quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3688: Blogpoesia (29): Este ano não mandei cartões de boas festas a ninguém (Luís Graça)

Do editor do nosso blogue, Luís Graça, de férias na Madeira. Hoje, às 16h, na Ponta de São Lourenço, um dos pontos mais deslumbrantes da ilha... Com um chicoração para os meus queridos co-editores Carlos Vinhal e Vírgínio Briote, e para os demais amigos e camaradas da Guiné.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


Blogpoesia (29) > Este ano não mandei cartões de boas festas a ninguém
por Luís Graça


Eu poderia ter escrito:
Neste Natal
tornem o mundo mais bonito
com o vosso sorriso,
com as vossas gargalhadas,
com as vossas emoções à flor da pele…

e ter mandado um cartão
para os meus amigos
com votos de boas festas
nas mais desvairadas línguas do mundo:
Feliz Natal
Merry Christmas,
Joyeux Noël,
Feliz Navidad,
Buon Natale,
Frohe Weihnachten…


Mas não,
não mandei.
Este Natal não mandei
cartões de boas festas a ninguém.
Nem neste ano nem no ano passado.
Não me perguntem porquê…
Estou amuado
com o mundo,
com os senhores deste mundo
e do outro.
Mas este mundo e o outro
estão-se literalmente nas tintas
para comigo
e para com os meus amuos.

Pensando bem,
os meus amigos
(incluindo os meus camaradas da Guiné)
deviam merecer
um cartão de ocasião,
um bilhete postal,
ou um simples pedaço de papel de jornal,
com uma breve explicação.
Eles não me levariam a mal,
esboçariam até um sorriso de condescendência…

Queridos amigos:
Não é fácil
não cair nos chavões
repetidos até exaustão,
até à náusea,
nesta época
dita natalícia
em que a natureza,
a vida,
os bichos,
os homens,
os deuses
renascem…
Mas por outro lado
também é insuportável o silêncio,
a muralha da China do silêncio
às costas do mundo.
Mesmo que haja excessivo ruído
nestes dias que antecedem o Natal,
e o Ano Novo,
mesmo que haja crise
das comunicações,
é nos difícil não-comunicar.
É quase impossível não-comunicar.
É mesmo impossível não-comunicar.
De uma maneira ou doutra
acabamos por dizer aos outros, em geral
e aos amigos, em particular,
que estamos vivos,
que consumimos logo existimos,
que comunicamos logo pensamos,
que pensamos neles
e logo lhes mandamos
um cartão,
um e-card,
um msn,
um mail,
um SOS.
No fundo, queremos sentir e fazer sentir
que eles estão vivos,
que eles e nós estamos ainda vivos,
que somos uns felizardos
por estarmos vivos…
É talvez a altura do ano
em que a solidão dói mais,
custa mais,
custa mais a passar,
se é que algum dia passa.
Como se fora uma simples dor de dentes,
ou de ouvidos…
Mas não é.
Estás só no nascer e no morrer,
e episodicamente, ao longo da vida,
tens a ilusão de estar acompanhado.
Estás só nas grandes decisões
que tomas
ou que tomam por ti:
nascer,
morrer,
ir à guerra,
ter um filho…

Por isso hesitei
entre a palavra e o silêncio,
entre o pavor da palavra
e o horror do silêncio.
Gostaria de ter a certeza
que os amigos também se entendem
através do silêncio,
também sabem deixar espaços
para que a amizade se construa
e se consolide
no silêncio das noites
e dos dias
em que não damos
ou não queremos dar
sinais de vida uns aos outros.

Gosto
ou já gostei noutras natais,
da ideia de que o Natal
deveria ser todos os dias.
Mas, por outro lado, recuo
ante a perspectiva
de 365 dias de felicidade,
todos seguidos,
sem um dia de discórdia,
de conflitos,
de chatices,
de problemas,
de incidentes,
de acidentes,
de stresse,
de adrenalina,
de pequenos altos e baixos…

Como bom cristão
ou bom budista,
ou bom muçulmano
ou outra coisa qualquer
do catálogo das religiões,
manifestaria o desejo
de nos podermos organizar
nesse sentido,
ou seja, de virmos a ter Natal todos os dias.
Não no calendário ,
mas em nós mesmos,
nos nossos corpos e almas,
nas nossas casas,
colmeias,
casulos,
redes neuronais,
casernas,
ilhas,
ilhotas,
arquipélagos,
empresas,
cidades,
países,
mundos…

Dito isto,
hesitei entre o silêncio
e a palavra,
sabendo que a comunicação é uma armadilha,
mas mais forte é o apelo
dos sons,
dos tons,
dos sabores
e das cores,
do amor e da amizade
neste princípio de Inverno de 2008,
na despedida de mais um ano,
em que inexoravelmente ficamos mais velhos
e estamos mais sós
mas continuamos a ser
animais,
mamíferos,
primatas,
territoriais,
sociais,
circadianos
e heliocêntricos.

Não sei se foi mais um annus horribilis,
mas não foi um ano fácil,
lá isso não foi.
Como o não foi o 2007, o 2006 e por aí fora
para todos nós,
homens e mulheres
que procuramos manter habitável o planeta,
a começar por aqueles que não têm motivos,
grandes,
pequenos,
assim-assim,
para sorrir,
dar gargalhadas,
ter esperança
e ter alegria.
Não foi fácil viver
e sobreviver
em 2008.

Penso naqueles,
para quem o ano de 2008 não foi pai nem mãe,
mas padrasto e madrasta,
mesmo que o ano, coitado,
não tenha personalidade jurídica,
contrariamente ao meu patrão,
ou ao polícia do meu bairro,
e seja o bombo da festa das nossas frustações…

Neste Natal gostaria de poder enviar-vos
daqui,
uma palavra
doce,
quente,
amiga,
solidária,
fofa,
calorosa,
vistosa,
feliz,
em forma de bolo-rei,
ou de prato de rabanadas,
acabadas de fritar.
Ou de girândola de foguetes
sobre a baía do Funchal.

Mas sinto-me colado ao teclado,
vidrado,
bloqueado,
cristalizado,
enquanto lá fora
a neve coze as pencas do Norte
que são tradicionalmente comidas
com o bacalhau do Natal.
Ou chegam grandes paquetes
com gente,
com velhos e louros,
que vêm ver
a feérica cidade-presépio
mais a sul,
que não é seguramente
a cidade do Menino Jesus da minha infância.

Talvez antes
eu devesse convidar-vos
para se sentarem à mesa comigo
nesta Consoada
ou na passagem de ano.
Mesmo simbolicamente que fosse.
Fico na dúvida sobre o que é
física,
mental,
emocional,
social
e espiritualmente
mais correcto.

Este ano não vos mandei um cartão de boas festas
com os dizeres:
Neste Natal
tornem o mundo mais bonito
com o vosso sorriso,
com as vossas gargalhadas,
com as vossas emoções à flor da pele…

Não tive coragem,
não tive lata.
Ou se calhar não quis,
não tive pachorra,
não pude,
fiquei sem internet,
estive com gripe…
Poderia invocar
qualquer outra desculpa,
que seria sempre uma desculpa
esfarrapada…

Mesmo não podendo
ou não querendo,
ou querendo e não querendo ao mesmo tempo,
acabei por vos mandar
as minhas festas de Natal e Ano Novo.
Atabalhoadamente…
Que sejam ao menos
quentes e boas
…como as castanhas.

Madalena, 24 de Dezembro de 2007
Funchal, 31 de Dezembro de 2008

10 comentários:

Xico Allen disse...

E fazes muito bem, nós sabemos o q te vai na alma, nós sabemos o q sentes pelo nosso grupo de amigos.Tambem sabemos q a malta da Guiné (sem desprestigio pelos outros q passaram por Angola e Moçambique)é melhor q os outros.
Um abraço.

Unknown disse...

A vida é isso mesmo. Mas olha que ate tiveste sorte este ano. Não é que a coisa abanou aí ? Imagina se seria ainda mais forte... Provàvelmente até os tomates do sr abade não estavam mais naquele sítio do quintal.
Um grande abraço.
Vive um dia de cada vez. Faz como eu.Ós pois logo se vê.
PS.de PS e não de PS: Falar e escrever é quebrar monotonias. Neste momento só eu sei como estou e por isso estou cheio de blablabla. E não é de champanhe.

Paulo disse...

FELIZ 2009.
ABRAÇO
PAULO

Anónimo disse...

Que mais pode ser dito? Revejo-me nele.
Obrigado por este escrito, é soberbo, obrigado pela criação deste local e obrigado por me deixarem partilhá-lo.
Tenho dito.
BSardinha

Anónimo disse...

Foi o mais lindo cartão de Boas Festas que recebi, mesmo depois de ter tido o prazer de no próprio dia de Natal,te poder abraçar e mutuamente nos desejarmos Boas Festas.

Fraternal abraço e que nunca te falte inspiração.

Anónimo disse...

Este ano não mandaste cartões de Boas Festas mas a tua bela mensagem deve ter sido recebida por milhares.
Obrigado Luís por neste final de ano teres ainda tempo para nos oferecer estas bonitas palavras com um encaixe que tu bem sabes fazer.
Para todos votos de um Bom 2009
Colaço

Anónimo disse...

Não Luís, tu estás enganado!
Tu "mandaste" um cartão de Boas Festas a toda a gente. Eu senti isso!
Obrigado por estas tuas palavras pois estas como outras tocam sempre no meu fundo.
Um Bom Ano para ti e teus.
Mantém essa forma de estar no mundo. A gente gosta; a gente gosta da tua poesia, das tuas palvras. Faz-nos bem.
Bonito começar o ano com esta tua poesia.
Um abraço.

Anónimo disse...

Nem precisas de mandar cartões de Boas Festas, Luís, pois as maravilhosas palavras agora colocadas valem mais do que todos os cartões que poderias enviar.
Apenas queremos que continues a maravilhar-nos com a tua prosa e poesia sempre tão bem colocada a propósito.
Um abraço do coração
Jorge Picado

António Matos disse...

Caro Luis,
Não gostaria de escolher as palavras para este comentário, antes deixá-las brotar na cadência do seu aparecimento no neurónio que as transmite aos dedos que teclam e em tempo oportuno para não se perderem.
A verdade é que o teu cartão de boas festas que teimas em dizer que não mandaste mas que eu recebi, vem tão impregnado de sabedoria que não ficaria bem comigo mesmo se, pelo menos, não te manifestasse a dificuldade que senti em retribuir esta tua prenda de Natal.
Permite que simpatize particularmente com a tua dissertação sobre a solidão.
Fizeste-me recordar o meu Pai que ao falecer, fê-lo sózinho, alta madrugada, num quarto de hospital, entubado, com frio, aterrado com o pavor daquela solidão, enfim, com tudo o que em vida o perturbava profundamente.
"The show must go on" é o lema desta vida vidinha e a globalização das mentalidades trouxe-nos, a par de outras globalizações, momentos de indecisão moral e ética tremendos.
O Natal que referes de que gostavas no passado é de facto muito diferente do actual.
A missa do galo foi substituída em muitos lugares por programas televisivos de maior ou menor mau gosto e transmitidos em grandes displays à frente dos quais as famílias se extasiam;
A surpresa das prendas foi substituída pelas várias deslocações ao shopping, com as crianças de mão dada, para comprar o que elas dizem ;
O Pai Natal deixou de descer pela chaminé para aparecer fugazmente à porta onde deixou um montão de robots, consolas de PC, sofisticadas imitações de armas, etc.;
As famílias vão-se destruturando com a ausência deste ou daquele elemento que optou por ir ver como se passam as coisas em Nova Iorque, Paris ou Londres fruto das "low costs"
O próprio padre passou a ser olhado muitas vezes e por culpa própria, não como aquela figura carismática da ocasião que esbanjava sentimentos de respeitabilidade, honorabilidade, dádiva ao próximo, etc., para a ele se colar a imagem moderna de permissividade ao pecado, tantos são os exemplos ligados à homossexualidade e à pedofilia .
Resta-nos a solidariedade que se transmite por Homens bons a quem muitas vezes a experiência da guerra lhes abriu a poesia da vida e da morte e onde pontuam os Luises Graças para gaudio dos seus leitores.
Obrigado Luis e que tenhas um bom 2009 !
António Matos

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Obrigado por este soberbo poema de Natal!