sexta-feira, 12 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5982: O Xico pagou à Terra; à Terra pagaremos todos (José Brás)

1. Mensagem de José Brás (ex-Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 8 de Março de 2010:

Carlos amigo
Na sequência das notícias sobre o acidente com uma aeronave na pista do Ciborro, durante algum tempo chegou a pensar-se no interior da Tabanca Grande (e não só) que eu estaria envolvido nele*.
Isso bastou para que chovessem telefonemas e e-mails de camaradas que queriam saber de mim, e mesmo depois de esclarecido que não era eu mas um amigo e um conhecido, continuo a receber mensagens, agora reflectindo a tristeza por ter eu perdido um amigo, mas felizes (a vida é isto) por não ter sido eu.

Naturalmente que quero agradecer a todos esses camaradas e aos que não me contactaram porque souberam dos factos, e nada melhor do que o fazer através do blogue, se os camaradas editores assim o entenderem.

Voar não é uma exercício mais perigoso do que tantos outros que quotidianamente a maioria de nós pratica. Exige, sim, grande rigor no cumprimento de regras conhecidas dos pilotos no que se refere à máquina, ao espaço de operação e ao próprio piloto.
Entretanto, a rotina e a auto-confiança, por vezes, levam-nos a descurar partes das regras instituídas.
Outras vezes, sobretudo na fase pioneira da aviação ultraleve, abusou-se muito do conhecimento (ou da falta dele), indo para o ar apenas por gozo.

Do meu próximo livro, faz parte uma pequena abordagem a esta questão, e, também se os editores o acharem oportuno, ofereceria aos camaradas em antecipação, tal texto que, da guerra colonial tem apenas o facto de, escrevente e protagonista trágico, terem, em épocas e locais diferentes, protagonizaram essa parte da história pátria.

Obrigado a todos e um abraço fraterno.
José Brás


eu sou devedor à Terra
a Terra me está devendo
a Terra paga-me em vida
eu pago à Terra em morrendo


E nascemos todos com o destino trágico e inexorável, disse eu, incapaz de chorar a morte do Xico.
Nascemos, e ao primeiro vagido a conta-corrente agarra-nos, cola-se, determina a dádiva e a dívida.
É certo que não quantifica em meses ou anos a duração do aluguer ou o valor e o intervalo de cada prestação. A bem dizer nem cobra prestações.
Cada dia é uma hipótese de pagamento pelo total!

Nascemos (eu sou devedor à Terra), podemos morrer no dia seguinte, três meses depois, dez anos, trinta, oitenta... e a dívida mantém-se sem juros nem amortizações.
Morremos (eu pago à Terra em morrendo) de escarlatina, de sarampo, de coice de mula, debaixo do tractor, de enfarte, na estrada, no trabalho, nas férias, na mesma cama que nos viu sair do útero da madre.

Dizem alguns, mesmo sem provas, que temos o destino marcado na hora do nascimento. Dizem outros que cada ser humano é quem faz o seu destino no modo de andar por cá.
Mas a coisa é mais funda! Em verso se canta no Alentejo (e seguramente noutros lugares do mundo), que a Terra já me devia a mim (a Terra me está devendo), mesmo antes do dia das dores de parto da minha mãe.

Mesmo antes do acto de amor que me gerou, provavelmente, e se assim for, desde o começo dos dias do mundo, encadeando nascimento e morte de todos os que me antecederam no nevoeiro dos tempos.
Então, é a Terra que nos paga a prestações em cada dia de vida, em cada minuto, em cada vitória, em cada trambolhão.

Do valor da prestação se sabe apenas que é bom ou que é pobre se a mãe "teve um menino" ou "pariu um moço".
Da duração da dívida da Terra a cada um, só mesmo bruxos muito diplomados podem saber. Sabe-se apenas que a Terra paga (a Terra paga-me em vida) enquanto aqui andarmos e que se liberta da dívida quando saímos.
Afinal, simultânea e reciprocamente pagando cada qual, Terra e pessoa morrente, a sua dívida particular.
Acertamos as contas, diz-se.

Foi assim com o Xico. Como qualquer outro, poderia ter morrido nos dias todos que antecederam o momento em que ouviu pela primeira vez a palavra voar. Podia ter morrido no primeiro voo, no segundo acidente, no oitavo, no décimo segundo...
Pagou a dívida agora, não sei se ao décimo terceiro, se ao décimo quarto.
Pagou! Acertou as contas.

O Xico sabia muito pouco das leis da física que justificam o voo. O Xico sabia muito pouco de aerodinâmica, de performances, de estabilidade, das qualidades dos materiais de que se fazem as aeronaves.

O Xico nunca fez um curso de pilotagem. Teoria, voo; teoria e voo; voo e teoria...
Perguntava, suponho que perguntava. Ouvia aqui e ali, opiniões avulsas.
Podíamos dizer que o Xico foi um pioneiro da aviação.
Um pioneiro fora de tempo, é certo, sem cronómetro nem calendário, mas um pioneiro.

O Xico formou-se em cada queda, em cada hospital, em cada caranguejola que inventava para sair do chão, garantindo aos amigos que não gostaria de morrer de pneumonia na cama.
Alargou os dias esvoaçando. Esvoaçando e caindo; caindo e esvoaçando à volta das pistas, à volta de si próprio.

Não foi herói porque aqui chegou descoordenado da história dos aviões. Foi mais um anti-herói, anonimamente percorrendo os caminhos dos heróis mas sem glória nem proveito senão nos passos que ele próprio ensaiava, nos moinhos que derrubava.
Os irmãos Wright eram mecânicos de bicicletas e voaram numa máquina não muito diferente em qualidade de voo, daquelas que o Xico inventava.
Sobre as experiências dos irmãos Wright, sobre a sua coragem, a sua ingenuidade, os seus acidentes; sobre a doação de muitas vidas depois deles, se acumularam conhecimentos e tecnologia que nos permitem hoje, de modo seguro e cómodo, cruzar oceanos, ir à Lua e voar em Ultraleve.

O Xico foi um desses pioneiros.

Fora de tempo, é certo; em pleno triunfo da tecnologia; convivendo, paredes-meias, com essa tecnologia e sem poder gozá-la; ignorando-a e arriscando a vida em palpites e em suposições.
No empirismo alegre e puro de quem acabou de chegar e já está pronto para partir.

O Xico pagou à Terra!
A Terra pagou ao Xico.

À terra pagaremos todos, tu, Filipe, que quiseste coisa escrita e me encarregaste desta maluqueira, eu, teu funcionário pelo tempo da escrita e teu amigo até ao fim dos tempos, se é que tal coisa existe.

Amém.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5948: Blogoterapia (147): A notícia da minha morte foi um exagero: vão ter que continuar a aturar-me... (José Brás)

6 comentários:

Jorge Narciso disse...

Caro José Brás

Grandioso "vicio" (poder-se-á quantificar a dimensão dum qualquer vicio ?) o de querer (e conseguir) voar.

Por meios naturais fizeram-no à muitos milhões de anos os pterodáctilos, "arte" que passaram em testemunho às aves, suas sucessoras.

E os nossos antecessores humanideos desde sempre a invejar esse "dom", a manifestação de suprema liberdade que o voo representa.

Icaro, Da Vinci, Bartolomeu de Gusmão, só alguns nomes dos muitos e muitos e muitos que não se ficando pela contemplação, acharam que era possivel...

Observarando estudaram e estudando teorizaram e teorizando engendraram e engendrando experimentaram (tantas vezes pagando com a sua vida o preço da ousadia) "meios" para ultrapassar humana insuficiencia morfologica , traduzida na ausencia dessa coisa que se designa por: Asas !.

Mas... artificiosamente como é timbre da espécie, não é conseguimos mesmo "inventá-las"

Abreviando argumentos: de Avião nas suas diversas formas de sustentação e locomoção, de balão, de heli, de paraquedas e tantas e cada vez mais diversas formas, o que é facto é que: VOAMOS.

Como percebo, e subscrevo, a forma como "Postaste" a homenagem a "um amigo e a um conhecido", que, simplesmente, usufruiam do acima citado "vicio".

Como dizes, num dos casos (entenda-se a parabola) tão "ingenuamente" como o fumador, que continua a fumar, argumentando com o caso dum seu avô que fumando 2 maços por dia durou até aos 95 anos, sem problemas pulmonares.

Também o teu amigo, de acordo com o seu desejo, não morreu de pneumonia.
Porque "ele", o teu "conhecido" e tantos e tantos outros, assumindo o sonho, sabedores das humanas limitações, assim partiram, como interpretes desse intemporal "SONHO".

E com tudo isto dei comigo a pensar; quem sabe um dia não satisfaço também o vicio antigo (que vou mitigando com viagens em "autobuses" voadores) numa "coisa" bem mais ligeira onde, garantindos naturalmente, todas os procedimentos de segurança, possa uma vez mais perseguir o "gozo".

Perguntarás: Queres ver que com esta conversa toda este "gajo" está a fazer-se a uma boleia ?
Respondo: Única dúvida a do comportamento dum estomago que à falta dos prazeres de antigos "aereos volteios" se habitou mais aos da "mesa".

Folgando saber que o teu pagamento à terra, ou desta para ti, ainda não atingiu o prazo de vencimento, e que espero se mantenha por bons e longos anos recebe um

AbraçoJorge Narciso

Jorge Narciso disse...

Finalizando mais perceptivelmente

Um abraço "cumplice" do

Jorge Narciso

Anónimo disse...

Pois, Jorge.
Entre todos os que pagaram com a vida o desejo de voar, é necessário não esquecer o "homem de Alcochete" que querendo imatar oa pássaros construiu umas asas, foi ao cais que era o plano mais elevado da çocalidade, atirou-se de asas abertas, caiu no lodo do tejo em maré baixa, desfaleceu, acordou com dois estalos de um apanhador de conquilhas e perguntou onde é que estou. a resposta do outro foi ora, estás em Alcochete. O vandidato a ave muito espantado retorquiu, não pode ser, de Alcochete vim eu!

Quando quiseres experimentar, sobretudo a Primavera´tem um tempop magnífico para isso, é só dizeres e...chegares à zona de Évora.
Um abraço
José Brás

Jorge Narciso disse...

Jose

Mensagem recebida, a Primavera está aí a chegar e Évora é já aqui ao lado.

Quem sabe, num próximo encontro da Tabanca do Centro, não combinamos ir um pouco para além do cais de Alcochete (deliciosa história essa).

Mais um abraço
Jorge Narciso

PS. Não sei se lá se mantem, mas um dos instrutores de voo (penso mesmo que da Direcção) do Aero Clube de Evora era o Galinho (homem de Riachos) com quem estive nos helis na Guiné.
JN

Anónimo disse...

José Brás

Gostei muito deste teu texto.

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Jorge
Já não é instrutor...o Galinha Dias, mas dono de uma empresa de trabalho aéreo.

Do Coço era um toiro (ganaderia eng.º Henriques da Silva) com 712 Kg (o maior que alguma vez vi)que peguei em Portalegre.
Todo o grupo estava apavorado. hove forcados que não se fardaram por medo e o toiro não me fez mal nenhum além dos tremendos derrotes.
Um abraço outra vez
José Brás