anteriormente publicados:

2 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11045: Os Nossos Enfermeiros (8): Diagnóstico salomónico (Adriano Moreira)

20 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4978: Os Nossos Enfermeiros (7): Excerto do Diário de um Enfermeiro (José Teixeira)

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4965: Os Nossos Enfermeiros (6): Os Nossos Anjos da Guarda (Joseph Belo)

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4960: Os Nossos Enfermeiros (5): Os Enfermeiros dos Lassas, na lama e no duro (Mário Fitas)

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4927: Os Nossos Enfermeiros (3): Às vezes até fazíamos o que não sabíamos (Armandino Alves)

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4914: Os Nossos Enfermeiros (2): As malditas doenças venéreas e a bendita... penicilina (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)

7 de Setembro de 2009> Guiné 63/74 - P4912: Os Nossos Enfermeiros (1): A formação de Enfermeiros e Auxiliares (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar

1. Iniciamos hoje a publicação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005*:


Memórias da Guiné

1 - A Incorporação na Vida Militar

Fernando de Pinho Valente (Magro)(1)
ex-Cap. Milº de Artilharia

Em Agosto de 1968, uns dias antes de partirmos de férias para o Sul de Espanha, a Lena(2) apareceu com os olhos amarelados.
Como se não encontrasse bem de saúde chamei o médico.
Na opinião deste tratava-se de icterícia, o que obrigava a repouso, a uma dieta e à administração de medicamentos que prescreveu.
Sobre as nossas férias, foi de opinião que devíamos desistir da viagem para a Costa do Sol e em seu lugar procurar umas termas onde pudéssemos usufruir de uma estadia calma e fazer uma cura de águas.
Recomendou-nos as Termas de Monte Real.

Resolvemos seguir os conselhos do médico pelo que nos primeiros dias de Setembro dirigimo-nos para a referida estância termal, acompanhados do nosso filho Fernando Manuel, de 7 anos de idade.

Aí, pela manhã de um determinado dia, encontrei no "buvete" um antigo companheiro meu do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia que teve lugar em 1958 na Escola Prática de Vendas Novas. Fiquei admirado por o ver ali, tanto mais que esse meu antigo companheiro, além de saudável, era muito bem constituído fisicamente.
- Tu por aqui, a águas?! - perguntei-lhe admirado.

Explicou-me ele, então, que estava mobilizado para Angola e que resolveu fazer, antes de partir, um tratamento nas Termas, até porque havia realizado, em Lamego, exercícios militares em que a sua alimentação havia sido à base de rações de combate o que lhe tinha provocado uma indisposição gástrica e intestinal.

- Mas o quê, tu ficaste na tropa?- perguntei.

Que não, que não, respondeu-me o meu amigo. Que era economista, mas que havia sido incorporado obrigatoriamente na vida militar com o posto de tenente e havia sido compelido a frequentar um Curso de Capitães na Escola Prática de Infantaria em Mafra.
Que com o posto de capitão iria dentro de alguns dias fazer a guerra em Angola, comandando uma Companhia de Caçadores com cerca de 150 homens. Que eu também devia ser chamado muito em breve, pois dos duzentos e quarenta cadetes do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia de 1958, estava o Exército incorporando grupos de sessenta de cada vez, para a frequência obrigatória do Curso de Capitães.
Eu não queria acreditar...

A minha mulher, que tinha mantido uma conversação ocasional com a esposa deste meu companheiro das lides militares, apercebeu-se das suas últimas palavras e ficou estupefacta.
Não podia ser. Isso não era verdade.

Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas
Foto: Carlos Vinhal

Eu tinha cumprido a minha obrigação militar como Cadete em Vendas Novas e como Aspirante a Oficial Miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho, tendo regressado à vida civil em Fevereiro de 1960 como Alferes Miliciano. Na disponibilidade, fui promovido a Tenente Miliciano.
Depois disso casei-me e coloquei-me como técnico de engenharia na extinta Junta Autónoma de Estradas, em Viseu.

Em Maio de 1961 nasceu o meu filho Fernando Manuel.
Nesse ano de 1961 deu-se a invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das nossas possessões de Goa, Damão e Diu, na Índia, e teve início a guerra colonial em Angola.
Na altura ainda receei vir a ser mobilizado. Mas passados sete anos já estava completamente fora da minha expectativa tal acontecimento.

Nessa mesma tarde (do dia em que tive conhecimento da possibilidade de vir a ser incorporado no Exército), depois do almoço, segui com a família para Lisboa no meu próprio automóvel.
Procurei saber na Secção de Oficiais do Ministério do Exército o que me estava reservado. E aí foi-me dito que, efectivamente, fazia parte de um próximo Curso de Capitães, em Mafra.
E que, depois de promovido, teria de, obrigatoriamente, servir como militar em África. Que não tinha outra saída a não ser que me oferecesse como civil para uma comissão de serviço em Angola, Guiné ou Moçambique e, dado que era diplomado em engenharia, talvez viesse a ser atendido.

Ficamos, eu e a Lena, desolados, regressando às Termas de Monte Real num estado de espírito deplorável.
E foi ainda nesse estado de espírito que voltamos para Viseu poucos dias depois, terminado o tratamento nas Termas.

Antes de 1961, ano em que, como referi, se iniciaram as guerras em África, a Academia Militar tinha boa frequência.
Terminado o curso complementar dos Liceus candidatavam-se inúmeros jovens ao ingresso na referida Academia, os quais eram submetidos a um rigoroso processo de selecção.
Isto acontecia porque o oficial do exército tinha um estatuto muito especial. Desfrutava de uma posição social estimulante. O seu emprego era automático e vitalício. Geralmente usufruía de almoço gratuito nos Quartéis e tinha assistência de graça na doença para si e para a sua família.
A vida, desde que não houvesse guerra, desenrolava-se tranquilamente. E havia também, principalmente para os jovens, o incentivo das fardas.

Depois que as guerras de África começaram, as candidaturas de acesso à Academia Militar baixaram drasticamente.
E baixaram porque a situação se alterou. Os oficiais do quadro permanente eram constantemente mobilizados. Deixavam o aconchego da família, permanentemente. Em África faziam a guerra e como tal eram colocados em lugares inóspitos. A sua alimentação era assegurada com dificuldade. Muitas vezes tinham de consumir alimentos enlatados, tipo rações de combate. Corriam riscos. Adoeciam. Eram feridos e alguns até mortos.
Por isso muito poucos jovens em 1968 tinham interesse na carreira de Oficial do Exército.

Segundo me informaram, na altura, as candidaturas reduziram-se drasticamente e aqueles que tentavam a admissão à Academia geralmente não escolhiam as armas: cavalaria, infantaria e artilharia. Quase todos pretendiam os serviços.
O enquadramento dos nossos soldados por oficiais a nível de Capitão começou a ser um problema pelo que o Governo teve de recorrer aos milicianos que, como eu, estavam na disponibilidade com o posto de Tenente.

Escola Prática de Infantaria de Mafra

No dia seguinte ao terramoto que todo o Portugal sentiu (28 de Fevereiro de 1969) chegou o aviso de que tinha de me apresentar na Escola Prática de Infantaria em Mafra para frequentar o Curso de Promoção a Capitão.
Embora fosse um acontecimento esperado por mim, o que é certo é que a notícia me trouxe alguma intranquilidade e tive de começar a resolver rapidamente uma série de assuntos ligados à minha actividade pública e privada.
Também tive de me deslocar aos Armazéns Militares do Porto a fim de adquirir o meu próprio fardamento.
Em Mafra, onde permaneci entre Março e Julho de 1969, encontrei diversos companheiros meus do tempo de Vendas Novas.

Procurei, com paciência, executar os exercícios físicos que me eram impostos, alguns dos quais me foram particularmente penosos como correr com um saco de areia às costas e rastejar alguns metros por baixo de arame farpado.
Nessa altura já contava 33 anos de idade e fisicamente tinha limitações até porque tinha engordado alguns quilos.
Em Mafra foram-me ministrados ensinamentos sobre a guerra de guerrilhas, uma guerra desleal e traiçoeira feita de emboscadas e golpes de mão.
Este curso terminou com 4 dias na Serra de Montejunto, onde dormi ao relento, no chão, debaixo de pinheiros e me alimentei a rações de combate.

Um dos exercícios foi o assalto a uma aldeia completamente abandonada no cimo da serra. Esta aldeia foi tomada por soldados que comandávamos. Nela estavam abrigados outros soldados da Escola Prática de Infantaria, fazendo de inimigos, que nos receberam com grandes rebentamentos a que nós, naturalmente, respondemos.
Ainda viemos a Lamego, onde estava instalada uma Companhia de Comandos, para assistirmos a diversos "briefings" sobre a guerra que decorria nas três frentes: na Guiné, em Angola e em Moçambique.
Esses "briefings" foram-nos ministrados por oficiais experientes que já haviam cumprido Comissões nesses teatros de guerra.

Em Agosto estava pronto, no entendimento dos meus instrutores, para comandar uma companhia operacional com cerca de 150 homens e fazer frente à guerrilha que era movida em África. Entrei de licença e fiquei à espera da mobilização.
Mas, possivelmente devido aos exercícios físicos a que já há muito não estava habituado, tive uma enorme cólica renal e urinei sangue. Fiz análises e o tratamento recomendado pelo meu médico particular, mas fiquei a ter queixas de cansaço e mal estar na região lombar sempre que me mantinha por algum tempo na posição de pé.
Esse mal estar já eu o havia sentido antes, mas depois da crise porque passei, muitíssimo dolorosa, acentuou-se. Incomodidade essa que, naturalmente, atribuí ao mau funcionamento dos rins.
Tratei-me, repousei e esperei pela mobilização.

(Continua)



in "Memórias da Guiné" de Fernando Magro - Edições Polvo, Ldª - 2005

1 O nome do autor destas Memórias é Fernando de Pinho Valente. Pertence, no entanto, pelo lado paterno, à família dos Magros, uma família portuguesa muito antiga, pelo que decidiu adoptar o nome de Fernando Magro.

2 Diminutivo de Maria Helena, esposa do autor.
____________

Nota do editor

(*) Vd. poste de 27 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11864: Questões politicamente (in)correctas (45): Os dois príncipes: o filho de Kate Middleton e o filho da Fatwa de Catió... (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52)

1. Mensagem de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, úlltimo comandante do Pel Caç Nat 52 (1972/74):

 Data: 23 de Julho de 2013 às 16:30

Assunto: Os dois principes

Caros camaradas, estive ao serviço entre 1972 e 1974 na Guiné. Primeiro na CCAÇ. 4740 e depois no Pel Caç Nat 52 que desmobilizei e onde terminei a comissão já após o 25 de Abril.

Sou habitual visitante do blogue. Conheci pessoalmente o camarada Luis Graça no almoço de 2012 em Monte Real embora sejamos originários da região Oeste, ele da Lourinhã, eu da Marteleira.

Nunca escrevo sobre a Guiné porque não acho suficientemente relevantes os factos que ocorreram e dos quais fui testemunha e actor, não por falsa modéstia ou qualquer outra razão, mas porque não os considero interessantes para a comunidade que frequenta o blogue, mas guardo com enorme carinho e saudade aquela terra e aquele povo com quem tive o privilégio de servir e que quanto mais tempo passa e mais a tecnologia nos inunda e consome, mais apreço tenho pela sua cultura e tradições, sobretudo no que concerne ao respeito pelos homens grandes, pelas crianças e pelos seus mortos e história.

Hoje entro em contacto convosco porque perante o espectáculo mediático do nascimento real em Inglaterra me vieram imediatamente à memória as crianças da Guiné que cresciam sem os mais elementares cuidados de saúde, sem escola, sem nada a não ser o carinho das mães que estavam sempre presentes e mesmo quando se atiravam ao pilão para moer o arroz, ou na bolanha para lavar a roupa, os seus bebés estavam colados ao corpo na mochila dos seus panos. Por isso escrevi um pequeno texto de saudade e lamento por aquela terra e suas gentes que vos envio e que ponho à vossa disposição para que possa ser ou não publicado.


Um abraço, Luís Oliveira

2. Os dois príncipes
por Luís Oliveira

Em Londres, milhares de pessoas aguardaram à porta do Hospital de St Mary e posteriormente junto ao palácio de Buckingham pelo anúncio do nascimento do primeiro filho de Kate Middleton e William. A expectativa foi criada e alimentada por jornais e televisões de todo o mundo que ocuparam horas de transmissão e páginas de jornais, para além das empresas de apostas que irão ganhar milhões com o evento.

O neófito de 3,8 Kg e a mãe foram assistidos por um ginecologista, um obstetra e ainda um consultor neonatalogista e felizmente tudo correu muito bem apesar dos cuidados que o início da gravidez exigiu.

Felizmente esta criança irá ter sem qualquer restrição todos os cuidados de saúde, terá acesso às melhores escolas que oferecerão uma educação reservada aos eleitos e tem no futuro o sucesso garantido, mesmo que, com tudo o que lhe é oferecido se venha a revelar um homem limitado ou mesmo um imbecil.

Em Catió, Fatwa que pilava a vianda foi abrigada a suspender os seu trabalho pelas dores de parto, o bebé estava mesmo a chegar. As vizinhas Cadija e Binta correram a ajudar e Aliu nos seus 2,1 Kg, soltou o seu primeiro choro perante o desconforto do mundo em que terá de viver. 

Obama não mandou as felicitações para Fatwa e talvez Aliu não venha e ter fome, talvez venha a frequentar uma escola e aprender a ler e se tiver saúde nunca irá necessitar de médicos ou hospitais. Terá futuro na bolanha a cultivar arroz, ou com uma HK 47 ao serviço dos senhores da guerra e agentes do tráfico ou com muita sorte em Portugal num clube de futebol profissional. Será este o seu futuro mesmo que dotado um mente brilhante e inteligência superior.

O seu destino está traçado, mas mesmo com a ausência dos jornais, do público e das apostas nunca deixará de ser um príncipe porque mais que tudo é uma criança e mais um ser humano que os seus semelhantes ignoram.

Luís Oliveira

(Foto: Carlos Vinhal)

3. Comentário de L.G.:

Meu caro acamarada e conterrâneo Luís Oliveira:

Acabo de regressar de Luanda, depois de um dia cansativo: levantei-me às 5h30, cheguei ao ao aeroporto às 7h00 e... embarquei no Airbus 340, do TP 288, às 13h00... Coisa rara, hoje (ou melhor, ontem, 23,) o  cacimbo afectou o tráfego aéreo, atrasando os voos que levariam a casa umas largas centenas de desvairadas gentes que por aqui andam na labuta da vida ou que muito simplesmente vieram á FILDA 2013, a cada vez mais anaimada Feira Internacional de Luanda:: portugueses ("tugas"), chineses, cubanos, brasileiros...

Durante uma semana, de 17 até 23 do corrente,  não vi nem editei o nosso blogue. O Carlos Vinhal segurou a barra. 

Tudo para te dizer que fiquei sensibilizado e feliz pelo teu mail que acabo de ler e que me apresso a publicar, pela sua atualidade e oportunidade... Se me permites um comentário, veio-me à memória o provérbio ou ditado popular alentejano: "A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"... Isto diz tudo sobre a distância, não apenas física como simbólica e cultural, que existe entre Londres e Catió, entre a Kate e a Fatwa... O menino nasce com 3,8 kg, o moço com 2,1 kg...Os dois são príncipes, mas o Aliu será, com todas as probabilidades, um "príncipe do nada", se conseguir ultrapassar a terrível barreira dos 5 anos...

Faço questão de, mais uma vez, te pedir que aceites o meu convite para te juntares à  grande fanília da Tabanca Grande, passando a seres o membro  nº 625 do blogue.  Permito-me discordar da tua opinião segundo  a qual as tuas memórias pessoais da Guiné seriam irrelevantes para a historiografia da guerra colonial...  Não são, pelo menos não são para mim e para todos aqueles que passaram por Bambadinca e tiveram o privilégio de conhecer os bravos do Pel Caç Nat 52... Ora, tu foste muito simplesmente o último comandante desta subunidade, composta por camaradas guineenses... E do Pel Caç Nat 52 estão cá, na nossa Tabanca Grande, não só o seu primeiro comandante, o Henrique Matos,  como também outros que se lhe seguiram, o Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves...

Estou demasiado cansado para a esta hora fazer o teu poste de apresentadação. Mas estou seguro que  nos vai honrar com a tua presença. De resto, já cumpriste as nossas regras básicas, que é o envio de 2 fotos + 1 texto ou história,

Um abraço. Espero poder encontar-te em agosto na Praia da Areia Branca, na Marteleira ou na Lourinhã. LG

PS1 -  Vejo que também estás no Facebook.

PS 2 - Na Ilha de Luanda, e sempre que lá estou, não posso deixar de pensar nos meninos angolanos (e de toda a África, em particular da África lusófona) que aprenderam a fintar a morte...Vejam-se aqui dois poemas meus, já antigos, de outras viagens:

Os meninos da ilha de Luanda

Luanda (re)visitada

(...) Na praia dos pescadores
Há meninos, brancos e pretos,
Pé descalço e calças rotas,
A chutar a bola às balizas da sorte.
Poderão não vir a ser uns senhores,
E sorrir como o Mantorras,
O rosto espalhado em outdoors pela cidade.
Mas contarão, decerto, aos seus netos
Como souberam fintar a morte
Desde a mais tenra idade. (...)

_______________

Nota do editor:

Último poset da série > 7 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11538: Questões politicamente (in)correctas (44): Há um provérbio fula que diz: "Quando se fala dos maus, os bons sentem-se ofendidos" (Cherno Baldé)

terça-feira, 23 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11863: Memória dos lugares (239): Canjambari 1972 (2) (Manuel Lima Santos)




Segunda série de fotografias enviadas pelo nosso camarada Manuel Lima Santos (ex-Fur Mil Inf.ª na açoriana CCAÇ 3476 - "Os Bebés de Canjambari"Canjambari e Dugal, 1971/73) para a série Memória dos lugares.


Canjambari, 1972 > Aquartelamento

Canjambari > Hastear da Bandeira

Lançamento de frescos em pára-quedas

Canjambari > Memorial da CCAÇ 3476

Canjambari > Messe de Oficiais e Sargentos, e reservatório da água

Canjambari > Picagem da picada para Jumbembem

Canjambari > regresso de coluna

Canjambari > Segurança a coluna na zona de Sare Tenen

Canjambari > Tabanca

Canjambari > Refeitório e balneário

Canjambari > Interior do aquartelamento

Sem legenda

Sem legenda

Bissau > Escola Primária Marechal Carmona
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Nota do editor

Poste anterior de 20 de Julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11856: Memória dos lugares (238): Canjambari 1972 (1) (Manuel Lima Santos)

Guiné 63/74 - P11862: Bom ou mau tempo na bolanha (21): O medo na guerra (Tony Borié)

Vigésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O primeiro sintoma, ou a primeira reacção de um combatente em cenário de guerra, quando ouvia uma explosão ou o som de um disparo de qualquer arma, era única e simplesmente MEDO!

Sim, medo. Alguns, como era o caso do Cifra, fugiam para o abrigo mais próximo, muitas vezes encolhia-se num canto, com as mãos na cara ou na cabeça, esperando que o som dos tiros e da explosões das granadas terminassem. Outros gritavam frases sem qualquer senso, disparavam em qualquer direcção onde pensavam que os guerrilheiros se encontravam, tentavam não se acomodar, mas toda essa movimentação, gritos e gestos, era sem qualquer dúvida, o querer afugentar o medo que naquela altura sentiam, essa é a verdade de quem lá andou, presenciou estas malditas cenas e viu os rostos desfigurados de alguns companheiros que queriam demonstrar alguma coragem, mas naquele momento, atrapalhados, com o medo, claro, tinham dificuldade em trocar o carregador da G-3, quando estava vazio.

É dos livros, muitos heróis foram-no, porque o medo e o desespero fizeram com que fossem buscar forças e coragem que nunca souberam onde, para ultrapassar essas dificuldades de medo, que na altura sentiam.

É por isso que eu aprecio os textos de alguns dos nossos amigos antigos combatentes, que escrevem neste blogue, que nos contam algumas passagens verdadeiras do que lá passaram, mas contam-nas com um certo humor, com uma certa graça, tentam sempre pôr um pouquinho de boa disposição em cenas, que às vezes são de arrepiar.

O Cifra não quer abusar do precioso espaço deste blogue, porque daqui a pouco o bom do Carlos Vinhal vai dizer que já tem mais de quatro páginas e umas tantas fotos ou “rascunhos” a mais, o Luís Graça é capaz de pensar que este blogue não é só do Cifra, pois tem que o repartir com mais umas centenas de companheiros, isto é só o Cifra que diz, pois o Cifra, nunca ouviu um só lamúria da boca de ambos, pelo contrário, mas não pode deixar de exemplificar algumas passagens de alguns companheiros, como por exemplo:
O companheiro Jorge Cabral, o “nosso alfero”, no meio daquele ambiente, com muito poucas condições para um ser humano sobreviver, dizia que tomava “banho à Fula”, falava um pouco “à Fula” mas sabia que ressonava “à Fula” e com o maior humor do mundo, comia numa mesa “ensebada” e quando lhe perguntaram se sabia falar Fula, ele respondeu que em Fula... só ressonava!.

O Veríssimo Ferreira, para não dizer que era ele, que andou por lá a calcar bolanhas, tarrafo e savanas, a certa altura diz que o seu relógio “Cauny Prima Swiss, 25 rubis”, que até era “waterproof”, pois tinha que realmente ser, passeou com ele por Bissau, Mansoa, Cutia, Mansabá, Bissorã, Pelundo, Teixeira Pinto, Cuntima, Canjambari, Quinhamel e Farim, e tinha combatido em Buro, Berecobá, Biribão, Jolmete e K3.

O José Manuel Matos Dinis, que muito originalmente se assina com as letras “J.D.”, diz numa altura de alerta, em que as forças militares iriam entrar em acção, que na sua frente aparece um “contra-guerrilheiro”, empunhando a espingarda automática G-3, com o cinturão a pender da cintura, mas sem tapar o órgão genital, que era um bravo combatente da província do Minho remoto de Perre, e que lhe gritava, “eles estão cá dentro”...!


E para terminar, queria só lembrar esta passagem real, vivida num momento de desespero, contada com toda a sinceridade, que o nosso querido companheiro de armas e de profissão, Henrique Cerqueira descreve: “Nós só tínhamos três meses de mato e como é natural nos primeiros momentos de ataque pelo menos deitei-me no chão e só não escavei um buraco porque não sabia se devia usar as mãos para escavar... ou tapar a cabeça. Eis que passados alguns eternos minutos, olho para o lado e vejo o meu Inhata, a municiar a minha arma e a preparar-se para disparar. Aí senti alguma “vergonha”, saquei-lhe a arma das suas mãos e toca a disparar e o Inhata sempre a meu lado a municiar. Este, numa breve acalmia do ataque, teve o cuidado de me confortar dizendo que já estava habituado e que só queria municiar a arma. Eu acho que ele se apercebeu que inicialmente eu estava era todo acagaçado e na verdade estava mesmo”.

Creio, que mais sinceridade nesta descrição não pode existir.

Mas também existem cenas com alguma ternura, de mulheres que por lá passaram e que sofreram o clima, calcaram aquela terra vermelha, ouviram o som dos tiros e o desespero dos seus maridos e companheiros, mas tinham alguma coragem, estavam a seu lado, a dar-lhe o conforto possível, portanto também sofreram a guerra, como a esposa do Henrique, a sua amada Ni, que a certa altura diz: “Quando chegamos a Bissorã e entro na nossa “casa”, fiquei espantada pois estava decorada com os assentos de um carocha, as camas da tropa, tínhamos um frigorífico a petróleo, a casa de banho, eram dois bidões de chapa...!

Tony Borie,
Julho de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11857: Bom ou mau tempo na bolanha (20): O Cifra encontra os seus amigos (Toni Borié)