sábado, 11 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4670: Álbum de memórias de Bafatá, 1968/70 (1): Bafatá, álbum de memórias (Regina Gouveia)


1. No decorrer do IV Encontro Nacional do nosso blogue, e m 20 de Junho passado, na Quinta do Paul, Ortigosa, Luís Graça convidou o novo membro desta nossa Tabanca Grande, Regina Gouveia, esposa do nosso Camarada Fernando Gouveia, que cumpriu a sua comissão em Bafatá, 1968/70, como Alf Mil Pel Rec Inf, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, que na altura era comandado pelo Cor Hélio Felgas (já falecido), a escrever, para o nosso blogue, histórias desse tempo... aqui está a primeira:


Foi o que a Regina fez e aqui está mais um excelente e bem contada história:


Caro Luís Graça,

As partidas que a Internet nos prega…

Fiquei perfeitamente estupefacta ao ver o meu currículo exposto no Blog. Nele não consta, nem podia constar, qualquer actividade minha no âmbito da fotografia. Esse pelouro é do Fernando…

Em tempos escrevi um conto baseado nas minhas vivências na Guiné. Agora, fazendo o percurso contrário, escrevi um texto, depurando do conto apenas as referidas vivências. É o que agora te envio.

Um abraço.

A Regina, na tabanca da Rocha em Bafatá onde morámos - 1969

Bafatá: álbum de memórias

Agosto de 1969. Sobrevoo o Atlântico com destino a Bissau. O meu baptismo de voo. O avião fez escala no Sal e ainda tenho a sensação da extrema humidade que me envolveu quando saí do avião.

Agora, por sobre as nuvens, vejo o sol nascer. Gostaria de ter “engenho e arte” para descrever quão fantástico é este espectáculo.

Cá estou eu, de novo perdida nas minhas longínquas recordações.

É certo que recordo muitas vezes as minhas duas idas à Guiné. Por vezes, basta-me olhar para o pano, em tons de azul, que tenho na parede ao cimo das escadas que levam ao 2º andar, ou para as fotos no álbum, ou ainda para a bilha de Teixeira Pinto ou para o cesto de Contubuel. Mas desta vez as lembranças invadiram-me com uma intensidade inusitada.

Bilha de Teixeira Pinto

Cesto de Contuboel com a árvore de Natal de 1969 na nossa casa em Bafatá


O avião acaba de aterrar. Já vejo o Fernando, na sua farda de alferes, alferes miliciano por força da guerra cujo espectro paira, como espada de Demóstenes, sobre a cabeça de todos os jovens varões.

Pensou ainda em fugir, como tantos outros fizeram, mas foi adiando a decisão e acabou por se ver embarcado no navio Ana Mafalda com destino à Guiné. Felizmente foi mobilizado para Bafatá, onde praticamente não havia guerra, embora o obus de Piche, que se ouvia ribombar todos os dias, se encarregasse de lembrar quão sem sentido era ali a palavra paz.

E parece-me ouvir o obus de Piche ao pôr do sol e, simultaneamente, recordo-me da indescritível beleza do pôr do sol naquelas paragens.

Olho, estupefacta, o chão do aeroporto. Nacarado pelas inúmeras asas de insectos efémeros cuja vida cessou durante a noite.

Ouço, junto de mim, uma voz arrastada: “Parte um peso”. E vejo a meu lado, envolvido num pano de tom cinza, um velho de rosto muito enrugado mas simultaneamente muito belo, que me estende a mão. O Fernando explica-me o sentido da frase. Em vez de me pedir para lhe dar uma moeda de um peso, pede-me para a repartir com ele. Bonita expressão.

No Ramadão junto à Mesquita

A beleza do rosto deste velho fui encontrá-la em outros rostos que revejo, folheando o álbum de fotografias. Vejo também jovens e crianças, mulheres envoltas em panos coloridos, transportando os filhos nas costas, homens deitados no chão, voltados para Meca, nas horas de oração. Fotografias belíssimas em que o Fernando, amante de fotografia, conseguiu captar como que a beleza visível e a invisível, o explícito e o implícito.

Viajo agora de Bissau para Bafatá num Dakota velhíssimo tendo vários companheiros de viagem, alguns um pouco estranhos como galináceos e cabritos.

Continuo a folhear o álbum. Um conjunto de mulheres jovens que, envoltas em panos dum colorido exuberante transportam, sobre a cabeça, recipientes com água.

Estou na tabanca da Ponte Nova. Vim ver a arte de colorir os panos. Ali está um belíssimo em tons de azul. É mesmo aquele que eu quero. Já tem destino, a parede ao fundo das escadas que levam ao 2º andar.

Pano tingido na tabanca da Ponte Nova em Bafatá

E de novo as imagens no álbum. Imagens belíssimas do pôr do sol. E eis que surgem a Angelina, o Carlos, o Domingos e o Adrião.

O Dakota aterra na pista onde se encontram várias pessoas. Desperta-me a atenção o olhar curioso de algumas crianças de sorriso brilhante. Tento conversar com elas mas recuam timidamente e acabam por fugir embora, furtivamente, se voltem para olhar.

Chego a casa. Simples mas acolhedora. Um pequeno jardim à frente, com vários mangueiros. Três degraus e eis uma varanda coberta, a todo o correr da fachada, e uma porta de acesso ao interior.

A nossa casa, mesmo em frente ao café do Senhor Teófilo em Bafatá

Há anos, durante a campanha eleitoral que levou Kumba Yalá à presidência, vi a casa numa reportagem da TV. Os mangueiros frondosos, as paredes já desbotadas e a varanda, essa apinhada de gente.

Chego à varanda, vejo algumas crianças a espreitar do outro lado da rua. Parecem-me as mesmas que ontem estavam na pista quando o Dakota aterrou. De novo tento entabular uma conversa com elas, mas a tentativa é infrutífera e acabam por se afastar, olhando furtivamente para trás.

Como justificar este comportamento? Apenas timidez ou sentem que de certa forma represento o colonizador indesejável, o militar que vem combater o libertador? Que pensarão estas crianças da guerra?

A fotografia à porta do café do Infali, a Transmontana.

Na esplanada do Transmontana com o empregado Enfali em Bafatá

Nha na bai tomá café?

Mas isso foi algum tempo depois, quando a timidez deu lugar à confiança que lhes permitia saudar-me e dar-me conta dos seus passos, ao passarem na rua, muitas vezes a caminho da fonte.

Nó na bai fonti.

Outras vezes, se nada havia para fazer, abriam o portão, entravam no quintal, subiam as escadas de acesso à varanda, sentavam-se no chão e esperavam que a porta se abrisse e eu aparecesse umas vezes de mãos vazias, outras com um pequeno agrado como uma guloseima ou um lápis.

Nó na bai papia com bó.

Quando lhes pedi para me ensinarem algumas palavras e frases em crioulo olharam-me sorrindo com um ar desconfiado, um pouco malicioso. Mas, pouco a pouco, começaram a levar a sério a sua tarefa. E assim fui aprendendo alguma fonologia, possivelmente um pouco adulterada pela minha interpretação dos seus sons. Se as crianças soubessem escrever teria sido mais fácil pois a grafia ajudaria a melhor compreender a fonética.

De tal modo se empenhavam na sua tarefa que chegavam a dizer-me que não me entendiam para me forçarem a tentar falar a sua língua.

Mi cá ôbi português.

Sei que tenho algures uma cassete com gravações das suas conversas. Mas onde estará ela, passados tantos anos?

Bô na disquice tudo…

Ouço a vozita na gravação. Um pouco agastado porque já não me recordava de algumas palavras que tinha aprendido na véspera. Qual deles seria? A voz da Angelina é fácil de distinguir, mas as outras… Já passaram tantos anos…No entanto, tenho quase a certeza que esta é a voz do Carlos.

Tão pequeninos ainda. As suas idades rondavam os seis, sete anos.

De novo no avião, mas de regresso à metrópole. Acabaram as minhas férias. Comigo viajam o pano destinado à parede ao cimo das escadas que levam ao 2º andar, a bilha de Teixeira Pinto e o cesto de Contubuel , ofertas do Fernando.

O sentimento que agora me envolve é o oposto do que me envolvia na viagem que há dois meses fiz em sentido contrário. Parto com tristeza, já cheia de saudades. Do Fernando, obviamente, mas também da terra, das suas cores, dos seus cheiros, dos seus sabores e das crianças. Fazem-me já falta o seu riso cristalino, a algaraviada das suas vozes, a alegria da sua infância.

Foram despedir-se de mim à pista. Já no ar, ainda via os seus bracitos oscilando, dizendo adeus. Mas estavam com um ar triste, embora lhes dissesse que voltaria no Natal.

Cá jubi, cá obi, cá miste , na jubi, na obi, na miste.

No tempo que mediou entre a partida e o regresso, embrenhada no trabalho, não tive tempo para pensar nas lições de crioulo que esperava retomar quando chegasse.

Hoje já pouco recordo do crioulo que aprendi. Ao ouvir a cassete já não entendo o significado de muitas frases. Mas, curiosamente, surgiram-me com toda a nitidez os rostitos das crianças. É terrível este sentido inexorável do tempo, do mesmo modo que é fantástica esta capacidade selectiva da memória que nos permite esquecer tantas coisas e simultaneamente recordar tantas outras que apesar de tão distantes no tempo, nos surgem como se estivessem a ocorrer precisamente no momento.

O Dakota prepara-se de novo para aterrar na pista de Bafatá. As crianças sabem da minha chegada, pois quase diariamente inquiriam o Fernando.

Desço do avião e correm para mim numa alegria contagiante. Não consigo evitar que duas lágrimas teimosas me escorram pelo rosto.

Vejo que as crianças ficam um pouco confusas ao ver-me chorar. Abraço-me então a cada uma delas e digo-lhes no meu crioulo tão deficiente: Mi gosta Angelina, mi gosta Adrião, mi gosta Carlos, mi gosta Domingos.

Dirijo-me para casa e as crianças acompanham-me. Retiro do saco de viagem umas lembranças que trouxe: uns lápis, umas borrachas, uns apara-lápis, uns cadernos e uns chocolates. Reflicto sobre a pobreza das minhas lembranças quando as comparo com a dádiva do seu riso cristalino, dum valor infinitamente superior.

Recordo a expressão “parte um peso” que tantas vezes ouvi, após aquela primeira vez, ao desembarcar em Bissau. Expressão bonita…

Que “parti” eu com eles? Afectos, por certo, mas recebi muito mais que aquilo que dei. Jamais eu poderei esquecer aquelas crianças.

A cassete chegou ao fim. Fecho o álbum e a imagem das crianças apresenta-se-me com toda a nitidez. Parece-me ouvir as suas vozes e o seu riso de cristal. Que será feito delas hoje? Por certo nenhuma se lembrará de mim. Foram efémeras as lembranças que lhes dei. Eu, pelo contrário, recordo-as com a nitidez nos seus seis, sete anos.

Que será feito delas? Serão por certo pais e até avós, dado que geralmente casam muito novos. Ainda viverão em Bafatá?

Ainda viverão? E quando me faço esta pergunta sinto um enorme aperto no peito.

Fotos e legendas: Regina Gouveia (2009). Direitos reservados.

Regina Gouveia
____________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da autora em:

6 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Regina,como é bela a tua descrição,ao lê-la a lágrima apareceu no canto do olho,sim porque ela,é tão simples como comovente, só quem não conviveu com aquelas crianças pode ficar indiferente,Obrigado.
José Nunes
Beng447
Brá,68/70

Anónimo disse...

Obrigada Regina. Lindíssima história, são histórias vividas e sentidas por quem andou pela Guiné, que me leva a gostar imenso deste Blogue.
Um abraço
Filomena

Carlos Vinhal disse...

Obrigado Regina
Um beijinho
Carlos Vinhal

Ze Teixeira disse...

Obrigado Regina.Fizeste-me voltar a Mampatá para junto das minhas crianças, da Maimuna e tantas outras que disputavam os dedos da s minhas mãos. Cenas que ja tive a felicidade de reviver erm 2005 e 2008. Mas aqueles olhares ! perseguem-me todos os dias.
Zé Teixeira

Anónimo disse...

Obrigado Regina
Palavras simples, singelas, mas duma beleza comovente, que refletem a ternura de quem sentiu aqueles pequenos meninos e meninas, tão alegres e despojados praticamente de tudo.
Mais uma vez obrigado por tão gratas e comoventes recordações que me foram proporcionadas.
Jorge Picado

MANUEL MAIA disse...

DEPOIS DE UMA ABERTURA DO "TELEJORNAL" DE ALTÍSSIMA QUALIDADE,TODAS AS SUAS "NOTÍCIAS" TÊM,À GUIZA DESTA, CERTIFICADO NA OURELA,ESTOU CERTO...

O SEU REVIVER DE NOMES,CREIA,É PRECISAMENTE O MEU,E PROVAVELMENTE
O DE TODOS QUANTOS PELA GUINÉ PASSAMOS, FOSSE EM BAFATÁ,BISSAU,
CANTANHEZ,ENFIM POR TODO O LADO.

SE NÃO SE CHAMAVAM CARLOS,ADRIÃO ANGELINA OU DOMINGOS, SERIAM MAMADÚ,SILEIBA,MAURÍCIO,QUINTA,
SEGUNDA,"SACANA"( O PEQUENINO A QUEM CARINHOSAMENTE CHAMÁVAMOS SACANA E QUE ERA, ESTOU CERTO, POSSUIDOR DE UM QI ALTÍSSIMO...)
QUINTA,SEGUNDA,FAÍSCA ENFIM,TANTOS...

SERÁ QUE ESTARÃO TODOS VIVOS?

SEI, DE FONTE SEGURA, QUE ALGUNS
DELES FORAM BRUTALMENTE ASSASSINADOS POR TEREM CONVIVIDO COM "PESSOAL BRANCO".

UM DIA A HISTÓRIA HÁ-DE JULGAR OS SEUS CRIMINOSOS,GUINÉUS E PORTUGUESES QUE POR OMISSÃO,NADA FIZERAM PARA SALVAGUARDAR AQUELAS VIDAS CUJO UNICO CRIME FOI A FEITURA DE PEQUENOS SERVIÇOS AOS MILITARES QUE LHES DAVAM SOBRAS DA SUA COMIDA.

ESSA GENTE ACORDA TODOS OS DIAS(ALGUNS TAMBÉM JÁ PARTIRAM...)SEM PROBLEMAS DE CONSCIÊNCIA,DISCUTE OS PROBLEMAS DA BOLSA,DEBITA,OU DEBITOU, UMAS ATOARDAS POLÍTICAS PARA A COMUNICAÇÃO SOCIAL, SEM UM PINGO DE VERGONHA,SEM UM REBATE DE CONSCIÊNCIA.
ESSA GENTE TEM NETOS A QUEM ESCONDERÁ O NOJO DO SEU COMPORTAMENTO DE ENTÃO.

UNS ERAM MILITARES E OUTROS CIVIS LAICOS OU NÃO...

OBRIGADO CRISTINA(DESCULPE A LIGEIREZA DO TRATAMENTO) POR SER MAIS ALGUÉM A INTERROGAR-SE SOBRE O QUE LHES TERÁ ACONTECIDO...

MUITO GRATO UMA VEZ MAIS.

MANUEL MAIA