N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...
Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia
Com repiques ao contrário dentro de mim. Acabei de embarcar com a minha Companhia Independente de Caçadores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Mafalda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Rocha.
São três as companhias de caçadores e parte de uma de comandos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e salgadinhos.
Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, enfiei-me no meu camarote de primeira, pois então! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui sozinho, lavado em lágrimas, enquanto os outros oficiais meus camaradas, talvez mais corajosos, se encontram na amurada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!
Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite
BARCO DE ESPERANÇA
Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...
Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos transida de medo.
Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...
E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.
18 de Abril - Mar e céu
Neste Domingo de Páscoa triste, celebrada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que houvesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jogam às cartas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz asneiras com ar compenetrado e sábio.
22 de Abril - Véspera de chegada.
Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinadamente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo corresse o boato de que estaríamos mudando de rumo.
23 de Abril - Bissau
Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o desembarque e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao comando militar. Desconhecia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos destinávamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secretaria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.
Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Tinha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser imediatamente remediado. Ficaríamos, para compensar, à ordem do comando-chefe. Uma honra para a nossa companhia, que tinha vindo da metrópole para defender este tão pátrio chão.
26 Abril - Carreira de tiro
Fomos todos para a carreira de tiro treinar a pontaria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cursos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com estrias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.
29 de Abril - Ordem unida na Amura
Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustrada rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões operacionais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não bélicas, oito horas seguidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.
Para que não houvesse quebra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes dessem, à vez e na ordem inversa da sua antiguidade, duas horas de instrução cada um. Ainda se acredita piamente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtudes militares, sobretudo da disciplina.
No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam embarque de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vestidos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra galáxia.
5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau
O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de urgência, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fincados por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tripas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o comando da companhia.
8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800
Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anunciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Estou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.
Para me sentir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Francisco, que mal conheço, devido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam durante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pazes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cristandade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.
Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco familiar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas saborosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as palavras e os passos.
10 de Maio de 1965 - No HM 241
Hospital Militar de Bissau, para uma pequena intervenção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.
Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um excelente camarada de armas...
24 de Maio de 1965 - Bambadinca
Veio a companhia por aí a cima, sob o meu comando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na detecção e levantamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Mansoa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é necessário para instalar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e panelas, passando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande importância. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.
Chegámos à margem esquerda [, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, estava um capitão, Gabriel Teixeira, de sua graça, com duas secções à nossa espera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente adstritos, uma vez que, operacionalmente, continuamos à ordem do comando-chefe.
Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jangada para a outra margem [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e depois para Contuboel, nosso destino. O rio Geba está sujeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passarmos todos para o lado de lá.
Bambadinca, 25 de Maio de 1965
A TUA AUSÊNCIA
A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...
Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...
Notas do editor:
(**) Último poste da série > 10 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)