segunda-feira, 29 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
As memórias que o antigo presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau nos deixou foram notas, na maior parte dos casos, sincopadas e a requerer enchimento e aprofundamento de análise. Nos seus discursos encontramos, por muito que a afirmação surpreenda, um homem entusiasmado mas lúcido, ciente das limitações mas confiante que estivesse próximo um virar de página e que a Guiné-Bissau viesse a provar um ciclo prodigioso de desenvolvimento. Não foi assim, como é sabido. E a obstinação no tabu da unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se numa noite de golpe de Estado que deixou na maior das desorientações todos aqueles que tinham confiado no sonho de Amílcar Cabral.

Um abraço do
Mário


O regresso das memórias de Luís Cabral (3)

Beja Santos

Em “Memórias e Discursos”, temos oportunidade de reler algumas peças políticas de Luís Cabral entre 1973 e 1980 e de conhecer os textos esparsos que terão constituído o seu bloco de notas para a redação de uma obra de fôlego onde podia ter justificado os tempos da sua liderança política à frente dos destinos da Guiné-Bissau, Fundação Amílcar Cabral, 2012. É interessante verificar, quando se releem os seus discursos, a ênfase posta na unidade Guiné-Cabo Verde, no elogio permanente à luta da libertação, à política de não-alinhamento, à evocação dos heróis. Revela um político lúcido e bem informado, sabedor que a Bissau do pós-guerra é uma cidade com excesso populacional, incita-a a regressar aos campos. E se diz que a corrupção e o oportunismo eram armas utilizadas pelo inimigo para impedir que as populações dos centros urbanos se juntassem aos combatentes do PAIGC, dirá mais adiante, em 1978, que uma parte do património público parece estar a saque. Di-lo num discurso no dia do trabalhador, em Contuboel: “Temos que criticar aquelas pessoas que se aproveitam do trabalho do nosso povo, que roubam coisas da nossa terra. Hoje, dia dos trabalhadores, quero louvar os trabalhadores do nosso serviço da Segurança que conseguiram descobrir os ladrões que estavam dentro dos Armazéns do Povo”. Dirige uma saudação aos agricultores, aos trabalhadores das serrações, aos pescadores, refere empresas que em breve cairão no descalabro por má gestão, por roubos, por falta de matérias-primas, por megalomania.

No discurso do fim do ano de 1979, volta a referir-se a incúrias e insucessos, e põe o dedo do inimigo dentro da própria cidadela, os que não chegam a horas, os que não querem trabalhar, os faltam escandalosamente ao dever: “Há pessoas a quem podemos confiar qualquer bem do Estado ou riqueza da nossa terra porque sabemos que o vão defender e preservar e que, quando adquirimos um carro, um trator, uma máquina ou qualquer material para o nosso trabalho, é preciso estimá-lo. Há indivíduos que pegam num carro, fazem duas viagens e arrebentam-no. Muitas vezes um barco que pode durar dezenas de anos, depois de dois ou três meses é posto de lado por falta de cuidados. Se fizermos um balanço de tudo aquilo que destruímos durante estes últimos cinco anos, todos os carros, barcos, parece-me que se fosse possível recuperar esse dinheiro poderíamos fazer grandes investimentos nesta nova década que vai começar agora”. Volta a referir-se ao subemprego na capital e aos vagabundos e ladrões que perturbam a tranquilidade das pessoas.

Outra tónica que acompanha os seus discursos prende-se com os grandes projetos, grande parte deles dependentes da ajuda externa. E também não ilude o grande quadro de carências. Por exemplo: “Temos problemas graves no domínio das infraestruturas. Há ainda algodão que fica em tabancas longínquas do país por não haver estradas convenientes. Ainda temos problemas com portos, estradas, pontes, jangadas, mas também com escolas e hospitais. Mas sabemos que somos capazes de resolver esses problemas. A situação hoje, para todo o indivíduo sério, honesto e patriota, é de longe melhor do que aquela que encontrámos no momento do fim da guerra”. Mais otimismo e crença nos amanhãs, não era possível manifestar.

E depois assistimos a uma entrevista que se realizou em Miraflores em 10 de Fevereiro de 2000. É inconcebível como se publica um texto destes, é verdadeiro desconchavo, a despeito de algumas tiradas sentimentais, de recordações cheias de evocação e ternura. Luís Cabral fala da sua infância em Cabo Verde, depois da vida em Bissau, dos balbucios da luta nacionalista. Tudo decorre num tom altamente estimável, e de repente são frases cortadas, risos, reticências, tudo atinge um ritmo desmandado e questionamos qual o benefício que esta entrevista traz à imagem do lutador e do político. E tudo finaliza com azedume e ressentimento, Nino Vieira está no centro das queixas do político exilado, quando ele diz: “Aquilo que é preciso muita gente dar a sua contribuição para se fazer, um homem só pode estragar. Começasse a criar toda aquela insegurança, porque depois de um longo período colonial cria-se no indivíduo uma insegurança. Então, ele segue, que muitos seguem o caminho mais fácil para conseguir algumas coisas. Na Guiné, chegou-se a um ponto quem não andasse atrás do Nino não tinha hipótese nenhuma”. E a entrevista termina abruptamente.

Os estudiosos da luta da independência e do primeiro ciclo da governação da Guiné-Bissau deparam-se com silêncios, lacunas, desaparecimento de documentos a um ritmo incrível. Ninguém sabe onde param as peças fundamentais do julgamento dos acusados pelo assassinato de Amílcar Cabral. A guerra civil de 1998-1999 fez desaparecer importantíssima documentação, e mesmo documentação de Amílcar Cabral quando veio de Conacri também desapareceu. Fica-se com a ideia de que Aristides Pereira deixou na penumbra inúmeros factos. A historiografia recente é difusa, incompleta e por vezes incongruente. Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa precisaram de vir estudar para Portugal para legar à posterioridade os documentos valiosos que produziram. Um homem talentoso como Carlos Lopes é um alto funcionário das Nações Unidas e parece que não voltou a escrever mais. Os velhos líderes vão desaparecendo e o seu testemunho não fica registado, os primeiros-ministros e ministros também parecem esquecidos que os seus registos seriam da maior utilidade. Ficamos circunscritos aos jornais e aos blogues para conhecer a contemporaneidade. É lastimável que não se consiga pôr cobro a tanto corredor escurecido da história recente da Guiné-Bissau. Oxalá que este promissor novo ciclo da vida democrática altere esta atmosfera de medos e terríveis cumplicidades.
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Nota do editor

Postes anteriores de:

22 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
e
26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14798: Notas de leitura (731): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Luís Cabral e os ministreos do PAIGC, governavam numa mistura de políticas à "Chefe de posto" colonial, no relacionamento pessoal com Régulos no interior, que até lhes falavam à maneira da "psico-social" spinolista, de baixo de grandes mangueiros, com tradutores crioulo/lingua tribal, e ao mesmo tempo tentavam pôr em prática aquele modelo económico soviético dos armazens do povo, em que toda a produção nacional era do Estado.

Claro que o povo aceitou tudo, mas de braços caídos.

No entanto há países sub-sarianos que estão bastante piores que a Guiné-Bissau.

E agora que se fala e escreve que há guineenses a pensar num monumento a Nino Vieira, não devem esquecer que Luís também foi Presidente, e pelo menos que transladam os ossos para Bissau que ainda estão na antiga metrópole.

Nunca é tarde, lembremo-nos que os restos mortais de D. Pedro foram do Porto para o Brasil, cento e tal anos depois da sua morte, pela mão de Américo Thomaz.

Cumprimentos, e usemos a nossa memória e recorrer o menos possível à viquipédia.