Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74
1. MARIAMA
Abriu os olhos de espanto e de medo ao ver a minha Berliet, que entrava pela aldeia levantando nuvens de pó. Virou costas e correu no sentido contrário, abrigando-se nas pernas da mãe que, com alguma curiosidade, nos observava junto da sua cabana destruída.
Mariama era uma bajuda de palmo e meio. Tinha um tom de pele café com leite escuro, os olhos grandes e castanhos. O cabelo todo entrançado com amuletos nas pontas. Vestia uma blusa sem mangas e um pano fula enrolado à cintura. Um ronco, num dos tornozelos dos seus pés descalços, completava a vestimenta.
Foto 1> Juvenal Amado junto a um monte de tijolos já fabricados para utilizar na reconstrução de Bangacia
Parei a viatura, saltei dela com a minha arma e disse-lhe adeus, ao que ela respondeu escondendo-se, ainda mais, na roupa da mãe.
Íamos começar a reconstrução de Bangacia, que tinha sido destruída pelos guerrilheiros algum tempo atrás. Sempre achei que aquilo tinha sido um ataque por encomenda.
Assim, quando reconstruímos, fizemos algumas bem feitorias, entre as quais, casas mais espaçosas e telhados de zinco, em vez dos de capim, que tinham que ser mudados de vez em quando, posto médico e escola.
Foto 2> Bangacia depois do ataque
As alterações eram nitidamente do agrado da população. Fizeram-se vários grupos de construção. Sapadores, alguns elementos do Pel Rec que tinham conhecimentos de pedreiro e carpinteiro. Também vieram camaradas das Companhias Operacionais, onde pontuava o Saltinho como grupo mais numeroso.
Cada chefe de família tinha que produzir blocos de barro para utilizar na construção da nova casa, para a sua família. Assim amassavam o barro de cor cinzenta com palha misturada, enchiam um molde e os blocos dai resultantes iam sucessivamente ficando ao sol, até se tornarem duros.
Eu e os outros condutores de Berliet acarretávamos os blocos para o local escolhido pelos seus donos. Escusado será dizer que era preciso pôr ordem nos carregamentos, pois todos queriam ser os primeiros. Assim sempre que não tinha coluna para qualquer lado, lá estava eu logo de manhã a transportar os tijolos de barro, hora para uns, hora para outros.
Foto 3> Bangacia depois do ataque
Fotos: © Juvenal Amado (2008). Direitos reservados.
A Mariama espreitava sempre de longe. Eu acenava-lhe e, à hora do lanche, que fazíamos às 10 horas da manhã, oferecia-lhe com um gesto um pouco de pão. Acabava alguém por vir buscar para ela, mas ela nunca.
Como tinha sempre doce da ração de combate, passei a levar-lhe. Mas pouco e pouco as outras crianças, que andavam sempre à nossa volta, foram-na trazendo mais para perto.
Passado algum tempo, mal eu chegava, vinha a correr dar-me mão. Levava-me ao pé da mãe, mulher de talvez vinte e poucos anos, com dois filhos e a nossa heroína.
A idade dela era difícil de descobrir, tendo em conta os filhos e a vida dura das mulheres da Guiné que rapidamente perdiam a sua juventude.
O pai era mais velho e tinha outras mulheres, como era costume. A riqueza de um Homem Grande, media-se pelo números de mulheres e cabeças de gado.
O nome por que eu era conhecido, fazia-lhes confusão uma vez que Amado era muito parecido com Amadu ou Mamadu. Quando eu o mencionava, os Homens Grandes faziam uma expressão de gozo, metiam a mão à frente da cara Heeeeeiiiiiiiiiiiiii nosso cabo é manga de calabanta (1). Pensavam que eu estava a gozar com eles.
Mas a Mariana, mal eu chegava, ouvia logo a vozita dela a chamar, Almadu…. Almadu, ainda complicou mais o nome. Vinha à procura das guloseimas que no fundo se resumiam a pão, latas de cavala e sardinha. Todo o dia andava comigo para cima e para baixo, em cima da viatura mandando nos outros garotos. Era a mais pequenita de todos.
A reconstrução seguia em bom ritmo. Faziam-se as paredes exteriores dividia-se por dentro em quatro salas iguais, punha-se o vigamento e por último o telhado.
Sempre que se atingia uma fase, assistia-se a estranhas negociações. Os Homens Grandes ofereciam galinhas para serem os primeiros a terem as casas prontas, mas à medida que viam a mesma a ficar concluída, começavam a esquecerem-se das promessas.
Os Islamitas são bons negociadores. Então os camaradas diziam que não lhes acabavam a casa e mais, furavam-lhe os tectos todos. Com gestos simulavam um chuveiro, onde eles passariam a tomar banho. Com grande alarido as negociações começavam em cinco galinhas, mas por fim o Homem Grande só dava uma. E levava tempo a negociar.
Nós riamos pois para nós, naquele caso, era tudo uma brincadeira. Entretanto passei a ser recebido na casa da Mariama. Ela pedia-me tudo o que lhe diziam para pedir: Almadu parte (2) peso, Almadu parte lata etc, etc... Eu na medida do possível, lá lhe comprei uns chinelos coloridos, que ela nem para dormir os tirava.
A mãe torrava-me mancarra (3) numa panela de ferro e foi ali que provei a bianda (4) com molho da polpa que envolve a amêndoa da palmeira.
Um dia a mãe disse-me, mais por gestos de por fala, se eu queria levar a Mariama no Lisboa. Eu ri-me, fiquei embaraçado e disse-lhe que não era possível.
A idade, para além das dores nas pernas e nas costas, traz também por vezes alguma sabedoria e hoje, quando penso neste episódio, vejo com clareza a mensagem daquela mãe.
Trazer a pequenita comigo era livrá-la da mutilação (5), da miséria, do analfabetismo e de uma esperança de vida que não ultrapassa os quarenta anos. A Mariama terá, se chegou à pré-adolescência, passado por essa prova cruel do Fanado, terá sido vendida por dois sacos de mancarra e um de cola, para ser a 2ª ou 3ª mulher de um homem bem mais velho.
A mãe não terá tido consciência do alcance total do seu pedido. Mas estava no seu instinto de mulher tentar um futuro diferente para a filha.
A reconstrução de Bangacia ficou pronta. Foi um prazer ver aquelas casas alinhadas, com arruamentos largos os telhados brilhando a sol.
Passei a ir menos vezes à povoação, embora lá fosse sempre que ia às Duas Fontes. Levava latas de conservas e pão, que trocava por laranjas e mangas, com os garotos. Guardava sempre o melhor para a pequenina Mariama.
Um dia também me apareceu no quartel...
No momento que escrevo estas linhas, peço para que o destino lhe tenha reservado um futuro diferente das milhões de Mariamas que na Guiné sofrem com a pobreza e possivelmente não acreditam que possa haver cura para os seus males.
Juvenal Amado (*)
Notas do autor:
(1) Malandro.
(2) Dá-me um escudo.
(3) Amendoim.
(4) Arroz.
(5) “Fanado”: trata-se de uma prática horrível, onde se mutilam a meninas nos órgãos genitais. Por todo o Mundo Islâmico é praticado. Há no entanto algumas vozes de mulheres africanas, que fazem uma campanha muito corajosa contra esta prática, que as limita como mulheres inteiras, no pleno direito e uso, de todas as suas capacidades.
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2. Comentário de Luís Graça
A Mutilação Genital Feminina (MGF) pratica-se tradicionalmente em 28 países (da África subsariana onde se inclui a Guiné-Bissau, e nalguns países do Próximo Oriente). Não se pratica em todos os países muçulmanos. É bom que se diga que não é imposta pela religião muçulmana. Atinge também mulheres cristãs (coptas, no Egipto) e não tem nada a ver directamente com o Corão ou os preceitos islâmicos... Hoje em dia a MGF tende a ser criminalizada pelo Código Penal da maior parte dos países (incluindo o nosso).
De facto, o Corão não a impõe... Seria, de resto, anterior ao profeta Maomé, remontando ao tempo dos faraós do Egipto... Nos países bérberes,do norte de África (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia...) não se pratica... Nem na Indonésia, por exempo, que é o maior país muçulmamo do mundo (ou pratica-se apenas em pequenas comunidades)... Esta prática é ferozmente combatida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um grave problema de saúde pública, afectando todos os anos cerca de 3 milhões de meninas e de adolescentes...
Portugal também é hoje um país de risco, devido à existência de uma importante comunidade guineense, donde se destacam os fulas...
É bom que se diga e que saiba que a MGF ("circuncisão feminina" ou "fanado das mulheres") era tolerada no nosso tempo, em nome do relativismno cultural, do sucesso da política spinolista Por uma Guiné Melhor e dos superiores interesses da Nação... Duvido que Spínola e o seu Estado-Maior alguma vez se tivesse preocupado seriamente com a sorte das meninas da Guiné (fulas, mandingas, beafadas - os três principais grupos islamizados, onde se praticava e ainda pratica a MGF).
Há já vários postes sobre a MGF (a cerimónia do fanado não se resume à circuncisão femimina nem masculina, é um ritual de passagem, importante em certas sociedades tradicionais, e sem a submissão ao qual uma rapariga ou um rapaz não são socialmente aceites) (**).
L.G.
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Notas dos editores:
(*) Vd. último trabalho da série Estórias do Juvenal Amado, de 18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2551: Estórias do Juvenal Amado (3): Como hóspede do Xime (Juvenal Amado)
(**) Leiam o dossiê do Público sobre a MGF... A jornalista Sofia Branco tem feito uma excelente trabalho de investigação e divulgação sobre a MGF na Guiné-Bissau.
Vd. postes sobre a mutilação genital feminina publicados no nosso Blogue:
30 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2316: E as Nossas Palmas Vão Para... (2): Os que lutam, na Guiné-Bissau, contra a Mutilação Genital Feminina (MGF)
25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)
10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)
15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)
3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado
4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Uma história comovente. Os nossos soldados não faziam só a guerra. Ajudavam e viviam com as populações. A guerra no Ultramar foi uma guerra civil e as nossas tropas defendiam as populações dos ataques do inimigo.
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