Tagme Na Waie e Nino Vieira
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2016:
Queridos amigos,
A catar documentação para um livro que estou a preparar sobre as histórias da Guiné-Bissau, encontrei este minucioso relatório produzido pela Liga Guineense dos Direitos Humanos (
www.lgdh.org).
É um extenso documento que abarca áreas sobre as quais habitualmente não discorremos caso dos crimes ambientais, o funcionamento do Ministério Público e o estado das forças de Defesa e Segurança, sobre as quais falaremos no próximo texto. Tanto quanto eu pude apurar, a Liga não voltou a produzir documento tão amplo e importante como este.
Um abraço do
Mário
Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau, 2008/2009,
Lema: a força sem discernimento colapsa sob o seu próprio peso (1)
Beja Santos
É um relatório que fala de um país à deriva, em que os direitos humanos continuam reféns de um Estado reduzido aos fatores e valores antidemocráticos. Os números falam por si. Em menos de 12 anos, a partir da fratricida guerra civil em que o país viveu (1998-1999), a Guiné-Bissau assistiu a numerosas situações de sublevação perpetradas sobretudo pelas forças de defesa e segurança, designadamente de golpes de estado, assassinatos de um presidente da República e de três chefes de Estado-Maior, sendo que nesse período o país conheceu 5 presidentes da República, 11 governos e respetivos primeiros-ministros com a agravante de nenhum deles ter concluído o seu mandato.
Advoga-se no documento o imperativo de mecanismos para contornar a atual pirâmide de inversão de valores:
- os militares continuam a ter um papel determinante na definição do rumo político do país;
- o descrédito do setor de justiça, um elevado índice de corrupção no aparelho de Estado, associado a uma base produtiva ineficiente.
O dado mais chocante neste quadro dos atentados aos direitos humanos tem a ver com um Presidente da República democraticamente eleito, João Bernardo Vieira, que foi morto por soldados na madrugada de 2 de Março de 2009 num ataque supostamente motivado por vingança, algumas horas depois do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, General Baptista Tagme Na Waie, ter sido vítima de um atentado à bomba nas instalações do Estado-Maior das Forças Armadas. As imagens dos restos mortais do Presidente da República foram despudoradamente exibidas na internet. Para a Liga, os assassínios de Março de 2009 não passam de um atentado à consolidação do Estado de Direito e à estabilidade institucional. Houve inquérito com poucos resultados alcançados, decorrido um ano sobre a data dos incomensuráveis assassínios, nada está esclarecido.
Explosão que vitimou Tagme Na Waie. No tempo da presença portuguesa este edifício era o Quartel-General do CTIG
Em 23 de Novembro de 2008, Nino Vieira já havia sido visado pelos militares num atentado frustrado na sua residência, houve um segurança da residência presidencial morto. A classe política qualificou o atentado como uma inventona do presidente da República para se reabilitar politicamente de uma derrota humilhante do partido que apoiou nas eleições legislativas de Novembro de 2008.
O processo de inquérito aos assassinatos dos altos dirigentes não prossegue porque os membros da comissão de inquérito sentem-se inseguros para conduzir as investigações, pois os principais suspeitos são militares. As testemunhas temem retaliações, o que as obriga a abandonar o país, nomeadamente Isabel Romano Vieira, a viúva do presidente. Quanto ao atentado contra o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, a comissão de inquérito procedeu à detenção de 5 suspeitos: Brigadeiro-General Manuel Melcíades Gomes Fernandes, ex-Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que apresenta sinais de tortura; Malam Candé; Capitão Bacar Sanó, submetido a fortes torturas; Alberto José Té; Capitão Domingos Monteiro Nbana Lem. Os referidos suspeitos estão detidos em péssimas condições humanitárias, apresentando sinais de tortura grave e desprovidos de assistência médica e judiciária há mais de um ano.
Quando o país se preparava para iniciar a campanha eleitoral para as eleições presidenciais, para preencher o vazio constitucional provocado pelo assassinato do presidente da República, foi anunciado pelos Serviços de Informação de Estado em 5 de Junho de 2009 mais uma suposta tentativa de golpe de estado; estes serviços reivindicaram os assassinatos em legítima de defesa de Hélder Proença, antigo ministro da defesa, o motorista e o segurança pessoal, Major Baciro Dabo, candidato às presidenciais. Estes assassinatos continuam por esclarecer. Vários cidadãos foram detidos e torturados, como é o caso do ex-Primeiro-Ministro Faustino Fadut Imbali, o Coronel Antero João Correia, ex-Diretor da Segurança do Estado, Aia Dabó e o músico Domingos Brosca, tendo o primeiro ido tratar-se no estrangeiro devido às graves lesões que lhes foram infligidas pelos militares.
A nível local, são muitos os pontos onde grassa a impunidade. É o caso de Bissássema. Na segunda metade de 2008, dezenas de populares invadiram a missão evangélica naquela localidade em retaliação às campanhas de evangelização contra as práticas culturais nefastas, tais como: casamento precoce, feitiçaria, violência, agressões físicas e infanticídio. Muitos missionários ficaram feridos, tendo o pastor principal sido sequestrado por algumas horas. De 2007 a 2009 mais de três dezenas de pessoas foram fisicamente agredidas e assassinadas sem qualquer processo crime e à margem das autoridades locais que temem retaliações.
O relatório debruça-se igualmente sobre os N’Kumans, que são jovens que se aproveitam da ausência de Estado, sobretudo na zona Norte, para abusar do monopólio da autoridade. Impuseram uma nova ordem étnico-cultural na região do Oio. Durante esse período, centenas de pessoas foram sujeitas a tratamento degradantes. Os membros do grupo desencadearam operações de furto e de roubo, as autoridades locais receavam retaliações dos militares do Comando da Zona Norte, que atuam em cumplicidade com estes jovens desordeiros, sobretudo o batalhão Quemo Mané.
Passando para o capítulo de torturas, detenções arbitrárias e intimidações, o relatório assinala que a seguir aos assassinatos de Nino Vieira e Tagme Na Waie, se assistiu a terríveis operações de intimidação. Foi nesta senda de brutalidade que os Drs. Pedro Infanda e Francisco José Fadul foram espancados por indivíduos armados, havendo sido o primeiro caso assumido publicamente pelo próprio Estado-Maior como mandante do criminoso.
Não menos inquietante é referido o que se passa na comunicação social e o tráfico da droga. Este tráfico abalou de tal maneira a imagem da Guiné-Bissau no exterior que passou a ser referida como narco-Estado. Os profissionais da comunicação social que ousaram relatar os factos referentes a estas atividades criminosas começaram a ser perseguidos pelos presumíveis implicados, tanto civis como militares.
Veja-se o caso do julgamento do jornalista Albert Oumar Dabó, da rádio Bombolom e colaborador da ITN News, acusado de difamação e calúnia contra o ex-Chefe do Estado-Maior da Armada, José Américo Bubo Na Tchuto. Este julgamento foi adiado
sine die. O jornalista é parte ilegítima no processo, pois apenas serviu de intérprete à equipa da ITN News.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de julho de 2017 >
Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)