1. Já aqui publicámos um dos textos mais notáveis do blogue, daqueles que terão, obrigatoriamente, de figurar na antologia dos 100 melhores postes da Tabanca Grande que um dia, se houver tempo, pachorra e saúde, ainda haveremos de organizar... Referimo-nos ao poste P3543, de 30/11/2008, do nosso camarada e grã-tabanqueiro da primeira hora Mário Dias (1).
Mário [Roseira] Dias [, foto de 2005, à direita, ] foi para a Guiné no início dos anos 50, ainda adolescente, tendo assistido à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943... Conheceu Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959,
[foto à esquerda, efígie de Domingos Ramos em nota de 100 pesos, emetida em 1990, pelo Banco Centreal da Guiné-Bissau]
Como é sabido, o Domingos [Gomes Ramos tornar-se-ia um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC, sendo comnhecido pelo seu nome de guerra, "João Cá". Este CSM acabaria, de resto, por ser um alfobre de quadros... para o PAIGC.
Segundo o próprio Mário Dias nos conta (2), o Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, ou seja, já não era um indígena.
Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, colocado no Centro de Instrução Militar (entretanto transferido de Bissau para Bolama).
Mário [Roseira] Dias [, foto de 2005, à direita, ] foi para a Guiné no início dos anos 50, ainda adolescente, tendo assistido à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943... Conheceu Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959,
[foto à esquerda, efígie de Domingos Ramos em nota de 100 pesos, emetida em 1990, pelo Banco Centreal da Guiné-Bissau]
Como é sabido, o Domingos [Gomes Ramos tornar-se-ia um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC, sendo comnhecido pelo seu nome de guerra, "João Cá". Este CSM acabaria, de resto, por ser um alfobre de quadros... para o PAIGC.
Segundo o próprio Mário Dias nos conta (2), o Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, ou seja, já não era um indígena.
Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, colocado no Centro de Instrução Militar (entretanto transferido de Bissau para Bolama).
Os dois amigos seguirão caminhos diferentes: Mário Dias será um dos fundadores da CCmds da Guiné e é combatente no CTIG (até 1966), seguindo depois para Angola, como sargento do quadro permanente, não sem antes ter estado frente a frente com o seu antigo camarada e amigo, em meados de 1965, nas matas do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá...
Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante anos e revelou, em primeira mão, aqui no nosso blogue, aos seus amigos e camaradas da Guiné (1). Um ano e poico depois o Domingos Ramos morreria, em combate, em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (3). A sua perda foi particularmente por Amílcar Cabral.
O Mário, grande português e um homem de invulgar nobreza, tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Diz ele:
"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".
Por tudo isto, estes dois homens merecem ser aqui lembrados: um já morreu sem ter podido partilhar o seu segredo com o seu antigo camarada e amigo (e sobretudo confirmar a sua versão dos factos, passados em Bolama).
O que se passou, realmente, em Bolama, por volta de outubro de 1960 ? Domingos Ramos, segundo se depreende do testemunho (insuspeito) de Mário Dias, terá sido vítima do militarismo e do racismo de um oficial português, ao punir o 1º cabo miliciano Ramos com vários dias de prisão.
2. O segredo de... Domingos RamosVale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante anos e revelou, em primeira mão, aqui no nosso blogue, aos seus amigos e camaradas da Guiné (1). Um ano e poico depois o Domingos Ramos morreria, em combate, em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (3). A sua perda foi particularmente por Amílcar Cabral.
O Mário, grande português e um homem de invulgar nobreza, tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Diz ele:
"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".
Por tudo isto, estes dois homens merecem ser aqui lembrados: um já morreu sem ter podido partilhar o seu segredo com o seu antigo camarada e amigo (e sobretudo confirmar a sua versão dos factos, passados em Bolama).
O que se passou, realmente, em Bolama, por volta de outubro de 1960 ? Domingos Ramos, segundo se depreende do testemunho (insuspeito) de Mário Dias, terá sido vítima do militarismo e do racismo de um oficial português, ao punir o 1º cabo miliciano Ramos com vários dias de prisão.
por Mário Dias
Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Centro de Instrução Civilizados (CIC) > Maio de 1959 > Recruta > "Eu, Domingos Ramos e outros"...
Texto e fotos: © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados
Manhã de 8 de Maio de 1959. Na parada do quartel da Bateria de Artilharia de Campanha [BAC] em Bissau, Santa Luzia, defronte ao que viria a ser o QG [Quartel General], mancebos agrupavam-se segundo indicações de alguns oficiais e sargentos e preparavam-se para iniciar a sua vida militar. Eu era um deles. Com receio, mas também com alguma expectativa pelo que iria acontecer.
Foi nas instalações desse quartel que funcionou pela primeira vez uma escola de recrutas seguida de um CSM [ Curso de Sargentos Milicianos ] para europeus e guineenses considerados civilizados ou assimilados, já com formação escolar de, pelo menos, o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.
Até essa data, a recruta era separada e, sendo os europeus um pequeno número que não justificava uma incorporação anual, iam ficando esperados alguns anos e, quando havia suficientes mancebos para formar um ou mais pelotões, realizava-se a recruta que tinha lugar em Bolama. Portanto, esta incorporação de 1959, foi a primeira na Guiné que juntou europeus e africanos.
Curiosamente, a unidade chamava-se Centro de Instrução de Civilizados (CIC) por se destinar a africanos considerados civilizados [ou assimilados]. O comandante era o capitão Teixeira, pai do conhecido historiador Nuno Severiano Teixeira (4). Nos anos seguintes, talvez devido ao caricato da designação, passou a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM) e foi transferido para Bolama.
Texto e fotos: © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados
Foi nas instalações desse quartel que funcionou pela primeira vez uma escola de recrutas seguida de um CSM [ Curso de Sargentos Milicianos ] para europeus e guineenses considerados civilizados ou assimilados, já com formação escolar de, pelo menos, o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.
Até essa data, a recruta era separada e, sendo os europeus um pequeno número que não justificava uma incorporação anual, iam ficando esperados alguns anos e, quando havia suficientes mancebos para formar um ou mais pelotões, realizava-se a recruta que tinha lugar em Bolama. Portanto, esta incorporação de 1959, foi a primeira na Guiné que juntou europeus e africanos.
Curiosamente, a unidade chamava-se Centro de Instrução de Civilizados (CIC) por se destinar a africanos considerados civilizados [ou assimilados]. O comandante era o capitão Teixeira, pai do conhecido historiador Nuno Severiano Teixeira (4). Nos anos seguintes, talvez devido ao caricato da designação, passou a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM) e foi transferido para Bolama.
Foto nº 1 A
Foto nº 1 B
Aqui está o 1º pelotão do CIC da incorporação de 1959 em Bissau [Foto nº1]. Eu estou à esquerda, na 3ª fila (de óculos) [Foto nº 1 A]. Uma pequena chamada de atenção para o facto de os homens situados à esquerda do pelotão serem europeus. Tal não se deve a qualquer espécie de discriminação ou elitismo. Aconteceu que, formando-se, como sabem, por alturas, nós, os tugas, éramos os mais pequenos. Dos elementos africanos, alguns foram para o PAIGC após a passagem à disponibilidade. De entre eles, quero aqui destacar o Domingos Ramos (segundo à direita na fila de pé) [Foto nº 1 B].
O Domingos Ramos era um indivíduo bem constituído fisicamente e, sobretudo, moralmente. Aquilo que se pode chamar, um bom gigante. Desde o início da nossa vivência comum que por ele tive uma especial estima. Tornámo-nos bons amigos em todas as situações e na caserna, nas horas de descanso, trocávamos opiniões sobre os mais variados assuntos, com especial interesse da minha parte por tudo relacionado com os usos e costumes dos guineenses. Muito aprendi com ele. Recordo ainda com saudade e emoção as paródias, próprias da irreverência da nossa juventude. E da célebre água pú que ele me ensinou e a que aderi com entusiasmo.
Eu explico: Água pú era uma bebida/comida energética, fácil de fazer, fruto do desenrascanço e instinto de sobrevivência dos africanos e que eu desconhecia. Trata-se de um tigela ou caneca com água onde se dissolve açúcar, quanto mais melhor, e nessa calda se vão molhando pedaços de pão quase como se de açorda se tratasse.
Que bem que sabia! Fiquei cliente viciado desde a primeira vez que, pela mão do Domingos Ramos provei. No final da 3ª refeição, metíamos no bolso (à socapa) o casqueiro sobrante que guardávamos no armário da caserna onde, para o efeito, não faltava o respectivo açúcar. Saída para Bissau - as garotas ou bajudas estavam à espera - e, após o recolher, lá íamos repor energias com a água pú. Mal o sargento de dia dava a ordem de destroçar, era uma correria, direitos aos armários gritando com todo o entusiasmo: Água púuuuu…
Nesse ambiente de sã camaradagem se passou o tempo até ao juramento de bandeira que teve lugar em 10 de agosto de 1959, alguns dias após os célebres acontecimentos do Pidjiguiti (5). Terminada a recruta, teve início a 14 de agosto de 1959 o 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) que houve na Guiné. Nesta fase, já que os instruendos do CSM eram menos que durante a recruta (alguns foram para a Escola de Cabos e outros ficaram como soldados), os nossos laços de amizade estreitaram-se ainda mais.
Foto nº 2
Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > Instruendos do CSM / 59 . Em baixo, a partir da esquerda, : eu [, Mário Dias, de óculos]; Domingos Ramos apontando a velha Mauser; Pinhel; Orlando; e Laurentino Pedro Gomes [que, tal como eu, após passagem à disponibilidade, regressou ao serviço como furriel do quadro, seguindo a carreira milita; segundo me disseram, faleceu num acidente de viação nas proximidades de Cacheu já depois da independência].
De pé, também a partir da esquerda, está um (não me lembro o nome) que veio a ser professor de trabalhos manuais no liceu de Bissau; a seguir o Telmo que acabou por se formar em economia e já faleceu; o Armindo Birges; depois é o alferes Vigário, um dos nossos instrutores que viria a falecer em combate em Angola; segue-se o Coelho, exímio acordeonista, sobrinho de um conhecido comerciante de Cacine e que acabou emigrando para o Brasil; finalmente o 1º cabo Cerqueira, que já pertencia ao Quadro Permanente [QP] e que fez o CSM para obter condições de promoção a furriel.
De pé, também a partir da esquerda, está um (não me lembro o nome) que veio a ser professor de trabalhos manuais no liceu de Bissau; a seguir o Telmo que acabou por se formar em economia e já faleceu; o Armindo Birges; depois é o alferes Vigário, um dos nossos instrutores que viria a falecer em combate em Angola; segue-se o Coelho, exímio acordeonista, sobrinho de um conhecido comerciante de Cacine e que acabou emigrando para o Brasil; finalmente o 1º cabo Cerqueira, que já pertencia ao Quadro Permanente [QP] e que fez o CSM para obter condições de promoção a furriel.
Foto nº 3
Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos montando a tenda... Aqui está o Domingos Ramos nos exercícios finais do CSM (semana de campo), atarefado na montagem da barraca que era feita com 3 panos de tenda ligados entre si por botões metálicos.n Certamente que alguns tertulianos se recordam deste primitivo sistema. A fotografia não tem grande qualidade mas não deixo de mostrá-la, por se tratar de uma pessoa que muito estimei.
Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos na Semana de Campo... Aqui, como se pode ver pelos apetrechos que levam nas mãos (cantil e marmita) iam a caminho do carro que nos trazia o almoço durante a semana de campo. O Domingos Ramos é o segundo da direita.
O CSM terminou 28 de novembro [de 1959] e a 29 fomos promovidos a 1ºs cabos milicianos que era uma forma de o regime de então poupar umas massas. Fazíamos sargentos de dia, frequentávamos a messe e tínhamos as responsabilidades inerentes mas… ganhavamos como cabos.
A seguir ao CSM, tivemos que dar uma recruta como monitores. Alguns, entre os quais o Domingos Ramos, foram colocados para o efeito em Bolama, ficando outros, como eu, em Bissau. Creio que algo se passou em Bolama que o tornou permeável aos apelos do PAIGC e o levou a aderir à luta. Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter.
O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós. Este Rui Jassi era filho do capitão de 2ª linha Jassi que morava no lado direito da estrada de Santa Luzia, perto da capela aí existente. Era uma figura incontornável nas cerimónias e festividades às quais comparecia orgulhosamente com a sua farda branca. Quando soube que o filho tinha passado para o PAIGC, segundo constava, dizia que oferecia tudo quanto tinha a quem lhe trouxesse o seu cadáver. Talvez isto não passe de mais uma das muitas lendas que se foram gerando.
Mas, regressando ao Domingos Ramos, tema principal desta minha intervenção, creio que foi um acontecimento em Bolama que o fez mudar de ideias. Um dia, já próximo da nossa passagem à situação de licença registada, que ocorreu em outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em fevereiro de 1961, o Laurentino [Pedro Gomes] mostrou-me uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama, respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias.
Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que "palavra de oficial faz fé" é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado.
E foi isso, creio, que o levou a juntar-se ao PAIGC. Nos primeiros dias de novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros cujos nomes já não me ocorrem, partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento.
Morreu em combate num dos ataques ao quartel de Madina do Boé onde está sepultado. Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar.
O CSM terminou 28 de novembro [de 1959] e a 29 fomos promovidos a 1ºs cabos milicianos que era uma forma de o regime de então poupar umas massas. Fazíamos sargentos de dia, frequentávamos a messe e tínhamos as responsabilidades inerentes mas… ganhavamos como cabos.
A seguir ao CSM, tivemos que dar uma recruta como monitores. Alguns, entre os quais o Domingos Ramos, foram colocados para o efeito em Bolama, ficando outros, como eu, em Bissau. Creio que algo se passou em Bolama que o tornou permeável aos apelos do PAIGC e o levou a aderir à luta. Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter.
O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós. Este Rui Jassi era filho do capitão de 2ª linha Jassi que morava no lado direito da estrada de Santa Luzia, perto da capela aí existente. Era uma figura incontornável nas cerimónias e festividades às quais comparecia orgulhosamente com a sua farda branca. Quando soube que o filho tinha passado para o PAIGC, segundo constava, dizia que oferecia tudo quanto tinha a quem lhe trouxesse o seu cadáver. Talvez isto não passe de mais uma das muitas lendas que se foram gerando.
Mas, regressando ao Domingos Ramos, tema principal desta minha intervenção, creio que foi um acontecimento em Bolama que o fez mudar de ideias. Um dia, já próximo da nossa passagem à situação de licença registada, que ocorreu em outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em fevereiro de 1961, o Laurentino [Pedro Gomes] mostrou-me uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama, respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias.
Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que "palavra de oficial faz fé" é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado.
E foi isso, creio, que o levou a juntar-se ao PAIGC. Nos primeiros dias de novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros cujos nomes já não me ocorrem, partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento.
Morreu em combate num dos ataques ao quartel de Madina do Boé onde está sepultado. Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar.
Guiné > Bissau > 1959 > 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias, Domingos Ramos e outros...
De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro.
De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro.
Foto nº 6
Guiné > Bissau > 1959 > O 1º Curso de Sargentos Milicianos foi uma alfobre de quadros para o PAIGC... Alguns dos outros que foram meus camaradas na recruta. De poucos nomes me recordo mas muitos também foram guerrilheiros. Dos dois que estão mais altos, o da direita é o Constantino Teixeira, mais conhecido por Chucho ou Axon, que foi igualmente figura importante do PAIGC. Chegou a ser ministro da segurança interna, salvo erro, no tempo imediatamente a seguir à independência. Apareceu, algum tempo depois, morto dentro do carro numa rua de Bissau. Daquele gordinho de óculos escuros que está com a mão no bolso da camisa, só me recordo da sua alcunha que era Diblondi. O porquê de tal alcunha, não sei. Peço desculpa por omitir tantos nomes, embora me lembre das pessoas. Nunca tive o cuidado de ir anotando os acontecimentos nem de escrever no verso das fotos os nomes das pessoas. Péssimo hábito de que agora me arrependo.
Foto nº 7
Guiné > Bissau > 1959 > O meu pelotão de recrutas africanos, de pé descalço...
Termino com esta foto [nº 7] dos meus primeiros recrutas porque ela constitui o testemunho de um facto que, possivelmente, muitos desconhecem e outros certamente acham impossível se apenas contado. Reparem bem nestes soldados indígenas na Guiné em 1959. É isso mesmo que estão a ver: descalços.
Era assim que faziam toda a recruta e só depois de prontos lhes eram distribuídas as botas. Dizia-se que eles preferiam andar descalços. Mesmo sendo verdade, e muitos de nós se devem lembrar que, de facto, o andar descalço era um hábito muito arreigado, não se justifica e é humilhante que soldados assim andassem. (6)
Mário Dias
_________________
Notas do editor:
(1) vd. poste de 30 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações
(...) De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.
Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.
Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.
E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. (...)
(2) Vd. 1 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P474: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)
(3) Domingos Ramos, morto em Madina do Boé em 10 de novembro de 1966, é um herói nacional da Guiné-Bissau, figurando em notas de banco (por exemplo, de 100 pesos, emissões de 1975 e 1990), nomes de ruas e instituições de ensino... Foi um dos pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral. Tinha também um irmão na guerrilha, Paulo Ramos.
Vd. referênciaa ao Domingos Ramos no postes:
22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - P119: Antologia (10): Dossiê Guiné (Vida Mundial, 1971) (conclusão) (A. Marques Lopes)
12 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)
(4) Henrique Nuno Pires Severiano Teixeira: é um académico e político português. Professor catedrático (Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais da Universdiade NOVA de Lisboa) , é também vice-reitor da mesma instituição. Dirige o Instituto Português de Relações Internacionais. Nasceu em Bissau em 5 de novembro de 1957. Ministro da Administração Interna no XIV Governo Constitucional, dirigido por António Guterres, de 14 de setembro de 2000 a 8 de abril de 2002; e ministro da Defesa Nacional no XVII Governo Constitucional, com José Sócrates como primeiro ministro (de 12 de março de 2005 a 26 de outubro de 2009). É autor, entre diversas obras, da Nova História Militar de Portugal, 5 Volumes (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003-2004).
(5) Local do porto de Bissau onde, a 3 de Agosto de 1959, na sequência da repressão de um conflito laboral (uma greve de marinheiros, estivadores e outros trabalhadores portuários, reivindicando aumentos salariais e melhores condiçõs de trabalho), terá morrido um número nunca rigorosamente determinado de mortos e feridos. Estes acontecimentos foram habilmente explorados por Amílcar Cabral, passando a efeméride a ser considerada pelo PAIGC como o início (oficial ou oficioso) da luta de libertação da Guiné.
Vd. poste de 2 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (19): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias
(6) Último poste da série > 3 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15192: O segredo de ... (27): A minha prenda de Natal de 1963: a destruição de Sinchã Jobel, com o meu engenhoso fornilho montado numa mala de cartão... (Alcídio Marinho, ex-fur mil at inf MA, CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65)
Termino com esta foto [nº 7] dos meus primeiros recrutas porque ela constitui o testemunho de um facto que, possivelmente, muitos desconhecem e outros certamente acham impossível se apenas contado. Reparem bem nestes soldados indígenas na Guiné em 1959. É isso mesmo que estão a ver: descalços.
Era assim que faziam toda a recruta e só depois de prontos lhes eram distribuídas as botas. Dizia-se que eles preferiam andar descalços. Mesmo sendo verdade, e muitos de nós se devem lembrar que, de facto, o andar descalço era um hábito muito arreigado, não se justifica e é humilhante que soldados assim andassem. (6)
Mário Dias
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Notas do editor:
(1) vd. poste de 30 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações
(...) De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.
Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.
Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.
E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. (...)
(2) Vd. 1 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P474: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)
(3) Domingos Ramos, morto em Madina do Boé em 10 de novembro de 1966, é um herói nacional da Guiné-Bissau, figurando em notas de banco (por exemplo, de 100 pesos, emissões de 1975 e 1990), nomes de ruas e instituições de ensino... Foi um dos pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral. Tinha também um irmão na guerrilha, Paulo Ramos.
Vd. referênciaa ao Domingos Ramos no postes:
22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - P119: Antologia (10): Dossiê Guiné (Vida Mundial, 1971) (conclusão) (A. Marques Lopes)
12 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)
(4) Henrique Nuno Pires Severiano Teixeira: é um académico e político português. Professor catedrático (Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais da Universdiade NOVA de Lisboa) , é também vice-reitor da mesma instituição. Dirige o Instituto Português de Relações Internacionais. Nasceu em Bissau em 5 de novembro de 1957. Ministro da Administração Interna no XIV Governo Constitucional, dirigido por António Guterres, de 14 de setembro de 2000 a 8 de abril de 2002; e ministro da Defesa Nacional no XVII Governo Constitucional, com José Sócrates como primeiro ministro (de 12 de março de 2005 a 26 de outubro de 2009). É autor, entre diversas obras, da Nova História Militar de Portugal, 5 Volumes (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003-2004).
(5) Local do porto de Bissau onde, a 3 de Agosto de 1959, na sequência da repressão de um conflito laboral (uma greve de marinheiros, estivadores e outros trabalhadores portuários, reivindicando aumentos salariais e melhores condiçõs de trabalho), terá morrido um número nunca rigorosamente determinado de mortos e feridos. Estes acontecimentos foram habilmente explorados por Amílcar Cabral, passando a efeméride a ser considerada pelo PAIGC como o início (oficial ou oficioso) da luta de libertação da Guiné.
Vd. poste de 2 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (19): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias
(6) Último poste da série > 3 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15192: O segredo de ... (27): A minha prenda de Natal de 1963: a destruição de Sinchã Jobel, com o meu engenhoso fornilho montado numa mala de cartão... (Alcídio Marinho, ex-fur mil at inf MA, CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65)