segunda-feira, 26 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6790: Notas de leitura (135): Rui Patrício: A vida conta-se inteira, de Leonor Xavier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É verdade que Rui Patrício não está a fazer história, confia o seu testemunho, não tem todos os documentos à mão, é forçado a fiar-se na sua memória. Mas há enormidades que devemos evitar, a todo o custo ou então devemos renunciar ao testemunho, se ficámos incomodados com a substância dos nossos actos, quer como políticos quer como militares.
Não dá para perceber qual é a imagem que o Rui Patrício pretende dar daquilo que hoje se sabe que foram disparates e até pazadas de cal para o regime a que ele ainda hoje se mantém fiel.


Um abraço do
Mário


Rui Patrício e a Guiné

por Beja Santos

Rui Patrício foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, já tinha experiência governativa quando chegou às Necessidades, viveu em cheio os acontecimentos diplomáticos que se prendem com a guerra de África. Resolveu agora contar a sua vida à jornalista e escritora Leonor Xavier (“Rui Patrício, a vida conta-se inteira”, por Leonor Xavier, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2010).

Como é óbvio, as notas que se seguem circunscrevem-se a matérias relacionadas com a Guiné.

Estava Rui Patrício como subsecretário do Fomento Ultramarino quando foi à Guiné, na Primavera em 1966. Ele escreve a visita desta
maneira:

 “A Guiné era uma província pequena, que os movimentos de libertação, a que chamávamos terroristas, cercavam e atacavam através do Senegal e da Guiné Conacri. Sempre foi a mais difícil de defender. Estive em Bissau e depois fomos a Catió, no interior. O Schultz não me acompanhou nesse dia e fui num avião de quatro lugares. Havia uma pequena pista no meio do mato e era preciso ter cuidado, especialmente perto das fronteiras. Mas nesse dia, quando eu ia voltar para Bissau, depois de uma manhã de trabalho, houve um problema com a porta do avião quando ia descolar e já estava no final da pista. Eu ia sentado ao lado do piloto, fiz-lhe um sinal, ele travou e o avião tocou com a asa no chão. Ficámos ali a tarde toda, com um calor terrível.

Noutro dia, fui também com o director-geral do Ensino a Madina do Boé”.

Rui Patrício passa a titular da pasta dos estrangeiros a 15 de Janeiro de 1970. Relata que logo no início do seu mandato houve que dar resposta aos incidentes no Senegal. Diz ele:

“A província de Casamansa, devido a conflitos tribais tinha sido sempre um factor de instabilidade para o governo do Senegal. O PAIGC, embora contasse sobretudo com o apoio da Guiné-Conacri, agia também a partir de Casamansa.

"Em reacção aos ataques que dali vinham, o Spínola, por vezes, mandava bombardear localidades situadas em Casamansa. Os Senegaleses queixavam-se aos Franceses... a nossa conduta poderia afectar grandemente as nossas relações com a França”. 

Não deixa de referir que se encontrou com o ministro dos Negócios Estrangeiros com o Senegal e que conhecia as iniciativas de Spínola para encontros com o Senghor.

Temos depois a repercussão internacional da ida a Conacri, graças à operação Mar Verde. Leonor Xavier pergunta-lhe se ele sabia que tinha havido a invasão, ao que ele responde:

“Trata-se de um assunto que ficou sempre mal esclarecido e muito controverso... Há hoje livros publicados sobre o assunto. Li neles que teria sido uma operação realizada pelos comandos portugueses chefiados pelo Alpoim Calvão”.

Leonor Xavier aborda-o frontalmente sobre as conversações de Londres, que se realizaram em Março de 1974, do lado português estava o diplomata Vilas Boas, a delegação do PAIGC era encabeçada por Vítor Saúde Maria. Fala no cessar-fogo e na independência. Rui Patrício procura esclarecer:

 “O embaixador do Reino Unido em Lisboa veio dizer que o Foreign Office se dispunha a esclarecer, com a maior discrição, um contacto com o PAIGC. A nossa orientação nunca foi a de ter conversas por via diplomática com os movimentos de libertação. Porquê? Por várias razões.

"Primeiro, porque isso seria reconhecer internacionalmente os movimentos de libertação. A via diplomática é a via de representação do Estado português no exterior, junto de organismos internacionais e de outros estados. Portanto, negociar pela via diplomática com os movimentos de libertação seria o mesmo que atribuir-lhes personalidade internacional e, assim, oficializar e legitimar todos os apoios que organismos internacionais, nomeadamente a ONU, e outros estados dessem ao PAIGC”. 

Leonor Xavier continua a insistir, dado que a resposta do antigo ministro é redonda e etérea: mas porque é que admitiu esse contacto e mandou o diplomata Villas-Boas ir encontrar-se com o PAIGC em Londres? E vem a resposta:

“Primeiro, porque foi uma missão puramente exploratória. Depois, e a verdade é esta, todas as questões doutrinárias e todas as teorias, de vez em quando, têm de mudar perante as realidades. A realidade na Guiné era extremamente complicada. A guerra tinha atingido patamares muito difíceis e, portanto, era possível que tivesse de ser encarada uma solução diferente na Guiné. Portanto, foi chamado o embaixador, com o conhecimento meu e do Conselho, sem mais ninguém saber, para um contacto exploratório em Londres. Depois voltou, mas aconteceu o 25 de Abril”.

Rui Patrício mostra-se céptico sobre a hipótese de Marcello Caetano preferir uma derrota militar na Guiné e afirma:

“Nunca ouvi dizer isso, e o facto de até admitir esse contacto com o PAIGC seria porque preferia evitar precisamente qualquer coisa que fosse uma derrota militar”.

Leonor Xavier diz na introdução que Rui Patrício mantém a mesma absoluta fidelidade ao regime que serviu e aos governos que integrou, no seu tempo de governação. Poderá ser. O que não obsta que se questione se entre a fidelidade e a integridade intelectual não deve haver consistência e se a distância entre o mando, no pretérito, e a verdade dos factos, hoje conhecidos, não deve obrigar a testemunhar com rigor e probidade. Não é admissível que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros venha dizer que o PAIGC cercava a província da Guiné e atacava do exterior. Especule-se quanto à implantação do PAIGC no interior do território, não havia ninguém que não soubesse que o movimento de libertação estava de pedra e cal, tinha as suas bases, o seu apoio populacional, etc.

Para quê fazer propaganda, agitando a maquinação soviética e os ataques a partir do exterior? Já não querendo questionar o que leva um membro do governo a ir com um director-geral do Ensino a Madina do Boé, fica-se estupefacto quando se lê que o Dr. Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, acerca do ataque a Conacri, que ele disse na televisão portuguesa ter sido uma mentira, vem agora reiterar que nada sabia quando há provas que Marcello Caetano deu luz verde ao ataque a Conacri, tal como ele se desencadeou. Uma coisa é ter desmentido na época, outra coisa é vir declarar agora que faz leituras sobre a operação chefiada por Alpoim Calvão. É caricato demais para as funções que exerceu, inaceitável que possa dizer que não é capaz de confirmar que foram os portugueses a fazer a invasão de Conacri.

Há que reconhecer que o regime de Caetano teve uma vida tumultuosa nos seus últimos meses de vida, viveu-se o descontrolo de medidas totalmente opostas às declarações oficiais. Já em 1995 Rui Patrício dera a saber que houvera conversações em Londres com o PAIGC. O regime caiu arredado nas suas contradições, abandonado pelos seus antigos apoiantes. Mas vir dizer que tinha de ser encarada uma solução diferente na Guiné sem ser capaz de enunciar os trâmites dessa solução, também não deixa hoje de ser surpreendente.

Penso que Rui Patrício está a prestar um grande serviço narrando factos da nossa história recente com uma candura espantosa e ao arrepio da verdade histórica. Afinal, o regime inventou as suas próprias fábulas e as derradeiras figuras ou acreditam no mundo em que viveram ou revelam-se coerentes na argumentação que sabem estar falseada e que nós sabemos. Basta ver o que ele diz sobre a Guiné que todos conhecemos.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (Mário Beja Santos)

6 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Todas as felicidades do mundo ao Rui Patrício,guarda redes do meu Sporting!...

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

E dá menos frangos do que o outro..

Abraço.

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Desculpem qualquer coisinha mas não sei mexer neste "animal" e a dona tem por aqui tantas armadilhas que nem com super "picagem".
Fiz um breve comentário ao P da T. Kamer e saiu um duplo. Deve ser do Levante, um vento chato, prefiro baribi que habita nos ditos do chato.
Perdi-me!
Já tinha dito ao Nosso Camarada Vinhal que "navego" por aí. De quando em vez aterro na Net e vou ao Blog. Giro. Há comentários lindos; suportáveis,detestáveis, de pouco ou nenhum humor. Há felizmente gente a pensar diferente.Rio e olho o Oceano logo ali:- o vento não abranda e o calor...perdi-me.
Sou um perdido e tenho que me achar.
Já sei.
Querem melhor comentário que o de Graça de Abreu a seu estimadíssimo Amigo Beja dos Santos. O Rrrrui Patrrricio e o guarda redes do sporting, agremiação ali perto do Glorioso. Estes dois Amigos meus, camaradas, merecem um forte abraço meu. O Mário nada te diz G. de Abreu...paciencia de chi....isso.
Achei-me e vou desligar ou sair daqui.
430, repito -quatrocentos e trinta homens e mulheres - a pertencerem a um espaço virtual gerador de tanta amizade, de tantos afectos, de tanta história linda e...perdão...tu não? Ora bolas. Desculpa então enganaste-te no endereço...sim aqui é LG&Cda Guiné...isso...c/nomes esticados.

Obrigado pela boleia Mário BJ e foi de fino humor G, de Abreu...talvez uma influência lá do oriente...Abraços

Se isto seguir...Abraços a todos do
Torcato Mendonça

Anónimo disse...

Camaradas,
Tenho notado com alguma frequência, entre os arautos do antigo regime, a tese de que a guerra de África não estava perdida, desprezando que há diversos factores que podem concorrer para derrotar o beligerante mais forte.
Agora, pelo testemunho de um benjamim de Salazar, ficamos a saber que sim, a coisa estaria preta, quando o antigo MNE refere: "a verdade é esta, todas as questões doutrinárias e todas as teorias, de vez em quando, têm de mudar perante as realidades".
Quanto à dificuldade para negociar com os emancipalistas, justifica-a, referindo que "isso seria reconhecer internacionalmente os movimentos de libertação... atribuir-lhes personalidade internacional"...
Esta mistificação de há 40 anos era para consumo interno, na medida em que no exterior, com excepção da Espanha e, ocasionalmente, um ou outro país, era dado certo que Portugal exercia uma política colonial em África, e não se dispunha, através da ONU, nos termos da Carta, a procurar uma solução pacífica e desenvolvimentista (solução que poderia passar pela continuidade de Portugal como potência administrativa, e os habitantes, nas suas diferentes origens, com a nacionalidade portuguesa) para aqueles territórios. Afinal aconteceu a implusão, o regime rebentou por dentro, exactamente, por causa das hesitações e confusões persistentes, que eram o produto da política portuguesa.
Repare-se que na ONU eram frequentes as deliberações contra essa política e atitude, o que quer dizer, que naquela Assembleia, a maioria dos outros estados apoiavam os movimentos, face às sucessivas infantilidades e intransigências dos governos portugueses, os grandes responsáveis pela vertiginosa descolonização, e derrota por desgaste na guerra.
Veja-se o estudo do Sr Coronel Morais da Silva como um muito provável corolário do que antes ficou dito.
Fica, no entanto, sem esclarecimento, a questão de se saber se o governo planeava deixar cair a Guiné, para reforço de Angola e Moçambique, tese que também mereceu algum destaque.
J.Dinis

Anónimo disse...

Camaradas,
Tenho notado com alguma frequência, entre os arautos do antigo regime, a tese de que a guerra de África não estava perdida, desprezando que há diversos factores que podem concorrer para derrotar o beligerante mais forte.
Agora, pelo testemunho de um benjamim de Salazar, ficamos a saber que sim, a coisa estaria preta, quando o antigo MNE refere: "a verdade é esta, todas as questões doutrinárias e todas as teorias, de vez em quando, têm de mudar perante as realidades".
Quanto à dificuldade para negociar com os emancipalistas, justifica-a, referindo que "isso seria reconhecer internacionalmente os movimentos de libertação... atribuir-lhes personalidade internacional"...
Esta mistificação de há 40 anos era para consumo interno, na medida em que no exterior, com excepção da Espanha e, ocasionalmente, um ou outro país, era dado certo que Portugal exercia uma política colonial em África, e não se dispunha, através da ONU, nos termos da Carta, a procurar uma solução pacífica e desenvolvimentista (solução que poderia passar pela continuidade de Portugal como potência administrativa, e os habitantes, nas suas diferentes origens, com a nacionalidade portuguesa) para aqueles territórios. Afinal aconteceu a implusão, o regime rebentou por dentro, exactamente, por causa das hesitações e confusões persistentes, que eram o produto da política portuguesa.
Repare-se que na ONU eram frequentes as deliberações contra essa política e atitude, o que quer dizer, que naquela Assembleia, a maioria dos outros estados apoiavam os movimentos, face às sucessivas infantilidades e intransigências dos governos portugueses, os grandes responsáveis pela vertiginosa descolonização, e derrota por desgaste na guerra.
Veja-se o estudo do Sr Coronel Morais da Silva como um muito provável corolário do que antes ficou dito.
Fica, no entanto, sem esclarecimento, a questão de se saber se o governo planeava deixar cair a Guiné, para reforço de Angola e Moçambique, tese que também mereceu algum destaque.
J.Dinis

Joaquim Mexia Alves disse...

Caro camarigo José Dinis

Para esta guerra da "guerra perdida ou ganha" já dei, e muito dificilmente voltarei a dar mai alguma coisa.
É que há discussões que se eternizam e não levam a lado nenhum.

Já esta frase tua «Tenho notado com alguma frequência, entre os arautos do antigo regime, a tese de que a guerra de África não estava perdida,» me faz uma certa comichão: "os arautos do antigo regime"???
Então quem defende que a guerra de África não estava militarmente perdida é "arauto do antigo regime"?
Ou não entendi bem o que queres dizer?

Um abraço camarigo para ti e para todos