sábado, 31 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964

Cristóvão de Aguiar, em 27 de Novembro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella, na apresentação da nova edição do seu livro Braço Tatuado.


Foto: José Martins (2008)


Luís CRISTOVÃO Dias de AGUIAR, nasceu em São Miguel, Açores, em 1940. Frequentou Filosofia Germânica, em Coimbra, curso que interrompeu para tirar o de oficiais milicianos. Em 1965 partiu para a Guiné. Regressado em 1967, depois de concluir o curso, deu aulas em Leiria e regressou a Coimbra para apresentar a sua tese de licenciatura, "O Puritanismo e a Letra Escarlate".

Foi redactor da revista Vértice, colaborador, depois do 25 de Abril, da Emissora Nacional com a "Rubrica da Imprensa Regional" e leitor de Língua Inglesa da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra.

A experiência da guerra forneceu-lhe material para um livro, incluído inicialmente em Ciclone de Setembro (1985), de que era uma das partes, e autonomizado mais tarde com o título O Braço Tatuado (1990).

Da sua obra, por diversas vezes premiada, destaca-se: Raiz Comovida I – A Semente e a Selva (1978); Relação de Bordo – Diário ou nem Tanto ou Talvez Muito Mais (1964-1988); Raiz Comovida – Trilogia Romanesca (2003); Trasfega – Casos e Contos (2003); Nova Relação de Bordo – Diário ou nem Tanto ou Talvez Muito Mais (2004) e Marilha (2005). (Adaptado por José Martins da badana do livro Braço Tatuado - edição de 2007 da D. Quixote).
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Iniciamos hoje a apresentação do Diário de Guerra, do Cristóvão de Aguiar, que nos foi enviado por intermédio do José Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70). Revisão e fixação do texto: vb


Diário de Guerra
Cristóvão de Aguiar


1964

Janeiro, 26Acabei de chegar.

O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto aban­donado.

Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Can­dal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fi­quei na ca­serna número quinze, no ter­ceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.

Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamen­te a demons­tração de um habilidoso fur­riel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, de­bai­xo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sá­bias instruções sobre disci­plina, la­trocínio de quartel e obediência.
Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra ses­senta e quatro. De­pois de ar­ru­mar as minhas coisas e de mu­dar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Ca­margo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azei­tona.

Os meus passos naqueles tú­neis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecía­mos dois fan­tasmas navegando por den­tro das bo­tas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma ca­serna. Ele ficou na um, a an­tiga capela, junta­mente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais acon­che­gada das três. Foi-me apre­sentado pelo Ca­margo. Fazemos um molhi­nho de soli­darie­dade.




Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, e onde se integrava o Paulo Raposo, futuro Alff Mil da CCAÇ 2405 (Mansoa e Dulombi, 1968/70).

Fonte: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados

Janeiro, 27Esta noite não preguei olho.

Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos re­cintos das festas para anunciar a criança perdida.

Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de far­dado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela pri­meira vez. Estava ainda na pri­meira classe atrasada...

Mafra, Janeiro, 28Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira com­panhia de in­s­tru­ção.

O comandante da companhia, um tenente goês, é muito apa­ratoso nas con­ti­nên­cias. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!

O coman­dante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Ter­ceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pro­núncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a to­dos no mesmo es­tado. Já esteve em An­gola cum­prindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.

Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a dis­tin­guir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos supe­ri­o­res trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos infe­riores, por nosso. O cade­te Carva­lhosa, que tira aponta­mentos do que ouve ao al­feres e está sempre muito atento à li­ção, como se estivesse nos bancos da Uni­versidade, passou a tratar o cabo lateiro da arre­cadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Nin­guém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos com­por­tar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.

Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.

E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque as­sim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.

Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.

An­tes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medi­cina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso prin­cipiei a escrever ainda na República, a semana passada.

Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma res­posta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil che­gar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...

Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significati­vos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.

O nosso alfe­res pegou no manual e principiou a ler: Temos, por exemplo, D. Duarte de Almeida, o decepado, o porta-bandeira ou alferes, que ofereceu com o seu gesto heróico um verdadeira lição de patriótico amor, abnegação e audácia.


Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a pro­pósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos...

Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se di­vide em dez partes, a saber...

O alferes ia chamando os cadetes por or­dem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."

Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dis­pensa do recolher, nem da ter­ceira re­fei­ção. Foi pre­ciso fazer uma for­matura de saída. O oficial de dia veio-nos pas­sar mi­nu­ciosa re­vista. À barba, ao ca­belo, à graxa das botas ou dos sapa­tos da or­dem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois cama­radas não fo­ram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arra­nhar.

Voltámos ao quartel an­tes da terceira refeição. Como estava a chuvis­car, fez-se a forma­tura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas mili­tares. Na forma­tura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargen­to de dia lia a ordem, fazia a cha­mada e distribuía o correio.

O Magalhães rece­beu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sar­gento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Mada­lena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter man­dado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.

(a continuar)

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Notas de vb:

1. Sublinhados do editor.

2. Artigos relacionados em

29 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3542: Memórias literárias da Guerra Colonial (11): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República. (José Martins)

25 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3515: Memórias literárias da Guerra Colonial (10): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República, 5ª Feira, às 19h

1 comentário:

Anónimo disse...

Estes textos a que chamam diário de Guerra são do livro Relação de Bordo de Cristóvão de Aguiar. Premiado do o Prémio APE.
Grande livro!

Se financiarem uma estátua fála-ei com muita honra. A Guiné, realmente foi pior...