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Em mensagem do dia 24 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
13 - De 9 a 14 de Junho de 1973
Da História da Unidade BCAÇ 4513:
JUN73/09 – A 1.ª CCAÇ efectuou um patrulhamento para a região de LENGUEL. Descobriu uma BFog de MORT82 no R. COEL.
(...)
Às 16h40 o destacamento de CUMBIJÃ foi flagelado com 40 granadas de morteiro 82 da região do R. COEL [!], sem consequências.
Do meu diário:
09 de Junho de 1973 – (sábado) – Ainda Guidage, do outro lado.
Nada de especial a assinalar,
[noto a omissão à flagelação de Cumbijã. Desconhecimento? Banalização?], além de uma pequena mas curiosa ocorrência: chegou hoje a Mampatá, um antigo soldado do grupo do camarada Câmara (Companhia Africana) e que actualmente está no grupo do Alf. Marcelino da Mata, (militar a quem já fiz referência ao descrever a demonstração de armas capturadas ao PAIGC que ele fez em Bolama). Ora, este militar é, portanto, um soldado dos Comandos Africanos, e entrou nestas últimas operações de relevo, a respeito das quais se tem ouvido fazer tantas alusões de há umas semanas para cá, sendo umas verdadeiras e outras deturpadas. Conta-nos ele que na região de Guidage a nossa situação é grave e melindrosa, devido às frequentes e eficientes acções desenvolvidas pelos guerrilheiros contra as nossas tropas. Confirmou as notícias que nos chegaram dessa zona, a respeito da coluna auto, massacrada. Era uma coluna de Berliet que transportava tropas e grande quantidade de munições, que a dada altura foi atacada por todos os lados por milhares
[?] de guerrilheiros, forçando a nossa tropa a abandonar tudo, sem outra alternativa.
[Isto pode conter imprecisões pois tem como fonte o tal soldado e o “jornal da caserna”]. Daí até os ditos “turras” saltarem para cima das viaturas e tentarem chegar com elas ao Senegal, foi um ápice. Nessa altura a Força Aérea bombardeou toda a coluna, destruindo-a, impedindo que concretizassem os seus intentos. De qualquer forma, para nós, foi uma derrota sem remédio, com um saldo bastante negativo: várias vidas perdidas e algumas centenas de contos em material deixado para ninguém.
Estes acontecimentos superam em larga medida, os ocorridos recentemente aqui em Nhacobá, no que diz respeito à importância das acções e suas consequências. Foi certamente por represália, que as nossas tropas entraram (...) e destruíram uma importante base IN, causando enormes baixas às tropas que ali se encontravam e destruindo ou capturando todo o armamento que puderam. Segundo o referido soldado Comando, seriam necessários quatro helicópteros para trazerem todo o material. Impossível, até porque não se podiam dar a tal veleidade. Perante a situação, quem comandou a operação, em que entrou grande efectivo de tropas especiais, permitiu que os soldados trouxessem para si próprios
[!] todo o armamento que quisessem e pudessem trazer. O resto seria destruído. Imagino a euforia da retirada. Depois disso muitas armas foram vendidas e oferecidas a quem aprecia tais brinquedos, tanto mais que não acarretaria qualquer problema a posse desse material, uma vez que (...).
[Seria assim? A verdade é que me tentaram vender uma Simonov e eu recusei].
O antigo pupilo do Alf. Câmara (...) era com um misto de tristeza e resignação que aludia à quantidade de armas novas, ainda encaixotadas, que tiveram que destruir juntamente com mísseis e rampas de lançamento e outro armamento pesado. Quis-me parecer que, se lhe dessem tempo, traria tudo isso para cá (..). Há quem goste mais de saias!...
[Hoje temos dados suficientes para confirmar ou rebater toda esta informação sobre Guidage (...) trazida pelo mensageiro. Haja pachorra].
10 de Junho de 1973 – (domingo) – Mampatá. Dia de Camões.
Hoje foi domingo, mas poucos deram por isso. Para a guerrilha não há domingo e para nós também não. Hoje foi o Dia de Camões, mas poucos deram por isso. Para a guerrilha não há Camões e para nós também não.
[Para a História da Unidade também não]. Não há família e amor, nem há paz. Há, isso sim, farrapos humanos que falam das suas intermináveis e enfadonhas aventuras, que choram sem motivo e riem por ver rir os outros, e estes sem ser por nada, como diria o nosso Fernando Pessoa pela voz do Zeca Afonso.
Soube pelo Cap. B. da C. à hora do jantar que, amanhã, toda a Companhia irá para Aldeia Formosa, onde ficará uns dias (?), uma vez que, tanto ele como o Cap. Marcelino irão agora de férias. Não podendo ficar Mampatá sem um capitão a comandar, virá para cá a 1.ª CCAÇ comandada pelo Cap. B. D.. Esta notícia veio-me interromper a normal digestão do jantar. Aldeia Formosa não nos interessa por várias razões e mais uma: a presença dos “crânios”. Paciência.
[Era a maneira de ver tudo pela negativa, porque Aldeia Formosa, (como Nhala ou Buba), quanto mais não fosse, tinha edifícios onde se podia dormir descansados, tomar banho e beber uns canecos, muito diferente de viver em tendas e dormir no chão e à intempérie. Ainda hoje não suporto a ideia de fazer campismo...]
11 de Junho de 1973 – (segunda-feira) – Aldeia Formosa.
Temos a Companhia instalada em Aldeia Formosa, mas o nosso serviço é o mesmo e limita-se à protecção dos trabalhos na estrada Cumbijã/Nhacobá. Hoje, por ser o dia da nossa mudança, não fizemos nada. O Cap. B. da C. seguiu hoje de avião para Bissau, para dali ir de férias para a Metrópole.
12 de Junho de 1973 – (terça-feira) – Começar pelo descanso.
Saíram três grupos de combate da Companhia: dois, para a estrada ou Nhacobá, e outro para fazer a coluna a Buba. O meu grupo ficou de descanso.
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
JUN73/13 – Grupo IN estimado 20/30 elementos emboscou região (XITOLE 4 G 8-27) com armas automáticas, morteiro 60 e RPG durante dez minutos a frente de coluna de forças que se deslocavam para os trabalhos de estrada, sem consequências. IN retirou em direcção ao R.Habi, após a reacção da NT.
- Pelas 19h00 grupo IN não estimado flagelou com cerca de 20 granadas de canhão s/ recuo e morteiro 82, durante 15 minutos, o estacionamento de NHACOBÁ. A direcção foi de UNAL, BRICAMA e LENGUEL.
Do meu diário:
13 de Junho de 1973 – (quarta-feira) – Baptismo de fogo.
Para os supersticiosos foi dia de azar. Para os católicos foi dia de Santo António e de azar também. Para mim, foi um dia que me correu mal desde manhã até à noite, - azar, portanto -, para além de ter que suportar incómodas dores de cabeça. Foi também, para mim e o meu grupo, o baptismo de fogo nesta guerra.
Saímos de Aldeia Formosa muito cedo, na habitual coluna auto, e com um nevoeiro bastante cerrado que se manteve por largo tempo. À passagem por Mampatá fiquei furioso porque um capitão, sem se aperceber decerto, me separou o pelotão na extensa coluna, ficando eu com metade numa Berliet e seguindo o resto com o furriel D. C. O., muito à frente noutra Berliet, embora separados apenas por duas viaturas da Engenharia, mas a guardar espaços enormes. Como sempre, era uma coluna interminável mas, agora, a furar o nevoeiro espesso que não permitia enxergar nada dentro da mata e mal se divisava a viatura da frente. Parecia noite. Esta atmosfera fez-me ter um pressentimento - como aconteceu a outros, soube depois -, de que iríamos ser atacados. Como a minha espingarda ia junta com a do furriel J. M. P. na porta da Berliet, lembrei-me de verificar se a de cima era a minha, pois não queria ter problemas em caso de emergência para saltar da viatura, uma vez que eu ia do lado da porta e o furriel entre mim e o condutor.
Mal acabo de fazer esta verificação, reparo que as viaturas da frente levavam a porta aberta. De repente param e salta tudo para o chão no instante em que desaba um fogachal de armas automáticas. Nesse instante também já o meu grupo se tinha projectado por cima dos taipais da Berliet, abrigando-se nas bermas da estrada. Não percebi que sinal tiveram os da frente para abrirem as portas ainda antes de ter havido qualquer disparo. Eu confesso que só me lembro de estar no chão de G3 na mão, a seguir aos primeiros tiros, mas não me lembro como abri a porta e saltei. Na berma da estrada verifiquei que a força maior do ataque era a uns 100 metros, e do lado direito, tendo apanhado a cabeça da coluna na zona de morte. Mandei o pessoal abrigar-se melhor na orla da mata e eu fiquei na berma de joelhos junto a um cepo, a tentar perceber melhor a situação. Mas depois vi-me obrigado a abrigar-me também quando ouvi por cima de mim, ou pelo menos muito perto, os rebentamentos de RPG que, aliás, rebentavam na mata um pouco por todo o lado.
Tudo começou com rajadas da “costureirinha” (ou Kalashnikov?), mas logo começaram a rebentar por cima da coluna e na mata as granadas de morteiro e RPG. Depois calaram-se as armas ligeiras e bateram em retirada, lançando granadas dispersas para cobrir a fuga. Foi por esta altura que, vindo do fim da coluna, passou o Major D. M. e o Cap. de Operações J. C. Vendo-me abrigado junto do pessoal, disse-me: “ – Então, ó Murta, estou farto de o chamar pelo rádio e você não responde? Onde é que tem o rádio?” – Olho para o lado e vejo o 1.º Cabo operador do rádio tão admirado como eu. O rádio tinha ficado em cima da Berliet. Mas quem é que no baptismo de fogo se lembra do rádio? Nem da minha mãezinha me lembrei...
Entretanto, da frente aparece o furriel D. C. O. a buscar granadas de bazuca pois a metade do grupo que ficou quase na zona de morte apenas levava duas, tendo-as lançado. Levaram mais granadas mas já não chegaram a ser utilizadas, pois só a 3.ª CCAÇ ficou a bater a zona de retirada IN com o morteiro. A 3.ª CCAÇ, sempre vítima, ficou na zona de morte e reagiu impecavelmente, primeiro com dilagramas sobre os atacantes que se encontravam na bolanha e, depois, à morteirada. Ao perceberem a fuga começaram a usar balistite nas granadas, aumentando progressivamente as cargas para atingir distâncias maiores. Durou isto uns 10 minutos no máximo, até que tudo se calou de vez. Mesmo assim, mantivemo-nos no local quase três quartos de hora. É a sétima emboscada que eles fazem naquele local, mas a última já foi há bastante tempo e causou uma vítima. Hoje, porém, os únicos feridos, por ironia, seguiam dentro da Chaimite que normalmente encabeça a coluna. Eram da 3.ª CCAÇ do grupo do Alf. Mota e, parece, iam ali por estarem adoentados. O que se disse é que assim que a Chaimite levou as primeiras rajadas, o condutor fechou a tampa da torre e ficou com os pequenos vidros frontais embaciados. Perdendo a visibilidade, embateu contra uma das paredes da “pedreira” (onde se faz a extracção de saibro para a estrada), ficando ali “encalhada”. Os feridos levaram uns pontos, a coluna seguiu e a Chaimite ficou a tentar safar-se pelos próprios meios.
13 de Junho de 1973 – Estrada Aldeia Formosa / Nhacobá numa manhã de nevoeiro cerrado. Emboscada à coluna auto, militar e da Engenharia, que se dirigia para Nhacobá. À frente vêem-se paradas as primeiras viaturas da coluna. À direita na foto, o 1.º Cabo Tinoco do meu grupo com a sua HK 21. Está de costas para a nossa Berliet, não visível. Esta e a fotografia seguinte, são das poucas que tenho em papel e as únicas feitas durante um ataque. Mas não tenho a mínima lembrança de as ter feito.
13 de Junho de 1973 – Estrada Aldeia Formosa / Nhacobá numa manhã de nevoeiro cerrado. Na estrada, a caminhar para nós, vê-se à esquerda o Fur. D. C. O. e o “Mafra”, apontador de bazuca. Vinham buscar granadas de bazuca para levarem para a viatura com o resto do nosso grupo de combate, lá à frente. À esquerda na foto está o Victor, quase irreconhecível pela falta de luz, mas sei que é ele. Estas fotografias foram feitas já no rescaldo da emboscada.
[Para quem costumava ouvir pela rádio as atoardas da “Maria Turra”, após esta emboscada, não mais acreditou nela: entre os muitos mortos que nos atribuiu, contava-se o Major D. M. que, como ficou escrito, até me foi chatear a cabeça, de tão vivinho que estava. E espero que ainda continue, pois apesar das nossas tricas, estimava-o. Também mais tarde, aquando da primeira flagelação que sofremos em Nhacobá, o meu grupo e o do alferes J. A. C. P., ela disse: “ - Os periquitos de Nhala já fizeram sangue, mas vão pagá-lo bem caro!”. – Assim, tal e qual! Só que ninguém ficou preocupado com a ameaça, vinda de quem vinha].
Acabado o sufoco na “pedreira”, um baptismo ainda que breve, era tempo de descer o nó na garganta, retomar as pulsações e o nível da ansiedade e do medo, enfim, respirar fundo e ir à vida, sempre alerta e preparados para a próxima. O meu serviço, hoje, foi de segurança à retaguarda, o que me obrigou a passar naquele local, só com o meu grupo, várias vezes ao longo do dia, a caminho de Aldeia Formosa e volta. Ainda admiti que, cientes desta rotina diária, voltassem à estrada ou àquele local para me fazerem uma espera, mas não aconteceu nada. Mas a cada aproximação, reduzíamos a velocidade e aumentávamos as distâncias entre as duas viaturas, numa vigilância cerrada para a mata de ambos os lados da estrada. Tive um fim de manhã e uma tarde extenuantes e problemas com o Cap. de Operações do meu Batalhão.
14 de Junho de 1973 – (quinta-feira) – Dia de descanso.
Dia de descanso para o meu grupo. À noite levantou-se forte temporal, mas passou ao largo. Só a chuva se manteve por muito tempo.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de julho de 2015 >
Guiné 63/74 - P14910: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (12): 26 de Maio a 8 de Junho de 1973