1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2016:
Queridos amigos,
Não se trata de fazer a apologia do antigo, do artífice/artesanal ou até mesmo do comércio local. Há espaços de comércio, há usos e costumes, há formas de habitar e de decorar que estão fora da tirania do instante, conseguem galgar a efemeridade das inovações em catadupa. Trata-se de uma sedimentação cultural em que baseiam os lugares, os espaços de convivência, os modos de intercambiar o saber fazer e o fazer saber. De certo modo, é o que aqui se pretende, misturando o novo e o velho, porque Tomar, como tantas outras localidades portuguesas, vive o turbilhão de ver muitas coisas às avessas, o que foi fortemente industrial definhou e vai morrendo, deixa marcas, são feridas por sarar, e nem tudo o que nasce sob a égide do progresso e do desafogo tem pés para ficar. Regista-se a memória e a homenagem às passagens de testemunho.
Um abraço do
Mário
O ventre de Tomar (9)
Beja Santos
O céu desanuviou, o viajante já passou em frente às ruínas do que foi o quartel da região militar, estava ali especado e alguém lhe explicou que havia mais exército em Tomar que o RI 15, aquele comandante era um oficial general que pontificava na região centro, tempos que já lá vão, vamos avançar, dos mortos não reza a história, o viajante aprecia o esforço por vezes hercúleo de reedificar e manter Tomar na rota indispensável do mais importante turismo cultural. Deu mais uns passos e entrou numa oficina de turismo que é um curioso compósito de estilos, o propósito era visitar a exposição de Romy Castro, mas deparou-se com este guerreiro religioso vigilante, mais a mais adornado por belos azulejos. Ora toma, austeridade templária com muitíssimo bem gosto.
São coisas que acontecem, está-se numa exposição que até evoca um cenário do tipo planetário, a artista deverá ter viajado numa nave e guardou ideias de um mundo obscurecido, provavelmente o nosso, há para ali visões da Terra iluminando-se e perdendo-se no negrume da noite. Pois o que o viajante mais apreciou, canhestro como é a registar imagens em atmosfera de luz difusa, parece que tudo bateu certo, também ele se meteu numa nave e dali avistou as preocupações de Romy Castro, é um mundo que nos obriga a pensar não na nave Terra marcada pelo azul mas pela fuligem poluidora. Mas será mesmo assim?
Confesso que me caiu no goto este senhor manequim em robe de banho, está muito limpo e calçado para sair. A imaginação permite várias liberdades, uma delas supor que lhe bati à porta, ele veio ver-me em preparativos de se arranjar. Há muito tempo que não encontrava um senhor manequim como este, ainda por cima rodeado por muita roupa exterior. A senhora da loja perguntou-me duas vezes se era mesmo uma fotografia do manequim, tal a surpresa da intrusão. Depois conversámos e até prometi voltar. O senhor manequim não nos olha a direito, não temos classe para tal, e nem nos estende a mão, que grande exibicionista!
Há memórias que não se apagam, nossos avoengos aproveitam os longos serões para fazer, refazer e reparar: o enxoval, a roupa de sair e a roupa de bater, os bordados, as cortinas, as malhas quentes, e daí a luminosidade das lãs e destes carrinhos de linhas, autênticos arco-íris. A senhora riu-se quando por ali entrei pedindo-lhe que me deixasse fotografar, afinal a comunicação mediática nada tem a ver com este tipo de realidade, é uma comunicação feitas das frases do Cristiano Ronaldo, das noites dos óscares, das tiradas sloganísticas dos políticos nacionais e estrangeiros, o que eu ali vinha fazer era prestar homenagem às entranhas desse saber fazer que nunca se perdeu, mesmo que a sociedade de consumo nos procure banquetear com as réplicas das lojas de chineses, as nossas mãos terão sempre talento, os lavoures femininos são histórias de encantar, acreditem ou não.
Há mais de 50 anos atrás, as artes do mobiliário deram uma guinada, ao invés de móveis pesados apareceram umas linhas suaves, uns pés roliços entortados, os cadeirões lembravam remotamente o estilo rústico, as mesas pareciam cair com uma rabanada de vento – chamou-se estilo americano, e foi de pouca dura. Não é que o viajante viu da montra este cadeirão todo embonecado com motivos portugueses, pois claro, pediu licença para fotografar, conversou com a lojista e apurou que se arrancara a napa original e assim se chegara a esta peça vistosa.
E para fazer ponto final nesta deambulação nada como este cenário de carpintaria, em primeiro plano a mesa em que se tortura a madeira, até ela ganhar forma, e na sua envolvente tábuas de todas as dimensões e feitios. Como é evidente, são coisas da imaginação, para o viajante estão aqui na imagem o criado e o incriado, fica por sondar o génio marceneiro. E aquela bata, como descuidadamente abandonada, na mesa de trabalho, também nos deixa a incógnita se acabou ou vai começar a laboriosa sessão de fazer das tábuas um móvel de eleição.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15834: Os nossos seres, saberes e lazeres (144): O ventre de Tomar (8) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 16 de março de 2016
Guiné 63/74 - P15862: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte I
Foto nº 2 > O meu saudoso pai, militar do Regimento de Infantaria de Lisboa, 1943-45
Foto nº 3 > A foto da ordem, com a farda emprestada... [A farda nº 1...]
Foto nº 4 > Recruta nas Caldas da Rainha [, em farda nº 3, no RI 5, que faz hoje 42 anos que se revoltou,...]
Foto nº 5 > Juramento de bandeira [, no RI 5, Caldas da Rainha]
Foto nº 6 > Em Vendas Novas, EPA [Escola Prática de Artilharia]
Foto nº 7 > Diploma do Curso de Minas e Armadilhas [, Escola Prática de Engenharia; nota, 79,8, "regular"]
Foto nº 8 > Eu e o famoso e afamado Pechincha [, do meu pelotão, fur mil op esp, desenhador na vida civil,,,]
Foto nº 9 > Eu [, à esquerda,] com o fur mil Pais, numa jogatana, na nossa messe no Gabu [Nova Lamego], e o devido bioxene.
Foto nº 11 > Eu, o Pais e o Valdemar [Queiroz]
Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. L.G.]
Olá, Luís,
Conforme teu pedido semanas atrás, aqui vão algumas fotos, que farás o favor de lhes dar o destino que entenderes, fui buscá-las a um Álbum, que a minha saudosa mãe criou com fotos que eu lhe enviava.
O interesse delas é relativo, tudo depende de quem as vê.
Nas mesmas vou pôr legendas, para melhor interpretação do seu significado.
Agradecendo desde já a tua paciência, daqui um grande abraço.
Abílio Duarte
2. Comentário do editor:
Todas estas fotos (mesmo as mais pessoais...) são preciosas, ajudando, em muito, a reconstrução do "puzzle" esburacado da nossa memória, da memória de toda uma geração que passou pela Guiné, entre 1961 e 1974...
Mas é preciso "contextualizá-las"... Um ET, da geração dos nossos filhos, netos ou bisnetos, vai olhar para as tuas/nossas fotos como um boi para um palácio... Quem são esses gajos, em que época é que viveram, o que estavam para ali a fazer ?... Não havia telemóveis, ipads, tablets, PC, o Skype, nem sequer telefones!... Um homem podia estar (estava!) dois anos sem falar, "ao vivo", com a família e os amigos!... Tal como no tempo, 500 anos atrás, em que se ia à Índia e voltava (quando voltava!) dois anos depois... Havia, entretanto, uma coisa que se chamava "aerograma", inventada pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e uma máquina montada pela tropa chamada "Serviço Postal Militar" (SPM)... Ajudaram a "encurtar" as distâncias, que o império, de dois mil quilómetros quadrados, era longe e largo...
Ao pores à nossa disposição algumas fotos que mandavas à tua mãezinha e que ela foi guardando e colando carinhosamente no seu álbum, prestas, a todos nós, um serviço altruista: ao vê-las, estamos a "avivar" as nossas próprias memórias individuais (e grupais): a tua história de vida é também a nossa. a de cada um de nós... Bem hajas!... Luís.
PS - Tens sabido do nosso comum amigo (, meu, de Bambadinca, teu, do BNU), o José Carlos Lopes ? Ele tem um excelente album fotográfico... Fazia muitos "slides" e de boa qualidade... É meu vizinho (, eu moro em Alfragide). Mas não arranjo tempo para o ir visitar a Linda a Velha... Estive com ele cerca de 1 ano em Bambadinca... Ele, da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), eu, da CCAÇ 12 (1969/71)... Em tempos combinámos juntarmo-nos, eu, tu e ele... Vamos ver quando poderei ou quando poderemos juntarmo-nos, os três...
PS - Tens sabido do nosso comum amigo (, meu, de Bambadinca, teu, do BNU), o José Carlos Lopes ? Ele tem um excelente album fotográfico... Fazia muitos "slides" e de boa qualidade... É meu vizinho (, eu moro em Alfragide). Mas não arranjo tempo para o ir visitar a Linda a Velha... Estive com ele cerca de 1 ano em Bambadinca... Ele, da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), eu, da CCAÇ 12 (1969/71)... Em tempos combinámos juntarmo-nos, eu, tu e ele... Vamos ver quando poderei ou quando poderemos juntarmo-nos, os três...
Guiné 63/74 - P15861: Parabéns a você (1049): Joviano Teixeira, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15856: Parabéns a você (1047): António da Silva Baptista, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3490 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 15 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15856: Parabéns a você (1047): António da Silva Baptista, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3490 (Guiné, 1972/74)
terça-feira, 15 de março de 2016
Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos.
Brunhoso há 50 anos
6 - Uma terra rica e auto-suficiente
O planalto de Miranda, que para sul se prolonga bastante pelo concelho de Mogadouro, vem ainda dar forma à parte norte de Brunhoso, com terras planas, pouco fundas e secas, próprias para o cultivo do trigo e do centeio, que se produzia em abundância. Os meses de Julho e Agosto eram meses de grande azáfama com a ceifa das searas, a acarreja dos molhos de cereais, feita pelos carros de bois e de mulas, para as eiras do Prado, onde as medas iam crescendo em largura e altura e finalmente as malhas e a recolha do grão e da palha.
Nessa zona de planalto, numa parte sobranceira à aldeia a cerca de um quilómetro, existia um grande souto, implantado num terreno de muitos hectares, propriedade da Junta da Freguesia, sendo os castanheiros propriedade dos naturais da terra, divididos desigualmente através de um processo já antigo que desconheço, possivelmente com vendas e trocas posteriores. As castanhas eram tão boas, sobretudo as variedades predominantes: a longal e a judia, pouco a rebordega só própria para dar aos porcos.
Seara de centeio em Trás-os-Montes
Com a devida vénia a Panoramio
Nos dias de domingo, já um pouco frescos de Outono, os rapazes e raparigas solteiras faziam magustos na Serra (sítio dos castanheiros, seria Serra porque ficava noutro plano acima da aldeia, penso eu) com grandes fogueiras e faziam bailes ao som de realejos (harmónicas de boca) para aquecer os corpos e as almas. As castanhas eram uma riqueza que não saía da aldeia, pois nesse tempo não tinha compradores, as pessoas comiam algumas cruas, mais cozidas ou assadas e a maioria davam-se aos porcos, para os cevar, pois as matanças não estavam longe e elas eram um bom alimento para eles. Guardavam-se sempre algumas nas despensas, em talhas de barro, para serem comidas cruas no dia primeiro de Maio senão o burro mordia, vá-se lá saber porquê.
Para sudoeste o termo de Brunhoso integra-se na paisagem formada por montes e vales a perder de vista que identificam e dão nome à província de Trás-Os-Montes. As montanhas da Ribeira e da Lagariça que acompanham os vales dos mesmos nomes, onde correm ribeiros bastante caudalosos no Inverno e na Primavera, quase secos no Verão, estão cobertas de sobreiros e de estevas, giestas e outros arbustos. As giestas e estevas na humildade do seu porte aqueciam as casas dos trabalhadores sem terras nas noites frias de Inverno e eram uma lenha excelente para aquecer os fornos onde se coziam os grandes pães trigos e centeios. Os sobreiros no seu porte altivo produziam a bolota, tão do agrado das ovelhas e carneiros e a cortiça que proporcionava uma fonte de rendimento extra para alguns lavradores.
Nesse tempo, do norte ao sul da província, na zona de terras entre o rio Sabor e o Douro Internacional, Brunhoso era a aldeia que produzia mais cortiça e mesmo fora dessa área muito poucas aldeias haveria no norte de Portugal com maior produção.
Caminhando montes fora por caminhos e carreiros vamos encontrar a cinco quilómetros o vale do rio Sabor com uma ladeira muito extensa coberta de oliveiras com muitos socalcos de pedra, chamados safardas, que permitiram que se fizessem os plantios e manutenção dessas grandes áreas de olival. Para aproveitamento dos terrenos planos para o cultivo dos cereais e dos montes com menor declive para o montado de sobreiros, os nossos antepassados reservaram esses terrenos de encostas íngremes que descem para o rio e com um clima menos frio para as oliveiras. Encostas por vezes tão íngremes que as oliveiras tinham que ser cavadas pela mão do homem pois as juntas de vacas ou de mulas não conseguiam equilíbrio suficiente para as puder lavrar. Terrenos tão íngremes onde não havia caminhos onde pudessem circular os carros de bois e a azeitona tinha que ser transportada dentro de sacos por burros e mulas.
Para além de todo o trabalho em excesso, essas árvores, que dizem que um Deus há muitos séculos abençoou, davam azeite para dar e vender, azeite óptimo feito sobretudo das variedades madural, negra e verdial com algumas lentisca, cobrançosa e bical.
Junto ao rio Sabor numa planície de 100 a 200 metros de largura, que lhe acompanhava a margem, estavam as oliveiras centenárias, com troncos mais largos do que um abraço de dois homens. Muitas delas teriam mais de 500 anos. A memória da aldeia, que transmitida de gerações em gerações geralmente se perde nos nossos bisavós, estava no seu ADN, caso houvesse um cientista que o soubesse descodificar e revelar todos os que ao longo dos séculos as plantaram, as limparam, as lavraram, as estrumaram, as varejaram e lhe apanharam a azeitona.
Infelizmente essas grandes oliveiras, há dois anos, foram arrancadas para dar espaço livre à inundação provocada pela barragem do Sabor. Enfim é o progresso a descaracterizar o passado, num país mais rico e mais respeitador da sua história natural, essas árvores, monumentos da natureza, seriam transplantadas para terrenos livres e há tantos agora ao abandono.
A povoação está situada numa parte mais baixa, abrigada entre o planalto e a zona montanhosa. Ao redor dela, num raio de 1 a 2 quilómetros em terrenos mais fundos e com maior abundância de nascentes de água situavam-se as hortas e lameiros. As hortas produziam batatas, feijões, melões, melancias, abóboras, beterrabas, milho e muitos outros produtos hortícolas para consumo das pessoas e dos animais. Produziam ainda linho com que as mulheres fabricavam nos teares: toalhas, colchas, peças de roupa e grandes sacos de linho para transportar o trigo e o centeio.
Vale do Sabor
Foto: © Miguel Barbosa
Foto: © Miguel Barbosa
Os lameiros e regadas davam bom pasto ao gado bovino, asinino e muar e os freixos e olmos, que cresciam neles, forneciam-lhes também as suas folhas, comestíveis no tempo quente e seco do Verão, em que havia pouca erva. Havia muitas vacas para o trabalho dos campos que pariam muitas vitelos para venda ou para criação.
Há um mês, à lareira da casa de Brunhoso, que herdámos dos nossos pais, à conversa com o senhor António, lavrador de Mogadouro, um homem rijo e com boa cabeça, apesar dos seus 90 anos, com muitas estórias para contar, falou-nos nas carneiradas já esquecidas nas dobras da minha memória. Segundo ele, em 1945, com a idade de 18 anos, foi contratado por um negociante de gado para ir a pé com mais quatro pastores para levar 900 carneiros a Celorico da Beira, a uma distância de cerca de 130 quilómetros. A viagem, de ida e volta, sempre a pé, demorou quatro dias e conta que ganhou 50 escudos, uma boa importância para a época, segundo afirmou. Segundo ele, nesse tempo e ainda em tempos posteriores, que eu recordo vagamente da minha meninice em Brunhoso, havia três ou quatro carneiradas. As carneiradas eram rebanhos de carneiros capados, para atingirem maior crescimento e como tal próprios para serem vendidos para produção de carne.
Rebanhos de ovelhas nesse tempo haveria 15 a 20 que produziam muito leite de que as mulheres fabricavam bons queijos e produziam muita lã aproveitada para fazer, tal como o linho, muitas roupas para uso pessoal e doméstico, estou a lembrar-me das meias grossas de lã, usadas no Inverno.
Os carneiros e as ovelhas andavam por montes, terras não semeadas, por hortas não plantadas, terras de adil, raramente lameiros. Nessa sociedade de subsistência nada se desperdiçava, havia lugar para todos os tipos de plantas e animais e cada um ocupava o seu espaço próprio em proveito da comunidade.
Não havia cabras em Brunhoso, um acordo antigo entre os lavradores, instituiu essa proibição para proteger os sobreiros no seu crescimento pois esses animais gostavam de roer os caules e ramos tenros dessas árvores. Dentre as aldeias em redor esta "lei" era única e respeitada pelos cabreiros das terras próximas, sendo já antiga, talvez nos ajude a compreender porque razão se produzia tanta cortiça na aldeia.
Produzia-se algum vinho, não o suficiente para consumo da aldeia, já que estando situada numa zona de terra fria, o clima não era o melhor para o amadurecimento das uvas. A melhor zona para plantar a vinha seria, penso eu, nas arribas do Sabor, pela sua exposição solar e por ter clima mais quente, porém esses terrenos estavam reservados, há longos anos, por vontade dos mais velhos, para a produção desse líquido dourado, abençoado pelas mulheres e pelos deuses, que produziam as oliveiras.
Para a economia das famílias eram também muito importantes os porcos que cada uma criava para matar no Inverno e guardar o presunto, o toucinho, os salpicões, as linguiças, as alheiras e outros enchidos para consumir durante o ano, assim como a criação de galinhas e perus que além de ovos forneciam boa carne. Muito importante também para a dieta dos mais pobres e apreciada igualmente por todos os habitantes eram as produtos que cresciam espontâneamente nos campos, os míscaros, as azedas, os cunqueiros, os agriões, as merugens. Para variar as dietas alguns tinham acesso à carne de caça, perdizes, coelhos e lebres e aos peixes que alguns pescadores pescavam no rio Sabor por vezes em grandes quantidades.
Tudo é relativo, assim Brunhoso, nesse tempo, que era uma aldeia rica e auto-suficiente, uma sociedade rural de subsistência, com os recursos agrícolas e florestais explorados até ao limite, não conseguia alimentar nem dar trabalho a todos os seus filhos porque a explosão demográfica fazia crescer exponencialmente a população. Tendo cada casal uma média de seis ou mais filhos, a única saída para os mais desfavorecidos da fortuna quando se atingia um certo limiar populacional, era o drama da emigração. Actualmente com o declínio acentuado da agricultura tradicional, esse drama converteu-se na tragédia da vida que a grande poetisa galega Rosália de Castro retratou em verso em relação à sua terra.
Em Brunhoso só já moram alguns desfavorecidos da sorte e outros que por muito amor às mães que os geraram e à terra mãe onde nasceram e foram criados, nunca tiveram coragem de abandoná-la. Ficaram também alguns mais velhos a sonhar com o movimento das gentes e dos animais de antigamente e algumas mais velhas com o olhar mortiço e desalentado pois estão privadas da presença dos netos e dos filhos que davam calor às suas vidas e tanto brilho ao seu olhar. Os da minha faixa etária (já velhos!) que vamos periódica ou ocasionalmente à aldeia, que acompanhámos a transição entre estes dois mundos, temos a alma repartida pois em troca de algum bem-estar fomos perdendo as nossas raízes. Os olmos tão verdes e frondosos na Primavera e no Verão morreram há muitos anos com a grafiose, doença holandesa dos ulmeiros, os freixos vão ficando enrugados porque não há rapazes ou homens que lhes esgalhem os ramos, nem vacas que lhe comam as folhas, os castanheiros morreram também todos de outras pragas, os sobreiros têm morrido, uns por velhice, outros por causa das alterações climáticas.
Os terrenos da minha aldeia, que tem 20 km2 de área agrícola e florestal, está dividida em dezenas de sítios com nomes que podem identificar uma área de dois ou três hectares ou uma área de trinta ou mais hectares. Sem estarem assinalados com qualquer marca física, toda a gente da terra conhece os seus limites.
A minha vida na aldeia que nunca esteve confinada às quatro paredes da casa dos meus pais, abre-se para esses espaços livres que percorri tantas vezes e fazem parte da minha memória geográfica e afectiva, que passo a nomear: Lagariça, Ribeira, Hortelã, Miragaia, Gaiteiro, Fonte da Dona, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Juncais, Juncaínhos, Urzal, Entre-Caminhos, Ferreiros, Cachão, Barca, Perdigosa, Rabo da Vaca, Cova dos Lobos, Sapo Torrado, Boiselas, Cabecinho, Canadinha, Crasto, Lamas, Fraga do Poio, Fraga da Tecedeira, Forno dos Mouros, Lama das Vinhas, Vinhas dos Cães, Milhares, Balhelhos, Serra, Cinzas, Chabouco, Vale de Cabo, Vale de Meio, Valedramum, Vale da Nina, Couço, Azinhal, Arrebentão, Escaleiras, Figueiredo, Picotas, Prado, Orretas, Olmos, Lameira, Lameirões, Rodelas, Barriguinho, Queimada, Maias, Francos, Picotas, Netos e outros que agora não recordo.
Um abraço
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 de junho de 2015 Guiné 63/74 - P14714: Brunhoso há 50 anos (5): Uma sociedade paternalista (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
Guiné 63/74 - P15859: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (42): Os Designers do desenrascanço
1.
Em mensagem do dia 5 de Março de 2016, o nosso camarada António
Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias.
Há tempos, em conversa com um senhor Tenente-Coronel, Secretário da Direcção do Núcleo da Figueira da Foz da Liga dos Combatentes, falava-lhe das muitas carências por que passaram os combatentes na Guiné, onde ele não esteve. A certa altura a conversa derivou para as acomodações, conforto, mobiliário, etc., das Unidades no mato, assunto, entre outros, pelos quais mostrou curiosidade. Falei-lhe de como, coisas tão simples como sentarmo-nos numa cadeira à mesa para comer, escrever ou abrir um jornal, depois de uma chegada do mato onde se passou a noite, tantas vezes em condições de extrema adversidade, de como, dizia, coisas tão simples podiam dar a sensação de um grande bem-estar, de uma gratificante recompensa pela noite mal passada, pelo patrulhamento esgotante, enfim. Compreendo que quem nunca passou por um cenário de guerra, tendo de viver em condições precárias com carências de toda a ordem, tenha dificuldade em compreender isto, tal como o significado de um simples banho ou o de levar à boca uma garrafa de cerveja gelada. Mas respeito muito quem, não tendo passado por isso, se mostra interessado em saber como era e dá mostras de ter aumentado a admiração pelas nossas tropas naqueles cenários. Falei-lhe, ainda, de como em vários domínios essenciais, a sobrevivência muitas vezes dependia da capacidade de “desenrascanço” de uns quantos. Até o conforto era melhorado por “carpinteiros” geniais que, improvisando, faziam sair do nada, mesas, cadeiras, estantes, arcas e armários. Porque nem todas as Unidades tinham esses bens básicos distribuídos.
Mas quase todas as Unidades tinham nas suas “esplanadas”, à frente das messes e das camaratas, belíssimas cadeiras feitas de aduelas de pipas e barris..., saídas da imaginação e das mãos de designers de alto gabarito. Que não deixaram marca nas suas obras e de quem hoje ninguém se lembra. O Sr. Tenente-Coronel ficou muito surpreendido: “Com aduelas de barris? Gostava de ver. Por acaso não tem alguma fotografia que me possa mostrar?” Prometi-lhe mostrar ou fazer uns desenhos para ele ver melhor. São esses apontamentos desenhados, uma pequena amostra tirada de algumas fotografias, que aqui deixo como lembrança e gratidão a todos os nossos “designers/carpinteiros” da Guiné do tempo da guerra.
Imagem 1 – Cadeira da “esplanada” da messe de oficiais de Nhala. Nela cheguei a fotografar a “Cilinha”, Cecília Supico Pinto, Presidente do Movimento Nacional Feminino.
Imagem 2 – Cadeira desenhada a partir de uma fotografia de um Tabanqueiro recente no nosso Blogue, que esteve em Aldeia Formosa e em Buba.
Nota do editor
Último poste da série de 8 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
42
- Os Designers do desenrascanço
Há tempos, em conversa com um senhor Tenente-Coronel, Secretário da Direcção do Núcleo da Figueira da Foz da Liga dos Combatentes, falava-lhe das muitas carências por que passaram os combatentes na Guiné, onde ele não esteve. A certa altura a conversa derivou para as acomodações, conforto, mobiliário, etc., das Unidades no mato, assunto, entre outros, pelos quais mostrou curiosidade. Falei-lhe de como, coisas tão simples como sentarmo-nos numa cadeira à mesa para comer, escrever ou abrir um jornal, depois de uma chegada do mato onde se passou a noite, tantas vezes em condições de extrema adversidade, de como, dizia, coisas tão simples podiam dar a sensação de um grande bem-estar, de uma gratificante recompensa pela noite mal passada, pelo patrulhamento esgotante, enfim. Compreendo que quem nunca passou por um cenário de guerra, tendo de viver em condições precárias com carências de toda a ordem, tenha dificuldade em compreender isto, tal como o significado de um simples banho ou o de levar à boca uma garrafa de cerveja gelada. Mas respeito muito quem, não tendo passado por isso, se mostra interessado em saber como era e dá mostras de ter aumentado a admiração pelas nossas tropas naqueles cenários. Falei-lhe, ainda, de como em vários domínios essenciais, a sobrevivência muitas vezes dependia da capacidade de “desenrascanço” de uns quantos. Até o conforto era melhorado por “carpinteiros” geniais que, improvisando, faziam sair do nada, mesas, cadeiras, estantes, arcas e armários. Porque nem todas as Unidades tinham esses bens básicos distribuídos.
Mas quase todas as Unidades tinham nas suas “esplanadas”, à frente das messes e das camaratas, belíssimas cadeiras feitas de aduelas de pipas e barris..., saídas da imaginação e das mãos de designers de alto gabarito. Que não deixaram marca nas suas obras e de quem hoje ninguém se lembra. O Sr. Tenente-Coronel ficou muito surpreendido: “Com aduelas de barris? Gostava de ver. Por acaso não tem alguma fotografia que me possa mostrar?” Prometi-lhe mostrar ou fazer uns desenhos para ele ver melhor. São esses apontamentos desenhados, uma pequena amostra tirada de algumas fotografias, que aqui deixo como lembrança e gratidão a todos os nossos “designers/carpinteiros” da Guiné do tempo da guerra.
Imagem 1 – Cadeira da “esplanada” da messe de oficiais de Nhala. Nela cheguei a fotografar a “Cilinha”, Cecília Supico Pinto, Presidente do Movimento Nacional Feminino.
Imagem 2 – Cadeira desenhada a partir de uma fotografia de um Tabanqueiro recente no nosso Blogue, que esteve em Aldeia Formosa e em Buba.
Imagens 3 e 4 – Cadeiras da “esplanada” da messe de oficiais de Buba.
____________Nota do editor
Último poste da série de 8 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra
Guiné 63/74 - P15858: Inquérito 'on line' (45): Apanhei um "pifo de caixão à cova", apanhei!...No regresso da Op Inquietar I, em 13 de junho de 1967... (A. Marques Lopes, cor inf DFA, ref)
APANHEI UM PIFO DO CACHÃO PARA A COVA, APANHEI!
Texto e fotos: A. Marques Lopes (2016)
[A. Marques Lopes, coronel DFA ref, ex-alf mil (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)]
Tínhamos regressado da Operação Inquietar I, para irmos destruir a base do PAIGC em Samba Culo [, de 9 a 13 de junho de 1967].
Três dias de mato sob sol e chuva e obrigados três vezes a furar um cerco por ordem do Capitão Maia, quando estávamos cercados e encostados ao rio Canjambari.
Um soldado meu levara um tiro nas costas dado pela Companhia dele.
Maia era o nome dele e não Lindolfo, como o designei no meu livro “Cabra-cega, do seminário para a guerra colonial”. Foi o General Moreira Maia, Comandante da Região Militar do Norte, que me disse um dia, era eu já Tenente-Coronel, que não se lembrava nada disso. Mas eu lembrava-me bem.
Estávamos cansadíssimos e lixados.
Disse ao rapaz do bar:
- Olha, é uma grade de cervejas para mim e para os nossos furriéis.
Ele trouxe-as e bebemos tudo.
Mas a mim não me chegou. Mandei vir whisky e bebi. Mandei vir gin e bebi. E caí para o lado depois de vários. Pegaram-me nos braços e pernas e levaram-me para a cama.
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15854: Inquérito 'on line' (44): Como é que eu apanhei um "pifo" de uísque Dimple (José Carlos Gabriel, ex-1.º cabo op cripto, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Nhala, 1973/74)... ou de "tintol" (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
Texto e fotos: A. Marques Lopes (2016)
[A. Marques Lopes, coronel DFA ref, ex-alf mil (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)]
Tínhamos regressado da Operação Inquietar I, para irmos destruir a base do PAIGC em Samba Culo [, de 9 a 13 de junho de 1967].
Três dias de mato sob sol e chuva e obrigados três vezes a furar um cerco por ordem do Capitão Maia, quando estávamos cercados e encostados ao rio Canjambari.
Um soldado meu levara um tiro nas costas dado pela Companhia dele.
Maia era o nome dele e não Lindolfo, como o designei no meu livro “Cabra-cega, do seminário para a guerra colonial”. Foi o General Moreira Maia, Comandante da Região Militar do Norte, que me disse um dia, era eu já Tenente-Coronel, que não se lembrava nada disso. Mas eu lembrava-me bem.
Estávamos cansadíssimos e lixados.
Disse ao rapaz do bar:
- Olha, é uma grade de cervejas para mim e para os nossos furriéis.
Ele trouxe-as e bebemos tudo.
Mas a mim não me chegou. Mandei vir whisky e bebi. Mandei vir gin e bebi. E caí para o lado depois de vários. Pegaram-me nos braços e pernas e levaram-me para a cama.
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Nota do editor:
Último poste da série > 14 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15854: Inquérito 'on line' (44): Como é que eu apanhei um "pifo" de uísque Dimple (José Carlos Gabriel, ex-1.º cabo op cripto, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Nhala, 1973/74)... ou de "tintol" (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
Guiné 63/74 - P15857: Lembrete (17): É já amanhã, dia 16, a apresentação do livro do Juvenal Amado, no almoço semanal da Tabanca de Matosinhos
Lembrete: Dia 16, 4.ª feira, na Tabanca de Matosinhos Tertulia, o nosso camarada Juvenal Amado vai apresentar o seu livro "A Tropa Vai Fazer de Ti Um Homem! Guiné 1971-1974" [Lisboa, Chiado Editora, 2015, 308 pp. | Preço de capa (papel): 15 €; ebook (edição digital): 3 €].
O Manuel Passos escreveu, na página do Facebook da Tabanca de Matosinhos Tertúlia, a seguinte mensagem:
"Só para relembrar, quarta-feira, 16/3/2016, Almoço... O nosso companheiro, ex-combatente, Juvenal Amado vai estar na Tabanca de Matosinhos Tertúlia na apresentação do seu Livro. Vamos dar-lhe aquele abraço que só nós sabemos fazer, com a nossa presença, Tabanqueiros!"...
Guiné > Zona leste > Setor L5 A> Galomaro > CCS/BCAÇ 3872 (1971/74)
Com Luis Arrepia, José Manuel Confraria, João Narciso, Adelino José Costa, Germano Gomes e Mário Vasconcelos [nosso grã-tabanqueiro, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72,Mansoa, e Cumeré, 1973/74].
Foto (e legenda): © Juvenal Amado (2016). Todos os direitos reservados.
_________________
Nota do editor:
Último poste da série > 22 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15651: Lembrete (16): É já amanhã, dia 23, sábado, às 16h30, em Lisboa, no "Chiado Clube Literário e Bar", que o nossso camarada Juvenal Amado vai lançar o seu livro!... Diz-nos ele: ""Camaradas, não sei se a tropa fez de mim um homem, mas decerto fez-me arranjar amigos como vocês. Apareçam!"
Guiné 63/74 - P15856: Parabéns a você (1048): António da Silva Baptista, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3490 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 14 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15852: Parabéns a você (1046): Leopoldo Correia, ex-Fur Mil Art da CART 564 (Guiné, 1963/65)
segunda-feira, 14 de março de 2016
Guiné 63/74 - P15855: Notas de leitura (818): "Seis irmãos em África", edição de autor, Porto, 2016... Um excerto: "Perdido no mato de Mansambo... por uma hora!" (Álvaro Magro, ex-1º cabo aux enf, CART 3494, Mansambo, e HM 241, Bissau, 1971/74)
Sobre Mansambo temos de 3 centenas de referências... e quase 2 centenas sobre a CART 2339. Foto do arquivo do nosso "cartógrafo-mor", o Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Foto: © Humberto Reis (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
1. Mensagem de Abílio Magro, com referência ao poste P15847 (*)
Data: 13 de março de 2016 às 19:40
Assunto: "Seis Irmãos em África"
Caro Luís:
Obrigado pelas tuas palavras referentes ao livreco "Seis Irmãos em Africa" que mais não é do que uma compilação de textos que por aí andam em blogues, livros e quejandos.
2. Mensagem anterior de LG (*)
Abílio:
Dá um "alfabravo" aos manos, adorei essa dos "Magros do capim"!... Felicito-te por puxares esta "carroça", não é por acaso que és o mano mais novo... Mas, como na tropa, é preciso que alguém mande, ou melhor, lidere... (Como sabes, há uma liderança entre chefia e liderança, basta lembrares-te como era, lá no QG: "eram mais os chefes... que os índios!"... Não sei se foi por isso que perdemos a guerra...).
Um beijinho para a tua filha, Cláudia, que vos escreveu um prefácio tão bonito... E já agora diz-nos onde ou como é que o vosso livro pode ser comprado... Por exemplo, pelo correio... Manda o preço de capa (+ portes de correio) e a morada...
Um bom domningo!...Luís
PS -Vou vos "roubar" uma história para publicar no blogue, pode ser ? É também uma forma de promover o livro que, se calhar, com uma família tão grande como a vossa, mais os amigos, já está esgotado... Ou não ?
PS -Vou vos "roubar" uma história para publicar no blogue, pode ser ? É também uma forma de promover o livro que, se calhar, com uma família tão grande como a vossa, mais os amigos, já está esgotado... Ou não ?
O mais importante é a vontade e a opinião do Álvaro, por muito que prezemos a opinião do mano mais velho (Fernando) e do mais novo (Abílio). Temos um nº para ele, o 712, um lugar jeitoso à sombra do mágico poilão da Tabanca Grande... Era muito honroso termos cá, todos sentadinhos e bem comportadinhos, os três manos Magro que foram à Guiné... É caso único...
Se os outros três, que andaram por outros "matos" (Angola e Moçambique) se quiserem juntar a nós, era ouro sobre azul!... Acho que nos podíamos candidatar ao Guiness Book of Records!... (Na verdade, não conheço até agora nenhum blogue da guerra que tenha juntado, sob o mesmo poilão, seis irmãos, combatentes)...
Vou pedir ao mano Abílio para fazer uma reunião de família... Convindar só o Álvaro, até parece mal!... Bolas, os outros três, também são filhos do mesmo pai e da mesma mãe: o Rogério, o Dálio e o Carlos!... (LG)
Ex-1º Cabo Aux Enfermagem
1971
- Janeiro: incorporado no Exército, no RI 7, Leria (recruta);
- Abril: Regimento de Serviços de Saúde, Coimbra (especialidade);
- Julho/agosto: HMR-1, Porto (estágio);
- Setembro/uutubro: EPI, Mafra;
- Novembro; Mobilizado para Moçambique;
- Dezembro: Desmobilizado e novamente mobilizado, mas desta vez para a Guiné, onde chega no final do mês;
- Abril: Regimento de Serviços de Saúde, Coimbra (especialidade);
- Julho/agosto: HMR-1, Porto (estágio);
- Setembro/uutubro: EPI, Mafra;
- Novembro; Mobilizado para Moçambique;
- Dezembro: Desmobilizado e novamente mobilizado, mas desta vez para a Guiné, onde chega no final do mês;
- No decorrer de uma operação, num curto período de descanso no mato, adormece e, quando acorda, vê-se sozinho [vd. relato~abaixo, no ponto 4];
- Anda perdido durante cerca de uma hora, mas acaba por encontrar pessoal da sua Companhia;
- Em março de 1972 consegue transferência para o HMBIS [HM 241], onde presta serviço na Secretaria até ao fim da Comissão;
- Passa à situação de disponibilidade em 26 cde fevereiro de 1974.
por Álvaro Magro:
(...) Em Fevereiro de 1972, quando me encontrava ao serviço da CART 3493 em Mansambo, participei numa operação militar que durou um dia e duas noites e onde, a dada altura, no meio do mato, o Alferes, Comandante do deu pelotão, deu ordem para que o poessoal descansasse um pouco.
(...) Em Fevereiro de 1972, quando me encontrava ao serviço da CART 3493 em Mansambo, participei numa operação militar que durou um dia e duas noites e onde, a dada altura, no meio do mato, o Alferes, Comandante do deu pelotão, deu ordem para que o poessoal descansasse um pouco.
Acabei por adormecer e, quando acordeu, viu-se sozinho, perdido no mato, numa região de "turras".
Foi uma experiência muito traumatizante, principalmente para alguém que, como eu, tinha chegado à Guiné havia pouco mais de um mês.
Num "bate estradas" (aerograma) que enviei para o meu irmão Fernando, em Bissau, relatei aquela "odisseia" (...)
"Não imaginas o meu estado de espírito ao ver-me só e perdido dentro daquela mata densa. Andei cerca de uma hora perdido, cheio de medo. Cheguei a pensar que seria apanhado pelos terroristas e que nunca mais voltaria a ver a família.
Procurei encobrir-me com a vegetação, mas se porventura tinha de atravessar uma clareira, fazia-o rastejando.
Por fim encontrei um trilho por onde segui algum tempo, encharcado em suor.
Finalmente vi, ao longe, um pequeno grupo de militares. Aproximei-me deles correndo o mais que pude e, quando me pareceu que a minha voz poderia por eles ser ouvida, gritei com quanta força tinha.
Era tropa da minha Companhia, embora não fosse do meu pelotão.
Contei o que havia acontecido, quase sem poder falar, por estar muito cansado.
Não tive nenhuma culpa do sucedido." (...)
Fonte: Excertos de "Seis Irmãos em África", edição de autor, Porto, 2016, pp. 187 e 189/190. (Com a devida vénia...). (**)
_______________
(**) Último poste da série > 14 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15853: Notas de leitura (815): "As Memórias de Um Comando", por Zé Carlos, Edita-Me, Editora, Lda., 2014 (Mário Beja Santos)
Fonte: Excertos de "Seis Irmãos em África", edição de autor, Porto, 2016, pp. 187 e 189/190. (Com a devida vénia...). (**)
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Notas do editor:
Guiné 63/74 - P15854: Inquérito 'on line' (44): Como é que eu apanhei um "pifo" de uísque Dimple (José Carlos Gabriel, ex-1.º cabo op cripto, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Nhala, 1973/74)... ou de "tintol" (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
O Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) dizia-nos, em 2010, que ainda tinha lá em casa "5 garrafas de uísque das que trouxe da Guiné (...)... São elas uma 'President', uma 'Something Special', uma 'Dimple', uma 'Smugler' e uma 'Logan' (conforme foto...). Umas autênticas belezas".
E acrescentava: "Alguns dirão que isto é um sacrilégio; porque será que o Dias não tratou destas 'meninas' em conformidade? Outros dirão que não é lá muito de beber e que, por tal facto, foi deixando andá-las lá por casa. Eu respondo: fui bebendo algumas, deixei outras ao meu pai, também ao meu tio Armando – este sim um grande apreciador – e fui ficando com outras e, olhem, ganhei-lhes amizade, porque olhava para elas e ia-as destinando a grandes momentos. Bebi uma, já não me lembro a marca, quando o meu filho nasceu há 30 anos. (...) Vou abrir a 'Dimple' quando fizer 60 anos, se Deus permitir que eu lá chegue, e as outras serão para outras 'special ocasions' ” (...) (*)
Foto (e legenda): © Luís Dias (2010). Todos os direitos reservados.
Mais 2 comentários sobre o tema do nosso inquérito 'on line' que encerra amanhã, dia 15m, terça feira, às 18h (**):
(i) José Carlos [Ramos dos Santos] Gabriel, ex-1.º cabo op cripto, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74), nosso grã-tabanqueiro desde 16/8/2011:
[foto à esquerda: é o segundo, de perfil, do lado esquerdo. Nhala, Natal de 1973]
Assunto - Resposta ao questionário sobre o "Pifo"
Não fui diferente de muitos dos nossos camaradas. Se a memória não me falha só apanhei um “pifo” na Guiné, e único até hoje.
Aconteceu no posto de rádio, juntamente com um camarada telegrafista que fazia anos nesse dia.
Como era habitual, passava muito tempo junto dos telegrafistas e nesse dia eu estava de serviço ao Centro Cripto e ele começou a receber uma mensagem.
Sempre que faziam uma paragem para perguntar se todos a estavam a receber em condições, nós aproveitávamos para beber uma tampinha de Dimple.
Claro que quando a mensagem acabou de ser transmitida também a garrafa estava no fim.
O resultado foi um grande "pifo" de tal forma que não consegui decifrar a mensagem e tenho uma vaga ideia que foi o meu camarada que acabou por a decifrar.
Tive que deitar a carga ao mar para ficar mais ou menos bem. Nunca mais apanhei nenhum "pifo" até hoje mas "ficar alegre" até já me aconteceu com uma simples mini a meio da tarde que por qualquer razão o organismo não a aceitou.
(ii) José [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008 (*).
[Uma das fotos mais espantosas do álbum do José Colaço: uma pausa no pessoal, na construção da famosa paliçada do Cachil]
E como a ocasião faz o ladrão, aconteceu...
No posto rádio do Cachil só eu, mais o 1.º Cabo Dias, fazíamos serviço, sempre 12 horas cada um e dormíamos no posto rádio, mas quando um metia o pé na argola, o outro fazia o serviço.
Quando acordei como no posto rádio durante a noite, a luz estava quase sempre acesa devido às explorações rádio, olhei para o mosquiteiro todo coberto de mosquitos com um grande bunda cheia de sangue, começo à palmada a matá-los, mas ao fim de pouco tempo corria-me sangue pelos braços abaixo, o lençol, a fronha, o mosquiteiro tudo sujo de sangue, desisti abri mais o mosquiteiro e corri com os que restavam para fora que ainda eram bastantes.
Aprendi a lição e a partir dessa data passei a ter mais cuidado com o álcool e os "pifos".
___________
(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5672: Estórias avulsas (23): Old Parr e Antiquary a 90$00 (Luís Dias)
(**) Último poste da série > 12 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15846: Inquérito 'on line' (43): Um em cada quatro, de um total preliminar de 83 respondentes, diz que NUNCA apanhou nenhum pifo de caixão à cova... Dois não se lembram, um não bebia... Há ainda três dias para responder...
Mais 2 comentários sobre o tema do nosso inquérito 'on line' que encerra amanhã, dia 15m, terça feira, às 18h (**):
[foto à esquerda: é o segundo, de perfil, do lado esquerdo. Nhala, Natal de 1973]
Assunto - Resposta ao questionário sobre o "Pifo"
Não fui diferente de muitos dos nossos camaradas. Se a memória não me falha só apanhei um “pifo” na Guiné, e único até hoje.
Aconteceu no posto de rádio, juntamente com um camarada telegrafista que fazia anos nesse dia.
Como era habitual, passava muito tempo junto dos telegrafistas e nesse dia eu estava de serviço ao Centro Cripto e ele começou a receber uma mensagem.
Sempre que faziam uma paragem para perguntar se todos a estavam a receber em condições, nós aproveitávamos para beber uma tampinha de Dimple.
Claro que quando a mensagem acabou de ser transmitida também a garrafa estava no fim.
O resultado foi um grande "pifo" de tal forma que não consegui decifrar a mensagem e tenho uma vaga ideia que foi o meu camarada que acabou por a decifrar.
Tive que deitar a carga ao mar para ficar mais ou menos bem. Nunca mais apanhei nenhum "pifo" até hoje mas "ficar alegre" até já me aconteceu com uma simples mini a meio da tarde que por qualquer razão o organismo não a aceitou.
(ii) José [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008 (*).
Assunto - Um "pifo" com tinto do caixão à cova para alimentar os mosquitos no Cachil.
[Uma das fotos mais espantosas do álbum do José Colaço: uma pausa no pessoal, na construção da famosa paliçada do Cachil]
E como a ocasião faz o ladrão, aconteceu...
No posto rádio do Cachil só eu, mais o 1.º Cabo Dias, fazíamos serviço, sempre 12 horas cada um e dormíamos no posto rádio, mas quando um metia o pé na argola, o outro fazia o serviço.
O posto rádio ficava colado à parede da casa dos géneros, como nós éramos amigos do cabo cozinheiro e a parede era de troncos de palmeiras ao alto com barro amassado com algum capim para tapar as frestas, nós fizemos um pequeno furo no barro e metíamos a borracha do filtro de campanha e assim que o cabo cozinheiro via lá a borracha, enfiava a dita num garrafão de tinto e nós, no posto rádio, era só bombar para garrafas. Por esse motivo nunca nos faltava o tinto da Metrópole (daí a razão da ocasião que faz o ladrão).
Acordo com o corpo numa lástima todo picado. O "pifo" e os mosquitos uma noite após o jantar depois de bem regado adormeci que nem uma pedra, mas talvez devido ao "pifo" meti os pés para fora do mosquiteiro, os amigos mosquitos aproveitaram o mosquiteiro aberto e satisfizeram a sua gula de sangue do Tuga.
Acordo com o corpo numa lástima todo picado. O "pifo" e os mosquitos uma noite após o jantar depois de bem regado adormeci que nem uma pedra, mas talvez devido ao "pifo" meti os pés para fora do mosquiteiro, os amigos mosquitos aproveitaram o mosquiteiro aberto e satisfizeram a sua gula de sangue do Tuga.
Quando acordei como no posto rádio durante a noite, a luz estava quase sempre acesa devido às explorações rádio, olhei para o mosquiteiro todo coberto de mosquitos com um grande bunda cheia de sangue, começo à palmada a matá-los, mas ao fim de pouco tempo corria-me sangue pelos braços abaixo, o lençol, a fronha, o mosquiteiro tudo sujo de sangue, desisti abri mais o mosquiteiro e corri com os que restavam para fora que ainda eram bastantes.
Aprendi a lição e a partir dessa data passei a ter mais cuidado com o álcool e os "pifos".
___________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5672: Estórias avulsas (23): Old Parr e Antiquary a 90$00 (Luís Dias)
(**) Último poste da série > 12 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15846: Inquérito 'on line' (43): Um em cada quatro, de um total preliminar de 83 respondentes, diz que NUNCA apanhou nenhum pifo de caixão à cova... Dois não se lembram, um não bebia... Há ainda três dias para responder...
Guiné 63/74 - P15853: Notas de leitura (817): "As Memórias de Um Comando", por Zé Carlos, Edita-Me, Editora, Lda., 2014 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2015:
Queridos amigos,
Quando ouvi falar neste livro de memórias de um Comando, alguém que, aos 64 anos, completava o 12.º ano pelo RVCC [Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências escolares e profissionais] e que correspondeu ao que a professora lhe pedia da sua "história de vida" com páginas singelas da sua meninice até ser trabalhador de casino, não resisti a ler um relato elaborado, parece-me, em condições francamente singulares no contexto da chamada literatura da guerra.
É um relato que nos prende pela indiscutível sinceridade, pela singeleza de quem corresponde ao pedido de um professor e conta tudo, sem jactância nem prosápia, tal qual foi desde a infância dura aos diferentes aprendizados, à formação para Comando, ao arrebol de operações no Leste e no Norte de Angola, aproveitando as horas vagas a consertar relógios.
Um abraço do
Mário
As memórias de um Comando, por Zé Carlos
Beja Santos
Estas memórias reservam-nos uma surpresa. O seu autor, Zé Carlos, ou Carlos Teixeira, ou Carlos Marques Teixeira, voluntariou-se para os Comandos, esteve em Angola, antes fora relojoeiro e é atualmente Presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Salas de Jogos. Aos 64 anos, completou o 12.º ano pelo RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) e foi durante este processo de aprendizagem que escreveu as memórias de um Comando. Tanto como me é dado saber, é o primeiro caso de incursão literária motivado por um processo escolar. Escreve a sua formadora:
“Este milagre aconteceu na sequência da primeira fase do seu envolvimento no RVCC, quando lhe foi solicitada a execução da sua história de vida. A aventura redundou numa profusão de páginas, cheias de passagens reveladoras de rara mestria ao nível do manuseio da palavra, da frase, do parágrafo, das estórias dentro da narrativa principal”.
São memórias em edição de autor (Zé Carlos Teixeira, Edita-Me, Editora, Lda., Porto, 2014).
O Zé Carlos cativa-nos pela singeleza, não esconde a admiração pela mãe que teve que lidar sozinha com a educação dos filhos. Trabalhou numa tabacaria até aos 12 anos, foi depois aprendiz de relojoeiro, seguiu para a fábrica de relógios Soumar, instalada na Rua Dezanove em Espinho. Era saudável mas muito franzino, inscreveu-se num ginásio, vivia fascinado pelos filmes do Hércules e no ginásio entusiasmou-se com o culturismo. O tempo passa, e o mancebo assenta praça no RI 5, estamos em 1969, a recruta não o entusiasmou, com um grupo de amigos inscreve-se para os Comandos. Inicia-se o processo da seleção: obstáculos, prova de boxe, seguem-se as eliminações, vertem-se lágrimas. Segue para Lamego. Na parada, é-lhes dito que iriam proceder a uma primeira chamada, os convocados iriam constituir as 24.ª e 25.ª Companhias de Comandos. Inicia-se a instrução militar e no dia 1 de Dezembro embarcam.
Estamos agora no Centro de Instrução de Comandos, ali vai aparecer o Comandante da Instrução, Gilberto Santos e Castro. Ordens súbitas para formar na parada, e depois da formatura relâmpago parte-se em caravana, acampa-se, desperta-se bem cedo e começam as provas duras, crosses à torreira do sol, um cantil de água por dia, era a prova da sede, preparação física e psicológica que não permitiam vacilações. A seguir a semana maluca em que tinham que fazer tudo ao contrário do que seria um dia normal, o dia começava às sete da tarde, com a noite cerrada havia a formatura para o pequeno-almoço, à meia-noite começava o almoço e às seis da manhã formatura para o jantar. São provas que desorientam os instruendos, correm pelos trilhos, chegam a uma clareira e ouvem-se disparos, entra-se na mata e ultrapassa-se obstáculos. E depois a prova dos mosquitos, uma noite pesadelo.
Em resumo, o Zé Carlos tirou o curso de Comandos em três meses e três dias, são encaminhados para as operações do Leste. As memórias começam a ganhar vivacidade. Vão numa operação na zona do Buçaco, aqui havia atividade de guerrilha bastante intensa. Encaminham-se para o acampamento quando se ouvem os gritos do Bernardo, tinha um pé atravessado por uma lança, caíra numa armadilha de caça, um grupo teve que retirar, foi uma prova extremamente dura. Os Comandos estão sediados no Luso. Zé Carlos conta-nos a operação Siroco, de certo modo foi aqui que mudou a sua vida, encontraram um grupo de guerrilheiros que lhes fez frente, apercebem-se da coragem de quem existe dentro do acampamento, capturaram alguns deles. Esta operação estendeu-se por todo o Leste angolano, desde o Lumege à fronteira com o Congo. As operações sucedem-se umas às outras. Há prisioneiros que olham impávidos os seus filhos mortos no solo. Há prisioneiros que se oferecem para levar os Comandos até aos acampamentos que dizem conhecer, após a destruição ficam aturdidos pelo contributo que deram àqueles que eram seus camaradas.
Dentro de toda esta singeleza, o Zé Carlos exalta a camaradagem, o espírito de corpo. Findo o tempo do Leste, são acantonados em Luanda, agora as operações serão feitas no Norte. Aceita voltar a consertar relógios, desmonta-os, lava-os, coloca as peças em cestinhas, repõe os mecanismos, fica contente quando os relógios voltam a trabalhar. Faz amizades no mundo civil. Mas houve um momento que lhe trouxe, com grande estrondo, o regresso à realidade, abruptamente deixou aquela vida pacata e recomeçaram as operações. Vemo-lo a caminho de Bonangongo. Com melancolia, vai-nos referindo os feridos e os mortos. Cinge-se a sua atividade militar meramente ao operacional, nunca deixa de fazer as operações mas paga os serviços de faxina que está incumbido.
Fez férias, veio visitar a família, mas também o camarada Carneiro, ficou deficiente, bem como a família do alferes Gomes. Com o seu trabalho de relojoeiro e a credibilidade daí resultante, chegou a pensar se não prosseguiria a sua vida civil a trabalhar com o senhor Cunha. Mas decidiu voltar para Espinho. Depois trocou uma vida ligada aos relógios por um emprego no Casino de Espinho, em Junho de 1974, passa a ser um trabalhador da noite, deitava-se no final do seu dia de trabalho à hora em que a maioria das pessoas acordava.
Aqui estão as suas memórias, graças ao RVCC. A formadora foi lendo página a página esta forma de crescer todos os dias na guerra, impressionou-se com as páginas de solidariedade, com a vivência pura e dura no mato angolano. Acontecera um milagre, as memórias de Zé Carlos tinham chegado ao fim, eram páginas de franqueza, desde menino a trabalhador de casino, pelo meio temos páginas de camaradagem, relatos de dor, registos de sacrífico e martírio. Uma história daquelas que podia caber dentro do poema de Fernando Pessoa O menino de sua mãe (tão jovem, que jovem era…”).
____________
Nota do editor
Último poste da série de 11 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15842: Notas de leitura (815): “A Marinha em África (1955-1975), Especificidades”, publicação da Academia da Marinha, 2014 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Quando ouvi falar neste livro de memórias de um Comando, alguém que, aos 64 anos, completava o 12.º ano pelo RVCC [Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências escolares e profissionais] e que correspondeu ao que a professora lhe pedia da sua "história de vida" com páginas singelas da sua meninice até ser trabalhador de casino, não resisti a ler um relato elaborado, parece-me, em condições francamente singulares no contexto da chamada literatura da guerra.
É um relato que nos prende pela indiscutível sinceridade, pela singeleza de quem corresponde ao pedido de um professor e conta tudo, sem jactância nem prosápia, tal qual foi desde a infância dura aos diferentes aprendizados, à formação para Comando, ao arrebol de operações no Leste e no Norte de Angola, aproveitando as horas vagas a consertar relógios.
Um abraço do
Mário
As memórias de um Comando, por Zé Carlos
Beja Santos
Estas memórias reservam-nos uma surpresa. O seu autor, Zé Carlos, ou Carlos Teixeira, ou Carlos Marques Teixeira, voluntariou-se para os Comandos, esteve em Angola, antes fora relojoeiro e é atualmente Presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Salas de Jogos. Aos 64 anos, completou o 12.º ano pelo RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) e foi durante este processo de aprendizagem que escreveu as memórias de um Comando. Tanto como me é dado saber, é o primeiro caso de incursão literária motivado por um processo escolar. Escreve a sua formadora:
“Este milagre aconteceu na sequência da primeira fase do seu envolvimento no RVCC, quando lhe foi solicitada a execução da sua história de vida. A aventura redundou numa profusão de páginas, cheias de passagens reveladoras de rara mestria ao nível do manuseio da palavra, da frase, do parágrafo, das estórias dentro da narrativa principal”.
São memórias em edição de autor (Zé Carlos Teixeira, Edita-Me, Editora, Lda., Porto, 2014).
O Zé Carlos cativa-nos pela singeleza, não esconde a admiração pela mãe que teve que lidar sozinha com a educação dos filhos. Trabalhou numa tabacaria até aos 12 anos, foi depois aprendiz de relojoeiro, seguiu para a fábrica de relógios Soumar, instalada na Rua Dezanove em Espinho. Era saudável mas muito franzino, inscreveu-se num ginásio, vivia fascinado pelos filmes do Hércules e no ginásio entusiasmou-se com o culturismo. O tempo passa, e o mancebo assenta praça no RI 5, estamos em 1969, a recruta não o entusiasmou, com um grupo de amigos inscreve-se para os Comandos. Inicia-se o processo da seleção: obstáculos, prova de boxe, seguem-se as eliminações, vertem-se lágrimas. Segue para Lamego. Na parada, é-lhes dito que iriam proceder a uma primeira chamada, os convocados iriam constituir as 24.ª e 25.ª Companhias de Comandos. Inicia-se a instrução militar e no dia 1 de Dezembro embarcam.
Estamos agora no Centro de Instrução de Comandos, ali vai aparecer o Comandante da Instrução, Gilberto Santos e Castro. Ordens súbitas para formar na parada, e depois da formatura relâmpago parte-se em caravana, acampa-se, desperta-se bem cedo e começam as provas duras, crosses à torreira do sol, um cantil de água por dia, era a prova da sede, preparação física e psicológica que não permitiam vacilações. A seguir a semana maluca em que tinham que fazer tudo ao contrário do que seria um dia normal, o dia começava às sete da tarde, com a noite cerrada havia a formatura para o pequeno-almoço, à meia-noite começava o almoço e às seis da manhã formatura para o jantar. São provas que desorientam os instruendos, correm pelos trilhos, chegam a uma clareira e ouvem-se disparos, entra-se na mata e ultrapassa-se obstáculos. E depois a prova dos mosquitos, uma noite pesadelo.
Em resumo, o Zé Carlos tirou o curso de Comandos em três meses e três dias, são encaminhados para as operações do Leste. As memórias começam a ganhar vivacidade. Vão numa operação na zona do Buçaco, aqui havia atividade de guerrilha bastante intensa. Encaminham-se para o acampamento quando se ouvem os gritos do Bernardo, tinha um pé atravessado por uma lança, caíra numa armadilha de caça, um grupo teve que retirar, foi uma prova extremamente dura. Os Comandos estão sediados no Luso. Zé Carlos conta-nos a operação Siroco, de certo modo foi aqui que mudou a sua vida, encontraram um grupo de guerrilheiros que lhes fez frente, apercebem-se da coragem de quem existe dentro do acampamento, capturaram alguns deles. Esta operação estendeu-se por todo o Leste angolano, desde o Lumege à fronteira com o Congo. As operações sucedem-se umas às outras. Há prisioneiros que olham impávidos os seus filhos mortos no solo. Há prisioneiros que se oferecem para levar os Comandos até aos acampamentos que dizem conhecer, após a destruição ficam aturdidos pelo contributo que deram àqueles que eram seus camaradas.
Dentro de toda esta singeleza, o Zé Carlos exalta a camaradagem, o espírito de corpo. Findo o tempo do Leste, são acantonados em Luanda, agora as operações serão feitas no Norte. Aceita voltar a consertar relógios, desmonta-os, lava-os, coloca as peças em cestinhas, repõe os mecanismos, fica contente quando os relógios voltam a trabalhar. Faz amizades no mundo civil. Mas houve um momento que lhe trouxe, com grande estrondo, o regresso à realidade, abruptamente deixou aquela vida pacata e recomeçaram as operações. Vemo-lo a caminho de Bonangongo. Com melancolia, vai-nos referindo os feridos e os mortos. Cinge-se a sua atividade militar meramente ao operacional, nunca deixa de fazer as operações mas paga os serviços de faxina que está incumbido.
Fez férias, veio visitar a família, mas também o camarada Carneiro, ficou deficiente, bem como a família do alferes Gomes. Com o seu trabalho de relojoeiro e a credibilidade daí resultante, chegou a pensar se não prosseguiria a sua vida civil a trabalhar com o senhor Cunha. Mas decidiu voltar para Espinho. Depois trocou uma vida ligada aos relógios por um emprego no Casino de Espinho, em Junho de 1974, passa a ser um trabalhador da noite, deitava-se no final do seu dia de trabalho à hora em que a maioria das pessoas acordava.
Aqui estão as suas memórias, graças ao RVCC. A formadora foi lendo página a página esta forma de crescer todos os dias na guerra, impressionou-se com as páginas de solidariedade, com a vivência pura e dura no mato angolano. Acontecera um milagre, as memórias de Zé Carlos tinham chegado ao fim, eram páginas de franqueza, desde menino a trabalhador de casino, pelo meio temos páginas de camaradagem, relatos de dor, registos de sacrífico e martírio. Uma história daquelas que podia caber dentro do poema de Fernando Pessoa O menino de sua mãe (tão jovem, que jovem era…”).
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15842: Notas de leitura (815): “A Marinha em África (1955-1975), Especificidades”, publicação da Academia da Marinha, 2014 (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P15852: Parabéns a você (1047): Leopoldo Correia, ex-Fur Mil Art da CART 564 (Guiné, 1963/65)
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15844: Parabéns a você (1045): Manuel Luís Rodrigues de Sousa, ex-Soldado At Inf do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 12 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15844: Parabéns a você (1045): Manuel Luís Rodrigues de Sousa, ex-Soldado At Inf do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)
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