segunda-feira, 1 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14686: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte I): Os nossos romances deviam ter um final feliz!...


Carta enviada pelo Renato Monteiro, à Guida [, Margarida]. Tem duas datas: 

(i) Contuboel, 18 (?) de abril de 1969, data provável em que fez a montagem com recortes de jornal: uma foto de um casal, um punho fechado, dois títulos em francês ("Ils esperent encore"", eles ainda esperam; "chez vous, enfim", finalmente em pé de você ou em vossa casa)... Ele abril de 1969 o Renato estava no centro de instrução militar de Contuboel, onde estavam a tirar a recruta mais de duas centenas de guineenses que irão constituir as futuras CART 11/CCAÇ 11 e a CCAÇ 12.

(ii) A data posterior, é de 26/8/1969, já ele estava em Piche, com a sua CART 11. Tudo indica que a carta tenha sido reenviada da Metrópole. Vem assinada pela Margarida (ao canto superior direito): "Para que nas horas tristes haja sempre um ideal que nos ajude. Com coração. Margarida".




Carta, datada de Piche, 6 de julho de 1969. É assinada pelo Renato José, tem recortes de uma banda desenhada em espanhol. A mensagem, manuscrita, diz:

"Querida: todos os nossos romances deviam ser como os folhetins comuns. Chegam depressa ao fim e têm um fim feliz. Mas a vida é diferente..."

Fotos: © Renato Monteiro (2015). Todos os direitos reservados (Edição: LG]


O Renato Monteiro, já no Xime, na CART 2520,
Aqui junto a uma LDG, no cais do Xime.
A foto deve ser de 1970.
1. Mensagem com data de sexta-feira, 29 de maio de 2015,  22h35, do Renato Monteiro [ o "homem da piroga",  ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970):

Assunto: Depois do telefonema, a carta e os...anexos!

Grande Luís!

À vida, já longa, vão faltando páginas para completar a leitura definitiva e arrumá-la na prateleira dos velhos livros cheios de pó. Foi isto que passou pela minha cabeça e me levou a fazer-te chegar às mãos umas poucas cartas que conservo desde o meu involuntário exílio na Guiné.

Cartas destinadas à namorada, pouco convencionais, a dispensarem o aparo da Pelikan, compostas na sua maior parte por colagens de palavras e frases curtas de jornais e revistas encontrados casualmente nos aquartelamentos de Contuboel, (a tua Capri, c'est fini!) (*) e de Pitche.

Mensagens que, recorrendo ao nonsense através de expressões fragmentadas e sentidos descontínuos, nem por isso deixavam de traduzir uma certa amargura, ironia, desespero; momentos de medo e
de calados desejos; surdas revoltas causadas pela forçada expatriação que nos obrigara à separação do outro amado.

Esta forma de dar sinais de mim foi, porém, episódica, acabando em pouco tempo por retornar às repetidas notícias manuscritas, fixando-me na descrição de breves estórias quotidianas e na
exteriorização de sentimentos, sempre demasiado insuficientes porque desoladoramente aquém dos sentidos...

Sim, as cartas não passavam de péssimas cópias do que se pretendia veicular nelas!

E são ou foram estas cartas que serviram de pretexto para voltar, também, a dar-te sinais de mim e a perguntar por ti!

Com um grande abraço!|
Renato Monteiro


2. Comentário de LG.:

Quando o Renato me telefonou na sexta feira à noite, estava feliz por que ia reencontrar,  45 ou 46 anos depois, os camaradas da sua CART 2479, "Os Lacraus", mais tarde CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70), que se iam encontrar no Vimeiro, Lourinhã (, ainda pensei lá poder dar um salto, para  um alfabravo e dois dedos de conversa com os meus amigos e camaradas de Contuboel, mas não deu mesmo...):

Renato: A "carta chegou a Garcia"... Mas que bela surpresa"!... Pois as tuas cartas para a Guida são uma originalidade para a época... Direi mais: são belos poemas. E documentos muitos valiosos para se perceber a nossa geração a quem coube, na lotaria da história, fazer aquela maldita guerra (**)...

Eras já um tipo especial!... Que sorte ter-te conhecido e ser hoje teu camarada e amigo... Sorte também tiveste em ter uma Guida que te aturou e ajudou a manter a saúde mental... Se mo permites, vou publicar este material no blogue... Já tenho publicado outras, mas as tuas são as mais orginais que conheço...

Eu não escrevia cartas de amor, não tinha namorada nem madrinhas de guerra... Tenho cartas que nunca pus no correio, por receio de poderem ser apanhadas pela PIDE/DGS... Fobias!... Prometo também fazer-te uma surpresa. 


Mando um abraço para os nossos camaradas de Contuboel, Cândido Cunha, Abílio Duarte, Valdemar Queiroz... Destes dois últimos temos publicado coisas no blogue... E vamos falando de ti [que já tens trinta referências... Podes ver aqui ver nos links...

 
Xicoração. 
Luis



3. Resposta do Renato Monteiro, logo a seguir, ainda no dia 30:

Amigo Graça!

É tarde, e amanhã vou rever os Lacraus, 46 anos depois (?)... Uma  sensação estranha, que espero não venha a tirar-me o sono!

És um homem sempre a exagerar as minhas qualidades que, acabam por  contar-se pelos dedos. Podes crer!

Um grande abraço e até a uma próxima, de verdade: dentro ou fora de Lisboa.

Renato Monteiro



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o rio Geba. Descontraídos, sem armas... A guerra ainda estava longe para nós... Contuboel era um centro de instrução militar... Na  foto, furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590, mais tarde, CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479, mais tarde CART 11.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


4. Na Guiné nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, de resto, ia morrendo afogado, num mergulho junto à estrutura da ponte, em madeira, num dos dias em que costumávamos andar por ali e dar uns mergulhos (,ele, que era muito mais afoito do que eu; mas não se lembra de nada, nem se lembrava do meu nome, nem desta foto acima...). (**)

E no entanto eu fiz operações com a CART 2520, do Xime, onde ele acabou a sua comissão, em 1970. Uma das possíveis razões para o nosso desencontro no Xime pode dever-se ao facto de ele ter sido depois colocado no Enxalé, com o seu grupo de combate. O Enxalé é um destacamento do Xime.

Enfim, perdi, infelizmente o rastro ao "homem da piroga"... Saí de Contuboel em 18 de julho de 1969, tendo a minha companhia (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) sido colocada em Bambadinca... E ele segui para Piche... Um das cartas que  hoje publicamos  é de Piche, 6/7/1969. Mas a primeira é de Contuboel, 18/4/1969.

Já muito depois do 25 de Abril, descobri que o Monteiro era coautor de um livro que li e apreciei sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha: Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1990. 307 pp).

Entretanto, apareceu o blogue e, entre outras, publico esta foto... Em 4 de Julho de 2005, recebo uma mensagem assinada pelo Renato Monteiro (*). Reatámos desde então os nossos contactos e a nossa amizade... Mas até hoje ainda não descobrimos quem foi o fotógrafo... Mas é provável que tenha sido o Cândido Cunha... É uma das poucas fotos que eu tenho da Guiné. Mandei para a minha irmã do meio, Maria do Rosário, no início do verão de 1969.  No verso pode ler-se:

"Contuboel. Passeio de canoa pelo Rio Geba (que passa por Contuboel, Bafatá, Bambadinca e vai desaguar em Bissau). Com um xi-coração a Rosairinha e parabéns pelo seu brilhante exame. Luís Manuel, da Guiné com amizade  fraterna". 
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

(**) No início da nossa tertúlia, quando ainda éramos poucos (o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes, o David Guimarães,  ...) eu mandei-lhes esta foto, com o seguinte pedido, em e-mail datada do dia 1 de Maio de 2005, na secreta esperança de um dia dar de caras com ele numa esquina da cidade do Porto (....Afinal, ele vivia e trabalhava perto de mim, em Lisboa, no Lumiar!):

"Amigos: quem conhece este gajo? Não o que vai sentado na canoa (que sou eu, ou era eu… ), mas o homem que está na popa, de remo na mão… Esta foto foi tirada em Contuboel, Guiné, no 2º trimestre de 1969,em junho ou julho… O fulano chama-se Renato Monteiro, ex-furriel miliciano Monteiro, pertencente à CART 2479/CART 11… Conhecemo-nos em Contuboel, e convivemos durante pouco mais de mês e meio, no período em que estávamos a formar as nossas companhias (eu, a CCAÇ 12; ele, a CART 11). 

"Sei que nasceu no Porto, em Dezembro de 1946, que fez mais tarde o curso de licenciatura em história e que hoje deve ser professor do ensino secundário. Publicou, juntamente com Luís Farinha, uma Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998; há também uma edição do Círculo de Leitores). 

"Se é o mesmo que eu penso, também esteve ligado ao movimento das rádio locais. Há um fotógrafo com o mesmo nome, não sei se é o mesmo. Já não me lembro do seu 1º nome… A ponte que vocês vêem ao fundo era a de Contuboel, uma ponte em madeira e que na base fazia uma espécie de represa… Um dia o Monteiro mergulhou perto dela e estava a ver que o gajo nunca mais vinha ao de cima… 

"Gostava de o encontrar para lhe mandar esta chapa… Tínhamos muitas afinidades (políticas, culturais, humanas…). A companhia dele foi para Nova Lamego, e perdemos definitivamente o contacto. Sei que voltou da Guiné ainda em 1970, uns meses mais cedo do que eu (que vim em Março de 1971)". 

Passado uns tempos, o Renato deu de caras com a foto, inserida na nossa página na Net (Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (1963/74) > Memória dos lugares > Bambadinca)...

Em julho de 2005, ele escreveu-me o seguinte:

"Amigo Luís, muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação.

Sou, na realidade, co-autor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro"
...

.A partir daqui mantivemos algum contacto regular, mas cedo percebi que o Renato tinha voltado a fechar o baú das memórias da Guiné e estava noutra... (A sua paixão era então, e continua a ser, a fotografia) (...)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Até que enfim !!!!!!!!
Cá temos o Monteiro, no nosso blog e de que forma, melhor, em grande forma.
O nosso blog precisa, também, de quem escreve como 'brincos que se vão meneando'.
Bem-vindo Monteiro, mas agora não podes fugir outra vez.
Quanto ao reencontro dos Lacraus, no Vimeiro, estamos todos ansiosos pelos comentários do Monteiro.
Depois volto ao tema, com certeza com publicação de fotos do evento.
Esqueci-me da máquina fotos no carro do Cândido Cunha e só a partir do próximo sábado é que nos vamos encontrar.
Até breve
Abraços
Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Valdemar, pelo menos tu foste, e reencontraste o Monteiro e o Cunha. Venha de lá essa reportagem!... Saúde!... LG

Luís Graça disse...

Valdemar:

Agora é a tua vez de trazer, até á nossa Tabanca Grande, o Cunha!...O Monteiro já cá estaá desde 2005!...

Julgo que foi o Cunha que nos tirou a foto, na piroga.... Era ele que ia à proa... Será que ele tem cópia desta foto ? E deve ter mais fotos, do nosso tempo de Contuboel, para mim o melhor tempo de Guiné, um mês e meio, um oásis de paz, tabancas lindas, bajudas lindas...

Um semana depois de sairmos de Contuboel, com os nossos soldados africanos ainda em farda nº 3 (!), à espera dos camuflados, já estávamos a levar nos cornos, tivemos os primeiros feridos graves em Madina Xaquili, a sudeste de Galomaro / Dulombi... Madina Xaquili será depois abandonada pelas NT... Era um dos tapões contra as incursões do PAIGC via Boé e Corubal... O chão fula, a parte sul / sudeste, ficou muito mais vulnerável depois do abandono de Beli, Madina do Boé, Cheche, Madina Xaquili... O que obrigou á militarização dos fulas, no Cossé, no Corubal, em Badora...

Um abração. Luis

Abílio Duarte disse...

Oh Valdemar, como é que tu sabes estas coisas todas.
Pertencias ao Estado- Maior do Spinola?

Valdemar Silva disse...

Olá Duarte.
Foi pena não teres podido estar presente.
O Monteiro lá apareceu. E foi muito bem vindo
Já não se lembrava de algumas das nossas caras. Passaram 45 anos.
A mim conheceu-me por um tique que tenho a olhar, disse ele. Ficou emocionado.
Também perguntou por ti.
Esta nova aquisição foi obra do Cunha.
Eu fui e vim com o Cunha. Esqueci-me da minha máquina no carro dele.
Oportunamente serão, com certeza, publicadas fotos do evento, minhas e as tiradas, pelo mestre da fotografia Renato Monteiro, com a máquina do Pina Cabral.
Também estou ansioso pelos comentários, aqui para o blog, do Monteiro sobre este nosso Convívio 2015, afinal do nosso reencontro.
Abraços
Queiroz

Renato Monteiro disse...

Valdemar, Abílio e demais camaradas.

Desde o dia da confraternização, surgiram uns contratempos que me retiraram a disposição de escrever uma palavrinha. Por outro lado, também ando bastante ocupado com uns trabalhos fotográficos... Sequer agradeci ainda ao Pina Cabral o filme que fez o favor de me enviar. Enfim, estou a desculpar-me por não ter dito nada até agora, apesar de me lembrar dos camaradas que redescobri no Vimeiro.

E não escondo alguma comoção do reencontro, de rever os Lacraus que me reavivaram alguns episódios como o do lenço vermelho que, juro, juro, não sei se não será da vossa imaginação...

Naquele momento do embarque, bem se podia chorar, que a chuva era de tal modo contínua e grossa, que ninguém daria por isso. Ou também estarei eu a fazer algum filme?

Certo é que, para o ano, a não haver nada que nos impeça, lá estarei, de novo, a partilhar convosco uns bons momentos de lembranças e de convívio! Será no Fundão, não esqueço!

Entretanto, achei uns óculos que não são meus: armação dourada, esverdeados, marca Ray.Ban e queria enviá-los pelo correio ao legítimo dono! De quem serão?

Mal tenha tempo, darei sinal...

Sinceros abraços para todos, e saúde!

Renato Monteiro