segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2551: Estórias do Juvenal Amado (3): Como hóspede do Xime (Juvenal Amado)

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74


1. Em 9 de Fevereiro recebemos esta mensagem de Juvenal Amado:

Caros camaradas da Tabanca Grande,

Cá estou com mais uma recordação, ou pelo menos parte dela, pois datas nomes diluiram-se no tempo. Embora não seja difícil saber em que data foi o domingo de Pácoa de 1972, acho que não é importante para a narração (1).

Um abraço
Juvenal Amado


2. Como hóspede do Xime

Quando desembarquei da LDG pela primeira vez, junto com o meu Batalhão, debaixo de todo um aparato defensivo, com carros blindados e apoio aéreo, quase não dei pelo destacamento do Xime, tal era a minha atrapalhação.

Agora, uns meses passados, estou no mesmo cais a colocar as viaturas que vou entregar em Bissau, para o respectivo abate.

Olho para o destacamento que fica numa pequena elevação. É um monte de casernas de telhado de zinco, já algo ferrugento, e há também um edifício com telha de barro.

O arame farpado cerca o destacamento. O arame farpado no jardim usa-se muito por toda a Guiné. Está na moda.

Quando aceitei fazer a entrega do equipamento para abate em Bissau, nunca me passou pela cabeça que ia ficar à espera mais de um mês no Xime, até que conseguisse embarcar numa LDG, ou noutra embarcação, que subia e descia o Geba.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 1997 > Restos do famoso cais do Xime, no Rio Geba...

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.


Todos os camaradas que por cá andam sabem que, por mau que seja o nosso próprio destacamento, é sempre melhor do que estar noutro, onde nada temos.

No caso, o Xime é muito pior que Galomaro.

Entrego as minhas Guias de Marcha, para que me seja facultado alimentação e alojamento.
Não estou sozinho nesta empreitada. Vários camaradas, de vários pontos do Leste, ali amargam juntamente comigo. Uns tinham chegado antes, outros comigo e outros chegaram posteriormente.

Dormíamos todos no edifício com telha. É um armazém, temos uns colchões e chega. As refeições são tomadas por grupos, pois por razões de segurança não comemos todos ao mesmo tempo.

Lá em baixo no cais, as duas Berliet cada uma com um Unimog em cima, mais a GMC, que tenho de entregar, aguardam indiferentes ao encher e vazar do rio.

Numa dessas viaturas estão também minas, granadas de RPG e duas ou três armas, coisa que eu só venho a tomar conhecimento em Bissau.

Uma das minhas preocupações é como vou meter as viaturas dentro da embarcação, uma vez que elas não trabalhavam e por isso, nem travões têm. Os dias vão passando, os barcos atracam duas vezes por semana, mas eu não consigo embarcar.

Ontem sofremos um ataque. Uma granada de morteiro ou canhão sem recuo acertou perto da cozinha, mas sem causar danos de maior.


Como outros motivos de interesse, ouvíamos os ataques a outros destacamentos da área, o que acontece várias vezes:

- Olh, estão a embrulhar.

Pomo-nos de sobreaviso, pois por vezes o IN ataca o Xime para que o destacamento não possa prestar ajuda.

É Domingo de Páscoa, nisto chega uma coluna. Vem de Pirada.

Traz quatro caixões, e segundo se veio a saber, pelo soldado que também ficou connosco, a tragédia passou-se da seguinte forma:
- Um soldado tresloucado entrou no gabinete do capitão, com duas granadas descavilhadas e enquanto falava, abriu as mãos, morrendo ele, o capitão, um alferes e um furriel.

A guerra tinha feito mais vítimas, embora de forma inesperada.

O soldado que acompanhava as urnas, apanhou um enorme susto já em Bissau, pois a LDG ficou ao largo e nós fomos transportados para terra em pequenos barcos. Esta situação manteve-se durante dois dias e, quando finalmente atracou, as urnas já lá não estavam. Era um assunto de muita responsabilidade e, para mais, não foi fácil encontrá-las.

Mas voltando ao Xime. Esta situação tende a eternizar-se. Hoje é dia de vir a LDG e já combinei previamente, com um condutor, para me empurrar pela rampa abaixo, uma viatura de cada vez, preparo-me para sair dali.

Entraram as primeiras. Acho que é a minha oportunidade, faço sinal e engreno a marcha atrás, pois é a única forma de as parar, naquela louca descida. E lá vou eu.


Escusado será dizer que parto aquilo tudo e ainda esborracho os carros que já estão a bordo.
Uma manobra perigosa, mesmo sem saber, porque levo explosivos numa das viaturas.

O major 2.º Comandante do BCAÇ 3873 de Bambadinca, que assiste a toda a manobra, só me diz: - Já te safaste, não é?

Eu esbocei um sorriso, pois dificilmente me obrigariam a tirar o monte de destroços, que eu tinha acabado de lá pôr dentro.

Em Bissau, o representante do Batalhão trata do necessário para a entrega do material no enorme cemitério auto que se situa para os lados dos Adidos.

Estou ansioso para regressar a Galomaro. Uma coisa aprendi. Ir a Bissau não vale tamanho sacrifício.

Juvenal Amado
____________

Nota de CV:

(1) Vd. último poste desta série, de 7 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2510: Estórias do Juvenal Amado (2): O boato: nós, o Sardeira e a Maria Turra (J. Amado, CCS/BCAÇ 3873, Galomaro, 1972/74)

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