Foto: José Martins (2008)
Luís CRISTOVÃO Dias de AGUIAR, nasceu em São Miguel, Açores, em 1940. Frequentou Filosofia Germânica, em Coimbra, curso que interrompeu para tirar o de oficiais milicianos. Em 1965 partiu para a Guiné. Regressado em 1967, depois de concluir o curso, deu aulas em Leiria e regressou a Coimbra para apresentar a sua tese de licenciatura, "O Puritanismo e a Letra Escarlate".
Foi redactor da revista Vértice, colaborador, depois do 25 de Abril, da Emissora Nacional com a "Rubrica da Imprensa Regional" e leitor de Língua Inglesa da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra.
A experiência da guerra forneceu-lhe material para um livro, incluído inicialmente em Ciclone de Setembro (1985), de que era uma das partes, e autonomizado mais tarde com o título O Braço Tatuado (1990).
Da sua obra, por diversas vezes premiada, destaca-se: Raiz Comovida I – A Semente e a Selva (1978); Relação de Bordo – Diário ou nem Tanto ou Talvez Muito Mais (1964-1988); Raiz Comovida – Trilogia Romanesca (2003); Trasfega – Casos e Contos (2003); Nova Relação de Bordo – Diário ou nem Tanto ou Talvez Muito Mais (2004) e Marilha (2005). (Adaptado por José Martins da badana do livro Braço Tatuado - edição de 2007 da D. Quixote).
__________
Iniciamos hoje a apresentação do Diário de Guerra, do Cristóvão de Aguiar, que nos foi enviado por intermédio do José Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70). Revisão e fixação do texto: vb
Diário de Guerra
Cristóvão de Aguiar
1964
Janeiro, 26 – Acabei de chegar.
O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado.
Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Candal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fiquei na caserna número quinze, no terceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.
Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamente a demonstração de um habilidoso furriel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, debaixo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sábias instruções sobre disciplina, latrocínio de quartel e obediência.
Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro. Depois de arrumar as minhas coisas e de mudar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Camargo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azeitona.
Os meus passos naqueles túneis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecíamos dois fantasmas navegando por dentro das botas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma caserna. Ele ficou na um, a antiga capela, juntamente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais aconchegada das três. Foi-me apresentado pelo Camargo. Fazemos um molhinho de solidariedade.
Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, e onde se integrava o Paulo Raposo, futuro Alff Mil da CCAÇ 2405 (Mansoa e Dulombi, 1968/70).
Fonte: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados
Janeiro, 27 – Esta noite não preguei olho.
Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos recintos das festas para anunciar a criança perdida.
Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de fardado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela primeira vez. Estava ainda na primeira classe atrasada...
Mafra, Janeiro, 28 – Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira companhia de instrução.
O comandante da companhia, um tenente goês, é muito aparatoso nas continências. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!
O comandante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Terceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pronúncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a todos no mesmo estado. Já esteve em Angola cumprindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.
Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a distinguir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos superiores trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos inferiores, por nosso. O cadete Carvalhosa, que tira apontamentos do que ouve ao alferes e está sempre muito atento à lição, como se estivesse nos bancos da Universidade, passou a tratar o cabo lateiro da arrecadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Ninguém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos comportar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.
Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.
E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque assim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.
Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.
Antes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medicina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso principiei a escrever ainda na República, a semana passada.
Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma resposta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil chegar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...
Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significativos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.
O nosso alferes pegou no manual e principiou a ler: Temos, por exemplo, D. Duarte de Almeida, o decepado, o porta-bandeira ou alferes, que ofereceu com o seu gesto heróico um verdadeira lição de patriótico amor, abnegação e audácia.
Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a propósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos...
Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se divide em dez partes, a saber...
O alferes ia chamando os cadetes por ordem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."
Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dispensa do recolher, nem da terceira refeição. Foi preciso fazer uma formatura de saída. O oficial de dia veio-nos passar minuciosa revista. À barba, ao cabelo, à graxa das botas ou dos sapatos da ordem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois camaradas não foram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arranhar.
Voltámos ao quartel antes da terceira refeição. Como estava a chuviscar, fez-se a formatura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas militares. Na formatura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargento de dia lia a ordem, fazia a chamada e distribuía o correio.
O Magalhães recebeu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sargento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Madalena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter mandado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.
(a continuar)
__________
Notas de vb:
1. Sublinhados do editor.
2. Artigos relacionados em
29 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3542: Memórias literárias da Guerra Colonial (11): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República. (José Martins)
25 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3515: Memórias literárias da Guerra Colonial (10): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República, 5ª Feira, às 19h
1 comentário:
Estes textos a que chamam diário de Guerra são do livro Relação de Bordo de Cristóvão de Aguiar. Premiado do o Prémio APE.
Grande livro!
Se financiarem uma estátua fála-ei com muita honra. A Guiné, realmente foi pior...
Enviar um comentário