quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21451: Da Suécia com Saudade (82): A Reforma Agrária no Reino da Suécia... e Palácios e Casas Senhoriais (José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)


José Belo 

1. Mensagem de  
José Belo [ ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); cap inf ref;  jurista;  autor da série "Da Suécia com Saudade";  vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da  Tabanca da Lapónia; tem 175 referências no nosso blogue]

Enviado: 14 de outubro de 2020 11:10
 Assunto: Palácios e Casas Senhoriais suecas

Caro Luís

Tenho exagerado nos "protagonismos" quanto aos últimos comentários (*) porque, em verdade, são estes que nos permitem comunicar... à distância.

Infelizmente para alguns funciona como capa de toureiro frente à cabeça da alimária.

Nas crónicas desde a Suécia mais não tenho que procurado esclarecer certas ideias espalhadas pela Europa do Sul.

É sempre interessante verificar que as opiniões sobre este país são sempre extremadas. Os que odeiam e criticam, ao mesmo tempo que outros olham o tal paraíso mitológico feito de socialismos permeantes.

Os progressos sociais, económicos, falta de corrupcão (não menos política!), e principalmente educacionais, não necessitam de mitos cor-de-rosa para efectivamente terem significado real.

A Suécia vive no seu dia a dia uma situação que em outras sociedades ainda se não antevê em... futuros distantes.

Os exemplos citados no texto sobre "A Reforma Agrária e as Famílias Senhoriais Suecas" que enviei, vêm mostrar claramente que a tal governação socialista permeante (de quase um século) tem sabido muito pragmaticamente se adaptar às realidades sociais.

Não menos, às realidades "histórico-sociais".

Aqui, neste extremo do extremo Norte Europeu, já existe muita neve no solo, é noite escura às duas da tarde, e as temperaturas noturnas são bem negativas.

Altura de mais uma estadia no outro lado do pequeno charco que é o Atlântico, na solarenga Key West, [Flórida, EUA].

Agora já com o Sloppy Joe's Bar reaberto, com as novas regras locais da pseudo pós-pandemia.

(Há semanas, quando lá estava, recebi na caixa do correio da minha casa um papel de propaganda política relativo às eleições próximas que dizia mais ou menos isto: "Quem vota num palhaco... gosta de Circo".

Um grande abraço, J. Belo.


2. Mensagem do José Belo, enviada a 6/10/2020 à(s) 19:09:


Data -  
terça, 6/10/2020, 17:15 

Assunto - A Reforma Agrária no reino da Suécia (**)


Meu Caro:

Não sei se terá qualquer interesse para os seguidores dos blogues de ex-combatentes mas de qualquer modo mostra outras facetas da tão mitológica Suécia, talvez inesperadas para muitos.

Consultando-se as estatísticas oficiais, registos prediais e arquivos agrários actuais, verifica-se que um grande número de proprietários agrícolas de origem aristocrática vivem ainda em palácios e administram as vastas propriedades dos seus antepassados, a maioria das quais adquiridas nos séculos XVII e XVIII.

Propriedades então adquiridas livres de impostos ou resultantes de convenientes casamentos entre ricas famílias nobres.

Ao contrário das ideias hoje existentes de que as grandes propriedades agrícolas não são rentáveis ou se encontram em inexorável decadência, verifica-se que, na Suécia, formam um importante grupo, resistente, activo, inteligente tanto administrativamente como na área jurídica.

Estes aristocratas da lavoura constituem um fortíssimo grupo de influência junto dos centros políticos de decisão.

Nas áreas geográficas com melhores condições agrícolas, centro e sul, estão bem no topo das listas quanto às extensões das suas propriedades. Na zona centro-norte possuem mais de 400.000 hectares, e no total estão registados mais de 750.000 hectares.

Estes números são ainda mais significativos se tivermos em conta que a classe nobre não representa hoje mais que 2,5 (não por cento mas por mil !) da população sueca.

Equivalente às antigas leis do “Morgadio” em Portugal, tem na Suécia o nome de “Fideicomisso”. 
Segundo a qual, e de acordo com tradição importada das tradições germânicas por altura da guerra dos trinta anos, as propriedades deverão ser unicamente herdadas pelo filho varão mais velho.

Estas leis terminaram em França aquando da Revolução em 1792. Um século depois a Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal terminaram também com as mesmas (1830-1840).

Em 1810 legislou-se na Suécia o fim dos “Morgadios"... mas mantiveram-se (!) todos os até então existentes.

Depois de inúmeras voltas e reviravoltas parlamentares sem resultados radicais chega-se a 1930 e à política social-democrata quanto às modernas formas agrícolas.
Mas em 1959 continuam a existir cento e onze famílias nobres abrangidas pelas leis dos “Morgadios”.

No início dos anos sessenta volta ao Parlamento uma moção segundo a qual estas leis deveriam deixar de existir, por privilegiarem uma classe social em contradição com os direitos de todos os cidadãos de igualdade perante a lei.

Em 1964 (!) foi decidido no Parlamento que estes direitos dos morgados terminarão quando do falecimento dos actuais detentores.

O morgado passa a ter direito a metade da herança total, enquanto a outra metade fica sujeita às regras relativas às heranças.

No entanto, o morgado além do direito à metade tem também direito à sua parte quanto à divisão da outra metade.

A lei é específica nestas regras.
Diz textualmente que deverá ser levado em conta o facto de o “morgado” ter sido até então "preparado"  para uma vida tradicional como herdeiro único. (Quase incrível!)

Em 1994 surge nova oportunidade para os “Morgados” circundarem as novas leis.
Surgem as directivas sobre as garantias de preservação da Herança Cultural ligada aos palácios de famílias nobres, obras de arte e propriedades familiares históricas.

Baseando-se na SOU-1995:128, comissões culturais a nível estatal passam a analisar os requisitos necessários para que estas famílias continuem a dispor dos privilégios anteriormente estabelecidos.

Surge então, não uma nova legislação, mas antes uma nova... interpretação da mesma! O resultado é uma nova legitimação que vai inteiramente ao encontro dos interesses deste grupo.

Nos tempos de hoje, esta continuada procura de afastamento dos herdeiros “femininos” destas muito consideráveis fortunas mais não é que uma reminiscência feudal que, mais de 40 anos depois das moções dos anos sessenta, continua a existir ao longo de sucessivos governos social-democratas. 
Pragmatismos.

Os mesmos pragmatismos que levam a que os mesmos sucessivos (!) governos não cumpram o estabelecido no seu programa partidário, onde está escrito como objetivo a eliminação da monarquia.

Inquéritos à opinião pública em anos sucessivos mostram claramente que a percentagem de cidadãos que desejam manter a Casa Real é sempre superior a 80%.

Comparada com as percentagens de votos partidários de cerca de 30% no máximo, compreendem-se os... pragmatismos !

Um abraço do J.Belo

PS - Boas e interessantes fotos de palácios suecos em:

(i) Svenska Slott. (Boa variedade)

(ii) Svenska Hergard och Slott



3. Comentário do editor LG:

Meu caro José, vem mesmo a propósito... Afinal, estamos a comemorar os 200 anos da revolução liberal que pôs fim, progressivamente,  ao "Antigo Regime" ou "sociedade senhorial"...

Uma história muito mal conhecida dos portugueses, até porque em 1828-1834 tivemos umas das mais sangrentas guerras civis... (Deve ser lembrada para descontruir o mito do "povo de brandos costumes"...). 

Vou arranjar maneira de referir e comemorar essa efeméride, até porque em 1821 a "joia da Coroa", o Brasil tornou-se independente.

Um "abracelo" (abraço com cotovelo)...

PS - Tens de explicitar melhor o que entendes por "socialismo permeante"... Do verbo "permear" ?
________

permear | v. tr. | v. intr.

per·me·ar 
(latim permeo, -are, atravessar, penetrar)

verbo transitivo

1. Fazer passar pelo meio. = ATRAVESSAR

verbo intransitivo

2. Estar ou meter-se de permeio. = INTERPOR-SE, INTERVIR, MEDIAR

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21450: (In)citações (170): Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso nos farrapos da farda do fur mil MA Ferreira, da CCAÇ 2616, dependurados nas árvores, no local da explosão da mina A/C armadilhada, na estrada Aldeia Formosa-Buba (Juvenal Danado, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71; vive em Setúbal)


Foto nº 1 > Rio Grande de Buba. o cais e a maré a encher (*)


Foto nº 2 > Rio Grande de Buba, Buba, 1974, a partida da LDG 105 Bombarda (que também navegava no Rio Geba)




Foto nº 3 > Rio Grande Buba, Buba, 1974 > A ingrata missão do meu Grupo: carregar do chão os víveres a granel para as viaturas. (**)


Algumas das melhores fotos do Rio Grande de Buba... Álbum do António Murta, ex-alf mil inf, Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Buba > Rio Grande de Buba > 1974



1. Comentário do nosso camarada Juvenal Danado, professor (que julgamos aposentado), a viver em Setúbal, onde colabora com alguma regularidade no jornal da região, "O Setubalense".

Tem escritos comentários no nosso blogue. O último foi a propósito de minas e armadilhas, no poste P21435 (***)



(... ) Fui furriel miliciano sapador de infantaria ( Pelotão de Sapadores / CCS/ BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71), especialidade tirada no CISMI de Tavira.

A abordagem do furriel à desmontagem da mina (***) também não parece nada correta, pelos motivos apontados: as mangas em baixo, o empecilho do cinturão com as cartucheiras, a posição do corpo, a pá (?!!!).

Desmontar uma mina (ainda por cima as anti-carro, frequentemente armadilhadas) nestes descuidos, era meio caminho andado para se ficar reduzido a picadinho.

Como ficou o desditoso furriel Ferreira, da companhia 2616 do meu batalhão (sediada em Buba), que ignorou os avisos, lá de longe, do alferes do pelotão: «Tem cuidado, Ferreira, que essa merda pode estar armadilhada!», quando, em dia de coluna, procurava desimpedir a estrada Aldeia-Buba de um destes engenhos.

Ao que contavam os assistentes à tragédia, o Ferreira (atirador com curso de minas e armadilhas tirado em Bragança) escavou à volta da mina com a faca de mato, como se deve fazer, enfiou a mão por baixo para ver se detetava algum fio, e hesitou. A coluna vinha a caminho e ele sentia-se pressionado, tinha de limpar o caminho.

Agarrou na mina uma primeira vez e fez menção de a levantar; fê-lo uma segunda vez e continuou a hesitar. O alferes voltou a avisá-lo. À terceira, contavam, terá gritado: «Foda-se, ou ela ou eu!». E puxou a mina para si.

A mina estava armadilhada. Diziam alguns que tiveram a sensação de vê-lo subir no ar e depois desfazer-se. O bocado maior que encontraram dele (um mocetão que pesaria à volta de 80kg) foi um pedaço da coluna vertebral, transportada para Buba dentro de uma caixa de ração de combate, e o que os pais receberiam dentro da urna que lhes enviaram.

Aquela mina e as outras anti-pessoal que o Ferreira desmontou naquele fatídico dia, eram para mim (era a minha vez), que estava em Bissau de regresso da licença na Metrópole, quando recebi a notícia.

Daí a uns dias, fui mandado a Buba, como comandante da coluna de reabastecimento. A certa altura dos 30 km que mediavam de Aldeia a Buba, a coluna parou. Preparei-me para a batalha, uma vez que não estávamos muito longe do carreiro de Uane, onde um ou dois bigrupos do PAIGC passavam constantemente. Não era isso. Era o pessoal a homenagear o Ferreira. Nas árvores por cima do local onde se dera a explosão, farrapos da farda do Ferreira, pendurados nos ramos, pareciam acenar-nos.

Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso/falo nisto. Descansa em paz, Ferreira.

Juvenal José Cordeiro Danado (****)

2. Comentário do Juvenal Danado ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande (***)

Eu acho que faço parte da Tabanca Grande, desde que a descobri, caro Luís. Peço desculpa pelo atrevimento, mas não sabia que era necessário ser convidado.

Não sei se já o disse no pouco que por aqui comentei, mas este blogue presta um serviço inestimável a todos quantos passaram alguns dos melhores anos da sua mocidade na Guiné-Bissau, numa guerra que poderia ter sido evitada, evitando tanto sofrimento.

A Tabanca Grande é um cantinho onde nos podemos encontrar como num recanto confortável de um café, entre amigos, e partilhar as nossas experiências e mágoas. Grande trabalho, Luís. As minhas felicitações e os meus agradecimentos.

Um grande abraço, alargado a todos os companheiros, os que aqui escrevem e todos quantos passaram pela Guiné.

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, em nome da Tabanca Grande, pelos teus dois comentários que nos enriquecem (***)... O teu testemunho sobre a morte do furriel mil Ferreira, da CCAÇ 2616, e  a tua ida, a a seguir,  a Buba, numa coluna logística, é muito forte, Também ainda guardo imagens dessas, ao fim destes anos todos... Eu próprio caiu numa A/C com uma GMC carregada de pessoal...

De facto, tu de há muito que deverias estar sentado, à sombra do nosso poilão... Afinal, faltam apenas aquelas pequenas formalidades: um pedido explicito para integrar a Tabanca Grande, um endereço de email válido, duas fotos (uma atual e outra do antigamente) e uma curta apresentação do teu curriculo militar...

Pedi ao Hélder Sousa, teu vizinho, para te contactar e "apadrinhar" a tua entrada na Tabanca Grande, Tens o nº 820, à tua espera, se te despachares ainda hoje... 

Um alfabravo (ou um abracelo, abraço com cotovelo,  neste raio de tempo de calamidade).

Luís Graça

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de de 22 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14916: Memória dos lugares (309): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (2) (António Murta)

(**) Vd. poste de 20 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14903: Memória dos lugares (307): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (1) (António Murta)

(***)Vd. poste de 9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21435: Fotos à procura de... uma legenda (126): O sapador só se engana três vezes: a primeira, a única e a última (António J. Pereira da Costa)

(****) Último poste da série > 21 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21380: (In)citações (169): Onde esteve a Cruz Vermelha Portuguesa durante a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África ?

Guiné 61/74 - P21449: Historiografia da presença portuguesa em África (235): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Francisco Travassos Valdez é um viajante bem equipado, tem estrutura cultural, sabe observar, seguramente que procurou os dados mais fiáveis e usa-os de forma comedida, ajustando-os aos seus comentário. É viajante cedendo ao deslumbramento, parece ter a técnica de um repórter, disseca o comércio, a composição social da entidade colonizadora, manda recados sobre o grande abandono a que a colónia tem sido devotada, e quanto à ação missionária é minucioso na descrição do seu desastre, mostra as igrejas arruinadas e as comunidades de fiéis entregues a si próprias. É um documento imprescindível para conhecer a Senegâmbia Portuguesa em 1860, é uma narrativa lúcida com variados alertas para a classe política em Lisboa.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (2)

Beja Santos

O livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título "Six years of a traveller’s in western Africa, 1861". Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-Árbitro das Comissões Mistas Luso-Britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente o que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. A importância que confiro a este relato pessoalíssimo, passa pela capacidade de observar: a aproximação do território e o desfrute que lhe dá; os contactos no Ilhéu do Rei e a chegada a Bissau; o quadro socioeconómico da colónia e as suas potencialidades; e fica-se com uma estampa do que era o conhecimento da Senegâmbia, aproximadamente 20 anos antes da criação da Guiné Portuguesa. É severo com o estado da Fortaleza de S. José, as deploráveis condições higio-sanitárias do hospital; adianta alguns elementos sobre o estado da Igreja em Bissau, não se repete aqui o que ele aduz na medida em que já se fez uma extensa recensão da obra mais importante sobre a história das Missões Católicas na Guiné, de um competentíssimo autor, Padre Henrique Pinto Rema.

Travassos Valdez enuncia as freguesias existentes na colónia: Nossa Senhora da Candelária (Bissau), Nossa Senhora da Natividade (Cacheu), Nossa Senhora da Luz (Ziguinchor), Nossa Senhora da Graça (Farim) e Nossa Senhora da Garça (Geba). Fala a seguir dos aspetos judiciais, dá-nos informações curiosas: “No estabelecimento de Bissau, ainda que importantíssimo ao comércio, são raros os pleitos comerciais, pois que poucos são os moradores portugueses e com os gentios tornam-se quase impossíveis as demandas”. Faz um resumo da organização administrativa, militar e da Fazenda da Guiné. Espraia-se sobre importações e exportações e receitas fiscais, nas vantagens em alterar as pautas, que são muito elevadas e que levam a que os habitantes da colónia procurem abastecer-se fora do país.
E aduz um comentário muito curioso:
“Na Praça de Bissau não há comércio propriamente português. Os negociantes portugueses que existem nas Praças de Bissau e Cacheu não são mais do que comissários dos estrangeiros. São quase todos indivíduos naturais do arquipélago de Cabo Verde que se estabelecem na Guiné, e a quem os negociantes da Gâmbia fiam fazendas por um ano, para serem pagas por géneros de produção em África. Os negociantes estrangeiros na Gâmbia e Gorée também não são outra coisa mais do que as gentes das poucas e grandes casas comerciais francesas, inglesas, americanas e algumas belgas, que monopolizam todo o comércio da costa, desde o Senegal até à Serra Leoa. A importância de produtos de Portugal, quer seja da nossa indústria, ou de reexportação das nossas alfândegas, é coisa que ali não há, e mesmo a única casa comercial estabelecida em Portugal que algumas especulações tem começado a fazer em Bissau (a casa Burnay) é belga, e posto que importa os objectos em navios portugueses falo directamente da América, motivo porque dizemos que o comércio português é coisa que lá não há”.

E não é menos importante o que vai comentar a propósito dos negociantes de Bissau e Cacheu:
“Qualquer daqueles negociantes, saindo do arquipélago de Cabo Verde, sem possuir nem um real seu, dirigindo-se para a Guiné, começa por se hospedar em casa dos seus parentes já estabelecidos; depois, se quer tornar-se negociante recebe dos estrangeiros que comerceiam com os seus parentes os géneros que pretende para no ano seguinte pagar em produções do país. Embarca depois para o rio Geba ou para o rio Grande, onde em uma feitoria que estabelece trata de permutar o que pode e fia o resto ao gentio, para no ano seguinte lhe pagarem em produções.
No ano seguinte, não tendo recebido tudo o que lhe devem os gentios, havendo despendido consigo alguns valores, tendo-se-lhe avariado alguns géneros, ou havendo deixado de os vender, e portanto não tendo com que pagar os seus débitos, fica alcançado o chamado negociante.
Nestes termos, para cobrar suas dívidas vê-se obrigado a continuar as suas transacções, mas para se poderem fazer é necessário um sortimento mais amplo e variado de modo que o agente de Gorée ou Gâmbia, que todos os anos vai a Bissau, no tempo próprio, lhe fia maior porção de fazenda, com obrigação de ser embolsado nos seguintes anos. Tem então aquele novo e pretendido negociante português de comprar escravos, fazer uma casa em Bissau ou Cacheu, estabelecer uma ou mais feitorias com as competentes moradas, fazer presentes aos régulos do chão em que negoceia, mandar construir ou comprar lanchões para transporte de géneros pelos rios, sustentar o luxo de mesa dos negociantes de África, pagar pesados direitos e finalmente ter de confiar as fazendas a caixeiros de má nota. Todas estas abundantes considerações vão culminar numa espiral infernal de endividamentos”
.

Travassos Valdez descreve com clareza o conjunto de circunstâncias que concorrem para que os compradores prefiram as feitorias estrangeiras às nossas, e tece considerações detalhadas do que deveriam ser as pautas comerciais, vê-se que está bem informado e tem ideias próprias.

Importante é também o que nos diz sobre a composição social, antes de passar para as descrições de usos e costumes e das povoações do território. Diz ele: “Os habitantes da Guiné Portuguesa, sujeitos ao nosso domínio, andarão por 4 mil almas (sem falar nos Grumetes de Bissau estabelecidos no chão de Bandim), divididos em três classes distintas: a comercial, composta de brancos, mulatos e pretos, que trajam à europeia, muitos dos seus negócios são dirigidos por intervenção de agentes do sexo feminino; soldados e degradados, mandados de ordinário estes de Portugal e aqueles de Cabo Verde; Grumetes ou cristãos do país”.

E lança seguidamente numa ampla descrição sobre o que se sabe do território e da presença portuguesa, começa por descrever as povoações à volta de Bissau e a sua organização socioeconómica e depois os locais de Geba preponderantes: logo S. Belchior (perto de Enxalé, continuando hoje a existir), Xime e margens do Corubal (espraia-se sobre o fenómeno do macaréu, e a seguir entramos no Geba estreito).

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21427: Historiografia da presença portuguesa em África (234): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21448: Em busca de... (307): Camaradas do Celestino Augusto Patrício Madeira, ex-fur mil, CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 (Bissau, Mejo, Gandembel, Guileje, Gadamael, Ganturé, 1968/69) (Rui Pedro Madeira e Silva, neto)



Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2316 (19658/69) > Fotos do fur mil Celetino  A. P. Madeira, tirada provavelmente em 1969, em Guileje, na parada Alf[eres] Tavares Machado.



Foto nº 3

O Celestino A. P Madeira, que felizmente ainda está entre nós... Convidamo-lo, através do neto, a integrar a nossa Tabanca Grande... 

1, Mensagem do nosso leitor Rui Pedro Madeira e Silva, neto do fur mil, CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 (Bissau, Bula, Mejo, Gandembel, Guileje, Gadamael, Ganturé, Bissau, 1968/69):


Date: sábado, 3/10/2020 à(s) 21:04
Subject: Celestino Augusto Patrício Madeira - Batalhão de Caçadores 2835; Companhia de Caçadores 2316, Guiné - Mensagem do neto.

Exmos. Senhores,

É com um completo fascínio que descobri o vosso blogue.

Falo-vos como Neto do vosso Camarada, o Furriel Celestino Augusto Patrício Madeira, que pertenceu ao Batalhão de Caçadores 2835, da Companhia de Caçadores 2316 e serviu na Guiné (salvo erro) em 1968/1969.

Procurei extensivamente no vosso blogue sobre o Batalhão e sobre a Companhia, mas a única menção dele que descobri foi um print de um documento que representa a Relação Nominal do Pessoal da Companhia de Caçadores 2316. (*)






Em anexo, junto algumas fotos dele, de modo a que o possam reconhecer, ou conhecer outros camaradas, vossos e dele, que o conheçam.

O meu avô nunca falou muito à família sobre a sua experiência da Guerra, e eu, um pouco no espírito de curiosidade dele, gostava de obter algum relato, registo fotográfico, ou qualquer outra informação que V. Exas. possam ter sobre ele, se assim me for permitido.

Só nos últimos anos é que se foi abrindo sobre o assunto e possui agora em casa uma prateleira dedicada a essas memórias da passagem dele na Guerra, incluindo fotografias e outros adornos, nomeadamente a insígnia do Batalhão 2835.

Além do mais, também lhes pedia, se for possível, que me fizessem um pequeno sumário do percurso do Batalhão ao longo da campanha em que estiveram na Guiné, para perceber melhor por aquilo que passou.

Em jeito final, agradeço muito o vosso trabalho, em meu nome e da minha Mãe, filha do Furriel Madeira, por permitirem que saibamos mais sobre o meu Avô.

Os veteranos da Guerra foram esquecidos, mas vocês não se esquecem uns dos outros e isso inspira-me.

Esperando ler de V. Exas.,
Os melhores cumprimentos,
Rui Madeira e Silva
+351 967 10 20 40

 


Brasão da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835. Cortesia do Rui Madeira e Silva


2. Resposta do nosso colaborador permanente, José Martins;

Date: terça, 6/10/2020 à(s) 15:35 

Boa tarde

Acerca do solicitado, pouco mais podemos acrescentar ao que o Rui Madeira já tem.

Do Arquivo Histórico Militar já tem a relação nominal dos graduados da CCaç 2316 [, donde consta o nome do seu avô] [*)

Em UTW - Ultramar TerraWeb, tem 
os crachás do Batalhão e das companhias orgânicas, que já deve conhecer.

Dos livros da CECA [, Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974] pode ver, no 7º volume, tomo 11, pp. 107 a 119 a composição do comando do Batalhão e a atividade operacional, condensada [, Reproduzimos alguns excertos abaixo, da cópia em pdf, disponível na Net].

Estas são as dicas que podemos disponibilizar, utilizando o que já se encontra disponibilizado na Net.

Pode consultar o processo individual do avô, presencialmente, no Arquivo Geral do Exército, em Chelas, tendo necessidade de ter a data e local de nascimento, e o local em que foi recenseado, caso não tenha sido o local da naturalidade.

Fui contemporâneo do Celestino Madeira, uma vez que a minha CCaç 5 [, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70,] estava dependente, operacionalmente, do BCAÇ 2835 [
Bissau, Nova Lamego, 1968/69] .

Apesar da CCaç 2316 ser uma companhia orgânica do BCAÇ 2835, nunca esteve dependente operacionalmente dependente daquele, como se pode ver pela leitura do resumo da companhia.

Em http://ultramar.terraweb.biz/index.htm, clicar em "pesquisa no portal UTW" e colocar na página que surgir, em baixo no quadro "pesquisar", o marcador  "ccac 2316", sem pontos virgulas,  cedilhas, etc.

Algo mais que possa ajudar, disponham.

Abraço para todos e um abraço ao "nosso neto" Rui, já que os netos dos nossos camaradas, nossos netos são.

Zé Martins



Actividade operacional da CCAÇ 2316



Fonte: Portugal. Estado Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 107-110 (excertos). 

3. Comentário do editor Luís Graça:

Meu caro Rui, obrigado, antes de mais, pelo elogio que faz ao nosso blogue, e pelo seu caloroso contacto, que nos obrigou a uma pesquisa adicional sobre o batalhão e a companhia a que pertenceu o seu querido avô e nosso saudoso camarada Celestino Madeira.

Temos cerca de duas de dezenas de referências à CCAÇ 2316,  que passou por Bissau, Bula, Mejo, Guileje, Gadamael, Bissau, e alguns dos capitães que a comandaram, como o Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos e o [Octávio Manuel] Barbosa Henriques (***).

Como já vimos acima, o BCAÇ 2835 (Nova Lamego, 1968/69), constituido pela CCS, e pelas unidades de quadrícula, CCAÇ 2315, 2316 e 2317, teve como unidade de mobilização o RI 15, Tomar.  Partiu para o TO da Guiné em  17/1/68, e regressou a  4/12/69. 

O nosso colaborador permanente, José Martins que conhece bem o Arquivo Histórico.Militar, já lhe disse o essencial e já satisfez, em parte, a sua legítima curiosidade como neto.  Costumamos dizer no nosso blogue, que os filhos e os netos dos nossos camaradas nossos filhos e netos são.

Ficamos muito semsibilizados pelo seu gesto. Transmita as nossas melhores saudações ao seu avô, à sua querida mãe e, a esta em particular,  diga-lhe que o pai dela e os seus camaradas da CCç 2316 foram, seguramente, homens e militares que honraram a sua Pátria e estiveram em "sítios duros de roer" como, no sul da Guiné, a região de Tombali: Mejo, Gandembel, Guileje, Gadamael, Ganturé... Temos muitas referências no nosso blogue sobre estes topónimos, que foram lugares de "sangue, suor e lágrimas".

Infelizmente não dispomos, ainda, em papel ou em suporte digital a história da CCAÇ 2316. Pode ser que o Rui a consiga obter. fotocopiada, a partir do exemplar existente no Arquivo Histórico Militar. 

Mas entretanto dê- nos  mais dados biográficos sobre o seu avó, incluindo o ano e o local do nascimento, onde mora, o que tem feito...

Pode ser, por outro lado, que haja alguns dos seus camaradas de companhia (e até do batalhão) que tenham privado mais com ele, e que nos mandem fotos e histórias passadas com ele. 

Se não achar inconveniente, divulgamos o seu nº de telemóvel para eventuais contactos dos nossos leitores. Vá-nos dando notícias. Fica aqui o seu (e nosso)  apelo. (****)

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Notas do editor:

 
(**) Vd. poste de 30 de junho de  2012 > Guiné 63/74 - P10093: In Memoriam (120): Cor inf ref e escritor Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos (Funchal, 1938 - Lisboa, 2012), comandante das CCAÇ 727 (1964/66) e CCAÇ 2316 (1968/69) (António Costa / Carlos Vinhal) 


(*****) Último poste da série > 7 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21052: Em busca de... (306): 1º Cabo Apontador de Metralhadora, nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Mário Gaspar)

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)










Luís Graça, Tabanca de Candoz, 2011

Fotos (e legenda): © Luís Graça  (2011) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis >  Don't worry, be happy! 

por Luís Graça


1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?

Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, coirões velhos,  cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu...Como o réu que aguarda a sentença do juiz...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda.

E que nada tem de deslumbrante, empolgante ou até de interessante essa nesga do planeta. O que vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas, uns com cancro,  outros sem cancro... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor. 

Nunca tiveste grandes amigos. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha  ou, à noite, no fim da pista de aviação. Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava, lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a máquina a tiracolo, e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca fostes capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca fostes sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra...parece que estou com um cancro", respondeu-te ele...Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mai<<<s tranquilizador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um cancro na próstata... Fiz uma biópsia, vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de solidariedade: " Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento . Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios. Desta vez, veio no "Expresso", de vespera. Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite, Quando vier aos tratamentos, se vier, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias.

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a saudade, a neuratesnia, o medo ...Tomava-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te mata ?!...E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá.

“Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo ? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter chumbado no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça ?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem ? Até os médicos e os padres... Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro.

E vem-te á cabeça, uma frase cruel que te iumpressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Càcere"... Deixa-me ver se a encontro aqui... ""Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é ukm blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"...

Enfim, ficas a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, rádio, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste ?

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdical, sezóes de África ? ... Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar no baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à gfrehte do doente...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm ?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. 

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu não conheces... 

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro.

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas ?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19 ? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando   lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Não sabes qual é a função do pâncreas mas deve ser um órgão fodido...Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado ? E do baço ? E da tripa ?  E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... 

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato,  no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal. se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo ?" Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te " "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda,  também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar quem nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"...É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos ? ... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela ?... "Call centre", adivinhas tu!...Bingo!... Mais uma aventura do país dos "call centre".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora ?!, dantes dizia-se operário), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações.  És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!...O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pàncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação ? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias,  com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e tão terno,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária ? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que  estás hoje mais sensível e intolerante ?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80 ?... Grande estúpido!

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no caderninho,.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os SPA, os ginásios, os hospitais. "Teme a velhice, que nunca vem só", apontaste há dia este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Vade mecum", também lhe chamas.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... (Patacão, graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo...E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, marialva do Ribatejo)

- Está no ir, mano : começo para a semana a quimeoterapia,  daqui a umas semanas radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se!, sè feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a 30 ou 40 quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos,  e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Lérias, o Zé Conde, o teu doente do IPO, só te disse, com um sorriso amarelo:

- Lembras-te ?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano,  a vida continua... dentro de momentos!

- "Don't worry, be happy!" - martelaste tu, très vezes,  com a cabeça no retrovisor...

© Luís Graça (202o). Revisto: junho de 2023.

Guiné 61/74 - P21446: Parabéns a você (1881): Mário Ferreira de Oliveira, 1.º Cabo Condutor de Máquinas Ref da Marinha (Guiné, 1961/63)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21443: Parabéns a você (1880): Cátia Félix, Amiga Grã-Tabanqueira

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Guiné 671/74 - P21445: Notas de leitura (1314): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Não podemos ignorar que o tema da guerra colonial continua a suscitar, sobretudo na classe sénior, uma controvérsia maniqueísta, há permanentemente um dedo acusador de que o rumo da guerra podia ter sido outro, diferente do que sucedeu ao 25 de Abril. Estes dois investigadores manifestam-se arredados de prós e contras, consultaram fontes documentais, e acima de tudo dão no seu manual um pano de fundo como mais ninguém até hoje ensaiou na literatura destinada ao grande público, é uma narrativa onde não se foge ao essencial do que é a guerra subversiva, guerrilha e contra-guerrilha, qual o ideal imperial do Estado Novo personificado em Salazar, o deflagrar da guerra e o seu alastramento, os homens e os dispositivos, as populações envolvidas, escolhem-se três generais distintos para relevar o comportamento pragmático, passando pelo destemor pessoal até à motivação ideológica de desejar uma vitória impossível. Os autores não fogem a esta discussão acirrada entre aqueles, em diferentes quadrantes ideológicos, associados à nostalgia e ao saudosismo, responsabilizam o 25 de Abril por se ter conduzido o desfecho da guerra para o caos e para a vergonha da retirada, mostrando, com a evidência dos documentos, a situação crítica que se estava a viver em Angola, na Guiné e em Moçambique, nas vésperas do 25 de Abril.

Um abraço do
Mário


O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2)

Mário Beja Santos

"Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Porto Editora, 2020, só de longe é uma reedição, ganhou a forma de livro de consulta, transformado numa grande angular onde os dois investigadores, seguramente os mais habilitados nesta vertente historiográfica, deram uma arrumação muito mais ventilada para políticas, doutrinas, territórios, organização das Forças Armadas, movimentos de libertação, populações envolvidas, ritos do quotidiano, balanço, o pós-guerra, elenco de figuras cimeiras intervenientes nos três teatros de operações. É timbre dos autores o rigor, a comunicação acessível só possível de quem muito sabe, o desnudar mitos diáfanos da fantasia de quem ainda hoje propala toda aquela guerra era por natureza sustentável e um ato patriótico. O texto de Adriano Moreira, em que este académico esculpe Salazar, o seu regime e o seu pensamento sobre o ideal imperial, é uma peça de indiscutível importância. Luís Salgado de Matos regista igualmente o relacionamento entre a Igreja e o regime face aos conflitos coloniais e averba com oportunidade que as independências de Angola e de Moçambique vieram mostrar que a Igreja Católica nestes territórios tinha uma implantação suficientemente forte para poder sustentar-se sozinha, o que é facto indesmentível. O mesmo investigador aborda a economia e a guerra, esta era paga pela metrópole, como ele escreve: “Em 1971, as colónias contribuíam com apenas 18% dos 12 milhões de contos de despesas operacionais de defesa, uma proporção que ficava permutada da sua participação na receita total do Estado. A metrópole gastava com a guerra cerca de 40% da despesa pública. Em 1974, aos custos morais e humanos da guerra – que eram os mais decisivos – acrescentava-se o prejuízo económico. À vontade da independência africana ameaçava sobrepor-se a da independência branca”.

Três generais são analisados, pela forma como fizeram a guerra: Costa Gomes, Spínola e Kaúlza de Arriaga. Costa Gomes chega a Angola em 1970, fora aberta a Frente Leste, ali se movem os três movimentos independentistas. E delineou uma estratégia de reorientação do esforço para as imensas planícies do Leste em detrimento das florestas dos Dembos e das margens do rio Zaire. Aumentou o número de distritos dentro da zona militar Leste, convocou múltiplas forças auxiliares. Consegue pôr a UNITA a combater o MPLA, lançou no terreno unidades táticas de contra-infiltração. “Um aspeto caraterístico da sua manobra foi o modo de emprego das forças africanas. Costa Gomes, ao contrário de Spínola na Guiné, não as integrou em qualquer projeto político destinado a alterar o status quo existente”. Os autores alongam-se na figura de Spínola, na análise das suas primeiras Diretivas, a sua enorme preocupação em pôr os guineenses do seu lado. Mexe no dispositivo criando Comandos de Agrupamento Operacional e os Comandos Operacionais, irá utilizar as forças africanas na contra-guerrilha e as milícias na proteção e enquadramento da autodefesa das populações. Consegue manter a situação equilibrada até 1972, será depois ultrapassado por uma nova estratégia e pelo uso de armamento mais sofisticado. Promoveu os Congressos do Povo, envolveu-se em operações que desencadearam fiascos diplomáticos, apercebeu-se que toda a sua orientação depois dos acontecimentos de Maio de 1973 era posta em causa, todo aquele plano de retração que inicialmente aceitou e que Costa Gomes assinou era o princípio do fim, nada do que ele sonhara para uma Guiné inteiramente dos guineenses.

Kaúlza de Arriaga terá uma ação de comando assumida e radicalmente ideológica, não podia admitir outro resultado que não fosse a vitória sem compromissos. Quando ele chega a Moçambique, a FRELIMO já está a esboçar um plano para avançar até ao Tete. Kaúlza lança em força a Operação Nó Górdio, vão encontrar as bases da FRELIMO abandonadas. Cahora Bassa, como se veio a demonstrar, não era um empreendimento primacial, exigiu a mobilização de um volume de meios cada vez maior para a defender, acabou por ser o Nó Górdio de Kaúlza, acrescido da denúncia dos massacres de Wiriamu, tal como Marcello Caetano já estava desavençado com Spínola acabou igualmente o relacionamento de confiança com Kaúlza e Arriaga. Ele regressa e vem para conspirar.

Este importante roteiro mostra como se desenvolveu o esforço de guerra, como foi evoluindo o comportamento da ONU dos anos 1960 para 1970, como nasceu o Movimento dos Capitães. E temos as feridas, a mais óbvia e visível foram os deficientes, escreve o presidente da ADFA que durante a guerra terão sido evacuados da frente de combate cerca de 25 mil militares afetados por deficiências motoras, sensoriais, orgânicas e motoras.

E chegou a hora da polémica interminável, se a guerra estava ou não perdida. As investigações têm progredido e os autores revelam o que se estava a passar sobretudo em 1974 em Angola, Moçambique e Guiné. Resumindo, em Angola não se estava a caminho de nenhuma vitória militar nem política: existia uma séria e assumida ameaça colonial sobre Cabinda e o Norte, a situação no Leste não inspirava confiança ao nosso aliado sul-africano, considerava-se que o programa de aldeamentos era desastroso; em Moçambique a situação era crítica, para além da continuação das ações nas zonas tradicionais de guerrilha, a FRELIMO estava a infiltrar grupos cada vez mais para Sul, abatera três aviões rodesianos que apoiavam as operações de contraguerrilha, o grosso dos meios estava empenhado na defesa de Cahora Bassa e nas linhas de reabastecimento à barragem, nas zonas restantes as forças portuguesas corriam atrás dos acontecimentos. Na Guiné, é onde tudo ia pior, primeiro com a chegada dos mísseis terra-ar e depois com os acontecimentos de Maio de 1973. Põem-se em cima da mesa o plano de retração. “Para a constituição deste reduto eram considerados os seguintes ponto-chave, a manter a todo o custo: Aldeia Formosa, Cufar, Catió, Farim, Nova Lamego e Bafatá, a Ilha de Bissau associada às regiões de Bula e de Mansoa. Isto é, reduzir a soberania a um reduto central. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central”. Enquanto tudo isto se passa, Marcello Caetano tentou várias saídas para o problema colonial e a guerra, pensa-se numa independência branca para Moçambique e Angola, há conversações em enviados secretos do Governo Português com o PAIGC e o MPLA, por três vezes Caetano procura a admissão junto do Almirante Tomás, este respondeu: “Já é tarde para qualquer um de nós abandonar o cargo”.

As investigações evoluíram muito e os saudosistas da sustentabilidade da guerra colonial veem cair por terra toda a sua carga emocional. Um só exemplo, referente à Guiné. Em 27 de novembro de 1973, o Comandante da Zona Aérea, Coronel Lemos Ferreira, enviou uma carta a Costa Gomes a explicar o que se passara na Guiné. Refere as possibilidades militares do PAIGC, que incluíam o patrulhamento aéreo feito por aviões MiG-15 e MiG-17 da República da Guiné Conacri, a eliminação de duas guarnições portuguesas junto da fronteira, a existência de blindados e armas anti-aéreas e anti-carro. E escreve textualmente: “Sabendo-se que a sobrevivência militar desta Província Ultramarina assenta quase exclusivamente no pessoal e nos meios da Força Aérea, por ser patente que as forças terrestres não parecem capazes de suportar e reagir a uma safanão forte por razões conhecidas, nomeadamente a sua reduzida motivação, deduz-se o risco de, apesar de sermos aqueles que mais intensamente procuramos remar contra a maré, acabarmos por ser o pião das nicas, por não termos realizado o milagre integral, ou seja, impedir todo e qualquer ataque inimigo!”.

Manual de referência, roteiro, obra-prima de divulgação, nada supera no panorama editorial português esta guerra colonial, totalmente indicada para antigos combatentes, investigadores e curiosos das novas gerações, manifestamente indiferentes às apoplexias do saudosismo.
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Notas do editor:

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