1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur
Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos
mais uma mensagem desta sua série.
Camaradas,
Um poço no mato
Saciando a sede
O calor apertava e não dava tréguas ao guerrilheiro que
se depara com a falta de água no cantil. A sede assumia-se como uma necessidade
premente. Saciar a avidez era urgente. Por aquelas paragens a ausência do
precioso líquido era uma certeza. Olhávamos o terreno, infecundo, e não
visualizávamos fontes, tão-pouco bolanhas para uma recarga do pequeno cantil
que trazíamos atrelado ao cinturão.
Meu Deus, faça-nos o milagre de um eventual encontro com uma
fonte de água! Pensávamos. A caminhada no mato prolongava-se. O pessoal, já com
o cantil completamente esvaziado, desesperava. Aconselhava calma. Também eu
sentia a necessidade de um reabastecimento. Mais uns quilómetros percorridos e…
nada!
Eis que, perante os espaços desalinhados das árvores,
pareceu-nos ver uma cultura de milho. Verde! Gritou-me um dos soldados.
Associei de imediato que o verde simboliza fresquidão. Fresquidão… água.
Estamos safos, pensei.
A surpresa foi quando nos aproximámos do local. Uma criança
tirava água de um poço, utilizando uma pequena lata que transportava o líquido
do fundo para a superfície. Eureka! Estamos safos, avançou um outro soldado já quase
a desfalecer. Nos limites. Barrenta? Não faz mal, comentava um camarada ao
lado alertando para a necessidade de colocarmos no cantil o tal comprimidinho
desinfectante que matava o mais audaz bicho que porventura ousasse desafiar as
nossas gargantas e bexigas.
Curioso foi a amabilidade que a criança nos prestou. Quis ser
ele a assumir o trabalho. O caldeirão fez
várias viagens ao fundo. Saciámos a sede, enchemos os cantis e toca a andar.
Conhecendo a zona onde prestei serviço – Gabu – não era comum
encontrarmos poços no mato. Água, isso sim, havia com fartura nas bolanhas e
nos rios. Tanto mais que a Guiné era um território onde a água abundava.
A fonte do Alecrim, na saída da estrada que nos conduzia a
Piche, era a nascente de reabastecimento do nosso Quartel.
O calor imenso que nos transportava a socorrer
sistematicamente ao cantil para, pelo menos, enxaguar a boca com o líquido e
seguir viagem, esgotava-se quase sem darmos por isso. Razão, óbvia, para o
desespero. Restava saber sofrer até um possível reencontro com uma fonte de
reabastecimento e voltar a acelerar a caminho do objectivo ou para o
ambicionado regresso ao Quartel são e salvo.
Saciar a sede era, para todos nós, uma bênção caída do céu
quando a ocasião proporcionava momentos de desespero. Recordações que ficaram
eternizadas nas nossas memórias guineenses!
Junto ao poço para saciar a sede
Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do
BART 6523
Fotos: © José
Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho
(2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste
desta série em:
18 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 – P9224: Memórias de Gabú (José Saúde) (18):
A caminho do campo
7 comentários:
Caro José Saúde
De facto a Guiné era uma terra com muitos rios e bolanhas, mas no tempo da seca, também muitos deles deixavam de ter água e muitos aquartelamentos sofriam com falta do tão precioso líquido. No Dulombi, em 1972, padecemos durante uma temporada de falta de água, tendo de nos abastecer na área da sede do Batalhão, em Galomaro, o que implicava diversas picagens e o risco de mais colunas.
Um abraço.
Luís Dias
Caro José Saúde
São relatos deste tipo que completam muito bem as histórias das operações, emboscadas, golpes-de-mão, ataques, etc., porque acabam por ilustrar as coisas aparentemente pequenas, de menor importância, mas que, na prática, faziam uma grande diferença. Diferença entre a tranquilidade (aparente, é certo) e a angústia sofredora pela falte de água. Relata ainda o que se podia chamar 'água', em certas condições, de modo a que hoje em dia os mais novos possam começar a imaginar o que podem esperar com o desenvolvimento da crise...
Abraço
Hélder S.
Caro José Saúde
Imagino, como, com temperaturas desidratantes, só por si, se podia caminhar sem água e sem saber onde a encontrar!
Sem forças, exaustos, como seria a vossa resposta a um possível ataque?
Eram várias guerras ,numa só.
Parabéns por terem ultrapassado esses dias difíceis, muito para além de difíceis...
Um Abraço da
Felismina
Tenho lido vários estratagemas.
Felismina vou dizer como consegui beber um copo do cantil de agua do Cachil.
Primeiro arranjei um monte de cinza do capim e coloquei em cima do pano de tenda e fiz passar a agua através da cinza por três vezes renovando a cinza, de seguida filtrei través do filtro indvidual de campanha que nos tinha sido distribuído adicionei o máximo de tóni-lata até ficar bebível, era uma farinha tipo farinha do amparo que fazia parte da ração de combate, finalmente adicionei o celebre comprimido LM e sem saborear lá engoli aquela droga.
Cumprimentos teu conterrâneo.
Colaço.
Meu Caro Colaço
"Permite-me também o tratamento por tu"
Estás a ver porque é que eu gosto de ler as vossas vivências?
Desde criança, sempre me conheci uma pessoa interessada, e esta forma de filtrar a água, era do conhecimento dos nossos avós: foi com eles que aprendes-te, ou foi apenas uma descoberta tua nessa contingência?
De qualquer forma, agradeço a tua intervenção, fazendo-me recordar, conversas entre meus avós e pais.
Fico contente, por saber, que essas noções ancestrais, as puseste em prática, e te foram sem dúvida úteis.
Obrigada por me teres dado a conhecer, essa forma de sobrevivência utilizada, e de tomar conhecimento de mais uma das vossas provações, que como é óbvio, não me encantam, mas ajudam a compreender os vossos sacrifícios, que sempre deduzi serem enormes.
Um abraço da tua conterrânea
Felismina
Felismina não era preciso comentar, na sobrevivência põe-se em pratica,usa-se todos os conhecimentos adquiridos ao longo da vida mas também se inventa, foi o caso em questão.
Um alfa bravo e um beijinho para a Felismina.
Colaço que rima com abraço como diz o Zé Brás.
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