sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8759: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (2) - Reportagens da Época (1966): A Viagem, O Desembarque e o Passeio pelo Geba



1. Segundo poste da série "Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época", de autoria do nosso camarada Domingos Gonçalves*, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), enviadas em mensagem do dia 22 de Agosto de 2011.






MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época - II

A VIAGEM

Agora que a terra deixou de ser visível os rapazes viajam deslumbrados pela beleza do mar a desfazer-se em ondas de cristal.
Estamos no alto mar.

Enquanto a luz do sol vai prateando o azul profundo, cardumes de peixes, assomam, de quando em quando, à superfície das águas, espreitando, curiosos, o barco que passa.
Quando entardeceu todos admiraram o Sol a esconder-se num horizonte avermelhado, belo e impreciso, espalhando na distância cores cintilantes e garridas.
Na minha aldeia o Sol esconde-se para além das montanhas ondulantes de arvoredos e penedias.
No mar desaparece num horizonte menos distante, num céu mais puro e mais encantador.
Mas é muito mais belo!

Pôr-do-sol no mar
Foto: © Dina Vinhal (2011). Direitos reservados


Esta primeira noite passada sobre o mar foi maravilhosa.
Miriades de estrelas povoaram a amplidão e brilharam alegres na distância.
O mar, esse, tomou a cor da noite e apenas deixava que a gente se apercebesse do deslizar sereno do barco sobre as águas e do marulhar sereno das ondas.
É um mundo de mistérios aquele que a escuridão espalha para além do barco...


8 de Maio

A manhã rompeu radiante de cor.
O mar mais parece um espelho grandioso, cheio de brilho, do que um mundo feito de abismos negros.

É domingo.

Às oito horas o capelão celebrou missa.
Enquanto tocado pelas ondas o barco segue baloiçando, aquele Cristo que tantas vezes andou no mar da Galileia, onde até acalmou as tempestades, veio ao nosso encontro no meio deste Atlântico cheio de tanta história.

Entre os soldados reina boa disposição

Viajar de barco, e com algum conforto, não deixa de ser agradável.
Se não fosse a tirania do capitão da 1546, que ontem até impediu um homem de jantar, isto seria quase um cruzeiro turístico...
Nunca vi ninguém que exercesse o poder com tanta crueldade e que fosse obedecido com tão pouco prazer.
Este capitão é uma pessoa muito chata!
Temo imenso pelo fracasso a que vamos sujeitos debaixo do seu comando.
Um homem como ele nunca deveria ser chefe de coisa nenhuma...


Dia 9

O dia alvoreceu cheio de brilho, prateado por uma luz admirável, que nem consente que a fixe com os meus frágeis olhos.

De tarde, o céu encheu-se de nuvens e o mar entristeceu-se tanto que até perdeu todo aquele argênteo fulgor que pela manhã ostentava.

O médico da Companhia fez uma palestra aos soldados sobre doenças tropicais e a melhor forma de as evitar.
Como em tudo, o melhor remédio é sempre a prevenção.
Como diz o velho ditado, é melhor prevenir do que remediar.
Sabe-se, no entanto, que a prevenção é uma coisa muito bonita para se falar dela, mas
que, na realidade, poucas vezes funciona.
Mas, os entendidos na medicina falam nela com tanta convicção que a gente até lhes faz o jeito de acreditar. O médico é mesmo um tipo formidável que merece mesmo que o pessoal acredite nele.


Dia 10

Quando me levantei já ia bem alto o Sol.
No mar, pelo menos ao nascer, os dias são sempre magníficos.

Numa alocução às tropas, o capitão disse que os soldados têm que estar convencidos de que são tropa e não andam a fazer turismo pelo oceano.
Os altos comandos do barco, não se sabe por qual razão, chamaram-no malcriado. Ele, a nós, disse que apenas lhe chamaram irreverente.
Não sabemos ao certo o que se passou, ou qual foi a razão da troca de mimos. Mas lá que o tipo é chato, isso é verdade.

Tem havido cinema.
Os filmes são de bastante má qualidade.
No barco, e para a tropa, também não seria de esperar que exibissem as últimas novidades da indústria cinematográfica.
Seria exigir de mais!


Dia 11

As noites já são bastantes quentes. O calor é já uma realidade bem presente. O ar que se respira é abafado.
Apenas se está bem no interior do barco em ambiente de ar condicionado.
As milhas que nos separam da Guiné são cada vez menos. Porém, o espectáculo do mar é cada vez mais belo.
Agora são os cardumes de peixes voadores e os golfinhos que lhe emprestam um novo encanto.

De tarde, o major fez uma alocução às tropas e desejou-lhes a melhor das sortes no desempenho das missões que o Batalhão de Caçadores n.º 1887 tiver que desempenhar nos próximos dois anos.


Dia 12

Pelas dez horas e trinta minutos avistou-se terra.
Pouco depois das onze horas o barco parou à espera do piloto local, para entrar na barra do Geba.
Pouco antes das três da tarde o Uíge ancorou em frente a Bissau.

Avisaram-nos de que o desembarque terá lugar amanhã, a partir das nove horas.
O nosso destino, dizem, será Nova Lamego.

Da parte da tarde os oficiais reuniram-se na sala de música do barco para assistir a uma palestra sobre a situação militar na Guiné.
A alocução foi proferida por um tenente-coronel e, da descrição que fez, deduzo que, pelo menos em algumas zonas, a situação, embora controlada, será bastante difícil.

Respira-se aqui um ar de guerra.

No rio Geba os barcos da Marinha aparecem um pouco por todo o lado, o mesmo acontecendo com as pequenas lanchas dos fuzileiros navais.

A velha “Mauser” aparece dentro dos pequenos barcos de passageiros e de carga. As armas estão um pouco por todo o lado.
O sossego que se respira na metrópole aqui já não existe.
É a guerra.
Temos de nos habituar a este ambiente estranho.

Guiné > Bissau > Outubro de 1973 >  Cais de Pidjiguiti
Foto: © António Graça de Abreu (2011). Direitos reservados


O Desembarque e o Passeio Pelo Geba

13 de Maio

Da parte da manhã a Companhia deixou o Uíge.
Homens e bagagens, tudo passou para a Bhor, uma barcaça de pequeno porte que nos levou pelo Geba fora, rumo a Bambadinca.

*

Respira-se mal.
O sol queima.
Nas águas amareladas do Geba nem um sinal de maresia.
Da chaminé do barco levanta-se uma leve nuvem de fumo e, ao longe, por entre uma plúmbea neblina, a selva parece arder.

Os guindastes do Uíge fazem o transbordo da bagagem pertencente aos homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 para uma barcaça de fundo chato, tão larga quanto comprida, da cor das águas sujas do rio.

Sob um sol ardente, os rapazes abandonam o conforto do Uíge e vão descendo para a barcaça, que já se encontra repleta de bagagens.

É quase meio dia.

A Bhor começou a navegar pelo Geba acima, em direcção a uma localidade que, dizem, se chama Bambadinca.

Bambadinca > Vista aérea
Foto: © Humberto Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.


A floresta, no meio da qual nos deslocamos, já que o rio não é mais do que uma imensa estrada que a natureza rasgou, num esforço milenar, para facilitar a nossa passagem, é muito verde. Pode mesmo dizer-se que é bonita, feita de uma beleza que cheira a monotonia.

O sol tropical cai, inclemente, sobre as cabeças e os corpos de cada um de nós, martirizante e implacável, queimando sempre cada vez mais.

Nas margens, quase ao mesmo nível das águas, casando-se com o rio, está a floresta virgem, misteriosa, um mundo de ninguém, estranha riqueza à espera de ser explorada.

De quando em quando, alternando com a selva, surgem bolanhas enormes, nuas, morrendo ao longe coroadas pela rama verdejante das palmeiras.

A sede atormenta-nos.

Os nossos corpos, agredidos pela inclemência do clima, desfazem-se em suor.
Para aumentar o martírio de todos a barcaça não traz água.
Para matar a sede lançam-se ao rio garrafas vazias, seguras por cordéis, que, depois se puxam para bordo, cheias de água.
E que deliciosa é esta água amarelada e quente!

Às duas horas da tarde deram-nos o almoço.
Encostados uns aos outros, sem o mínimo de condições, comemos ovos cozidos, laranjas, pão seco e sardinhas de conserva.
Tudo, é claro, acompanhado com a água suja do rio.

A meio da tarde a barcaça ultrapassou a confluência do rio Geba com o Corubal.
A partir desse ponto, devido ao rio ser mais estreito e menos profundo, a navegação torna-se bastante mais difícil.

À passagem pelo Xime, as tropas destacadas na localidade celebram a nossa passagem com algumas salvas de tiros de G.3.
Alguns soldados andam no rio, a bordo de uma canoa, talvez pescando.
Os que estão em terra têm a pele bastante bronzeada.

Anoiteceu antes que a viagem fluvial terminasse.

Agora, a barcaça navega mais vagarosa, e de luzes apagadas.
Estamos, por certo, a atravessar alguma zona perigosa.
Quem adivinha se o inimigo nos está a preparar alguma partida.

Nas margens do rio, qual sombra de fantasma gigantesco, apenas temos o fantasma da selva infinita.
Aquilo que durante o dia se reveste de beleza considerável, enche-se, de noite, de frieza e mistério.
Com a escuridão tudo se torna enigmático e terrível.

Ao longe já se vislumbram luzes.
É a vila de Bambadinca, termo da nossa viagem fluvial.
Já vai alta a noite.

Vestígios do porto de Bambadinca. Suportavam o tabuleiro do cais, por aqui passaram toneladas de comida, munições e aparato bélico, material de construção civil, etc. Para que conste para a História, aqui houve cais, exactamente neste ponto acostava o aprovisionamento dessa imensa guerra.
Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.

A barcaça encostou-se à margem do rio, no pequeno cais construído em madeira.
Dentro e fora reina a escuridão.
Os soldados procuram, auxiliados por uma luz muito branda, as respectivas bagagens, e fazem, a poucos metros da margem do rio, um monte de malas e sacos.

Depois, exaustos, deitam-se no chão, expostos aos mosquitos e à humidade que a atmosfera, junto ao rio, não pode deixar de imanar, na tentativa de garantir algum descanso ao corpo fatigado, até que cheguem as viaturas que nos transportem para Nova Lamego, a terra onde iremos, segundo nos disseram, permanecer, não se sabe durante quanto tempo.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 6 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8742: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (1): A caminho de embarque e Embarque

5 comentários:

Luís Graça disse...

Carlos: Não conhecia esta faceta, de fotógrafa, da tua/nossa Dina... Parabéns pela foto do pôr do sol... Quero ver esses progressos!... Um beijão para ela. Luís

Anónimo disse...

Tenho pena, muita pena, que, passados 45 anos, o capitão (que julgo ter sido miliciano na altura e condecorado com Cruz de Guerra, mas posso estar enganado) seja assim apresentado. Mesmo tratando-se de um diário escrito na época dos acontecimentos, acho que teria sido mais correcto aquela duríssima "avaliação" do carácter do capitão ter sido suprimida.
Como sempre lembra o editor-em-chefe, Luís Graça, "the war is over".
Ninguém tem só defeitos.

Carlos Cordeiro

José Marcelino Martins disse...

O Capitão comandante da CCAÇ 1546 era efectivamente Miliciano e foi condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª Classe por factos ocorridos em 11 de Dezembro de 1967. (Ordem do Exercito nº 2, I série de 1970).
Corroboro a "avaliação" do Carlos Cordeiro, à "avaliação" feita pelo Camarada Domingos Gonçalves.
Não estou a ser "advogado do diabo" mas, todos nós, mormente quem teve de "dar ordens" sem que para tal tenha sido "formado ou instruido, decerto que cometeu erros.
Este episódio teve lugar no dia 8de Maio de 1966, dia imediato ao embarque, e o Capitão visado não era o oficial mais graduado a bordo.
De qualquer forma e, antecipadamente, apresento desculpas, pois que o texto, e a forma de escrita, pode evidenciar "um certo menospreso por alguem" para, mais tarde melhor realçar os seus dotes de condutor de homens.

Anónimo disse...

Caros amigos,

Li o artigo e os comentários dos nossos camaradas. Tenho que concordar com as observações feitas por estes.

Sem saber mais que o artigo escrito, o capitão miliciano visado, comandante de companhia já falecido, condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª. Classe não devia estar sujeito a este tipo de achincalhamento. Para mais vindo de um oficial subalterno que cumpriu o seu serviço militar na mesma companhia, acredito que irreverente e contestatário ao tempo, mas que passados todos estes anos bem podia ter contornado o seu diário.

Por enquanto, sem prova em contrário, pelo menos no campo da luta, a condecoração deixa entender que o referido capitão estava à altura do comando que desempenhava.

Sem por em causa o direito à liberdade de expressão deste nosso camarada articulista e de todos os outros que aqui escrevem, penso que ele poderia ter sido mais comedido na sua aproximação a este assunto.

Se o fizer no futuro, todos nós, incluindo a imagem do blogue, teremos tudo a ganhar e nada a perder.

A história, a verdadeira história não se deixará de fazer pela omissão de certas observações, bem pelo contrário far-se-á pela qualidade das mesmas e pelas decisões tomadas.

Com amizade,
José Câmara

Anónimo disse...

Amigos,
No meu comentário cometi uma gafe ao referenciar o capitão como falecido. Precipitação da minha parte na leitura do artigo em causa. Peço desculpa.
José Câmara