quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15092: FAP (87): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - IV (e última) parte




1. Continuação da publicação do artigo do José Matos, "A ameaça dos MiG na guerra da Guiné", Revista Militar, nº 2559, abril de 2015, pp. 327-352 > (*)

por José Matos

[, membro da nossa Tabanca Grande, nº 701; investigador independente em história militar,com particuolar interesse pela guerrano TO da Guiné]


(IV e última parte, com o nosso muito obrigado ao autor e editor por nos disponibilizarem o artigo. Fixação de texto: LG) 


Míssil antiaéreo Crotale que equipa a Força Aérea Francesa...
Cortesia de Wikipedia.

O Crotale

Em 1974, chegam informações ao comando militar em Bissau de voos de aeronaves a mais de 1000 km/h, o que aponta claramente para aviões do tipo caça, provavelmente, os MiG da FAG. Os relatórios periódicos de informação registam 32 voos de origem desconhecida nos primeiros quatro meses do ano, alguns com velocidades demasiado elevadas para serem aviões comerciais [91].

Entretanto, a DGS na Guiné produz vários relatórios, informando que o PAIGC está a construir uma base aérea em Kambera, na Guiné-Conakry. No entanto, um voo de reconhecimento fotográfico levado a cabo por um Fiat G-91, em meados de Fevereiro de 1974, não detecta qualquer base aérea em Kambera [92].

Nessa altura, o governo em Lisboa tinha já em curso a aquisição de dois pelotões de mísseis Crotale R440, um deles para a defesa de Bissau, ficando inicialmente prevista a entrega do primeiro para Maio de 1974 e a do segundo dezoito meses depois [93]. Cada pelotão de Crotale é formado por duas unidades de tiro e uma unidade de aquisição e vigilância, num total de três viaturas.

Em finais de Dezembro de 1973, o 2.º Comandante do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF), Tenente-Coronel de Artilharia Luiz Corte Real, juntamente com o Major da FAP, Mário Silva, deslocam-se a Paris, à Thomson CSF, para uma reunião de trabalho, provavelmente para acertar os pormenores do contrato de aquisição [94].

Finalmente, a 24 de Janeiro de 1974, é firmado o contrato para a aquisição do Crotale pelo montante global de 134 milhões de francos franceses [95], um valor a ser coberto pelas verbas do empréstimo sul-africano. Entretanto, o Tenente-Coronel Corte Real cria um grupo de trabalho constituído por cinco oficiais e nove sargentos para frequentar o curso de preparação do Crotale, em França.

O grupo parte para Paris, em Maio de 1974, onde durante quatro meses toma contacto com este novo sistema de defesa antiaérea [96]. O sistema funciona com base na identificação de aeronaves por interrogação dos seus equipamentos IFF (Identificação Amiga ou Inimiga), em áreas de mínima actividade aérea amiga, o que não era o caso da Guiné, onde o Crotale exigia um dispositivo de defesa aérea mais complexo.

Míssil antiaéreo Crotale NG [Nova Geração], uma
versão mais avançada do originalo R440.
Paris, Air Show, 2007. Fonte: Cortesia de Wikipedia
Em resposta a esta necessidade, o CEMFA, General Correia Mera, informa, em Fevereiro de 1974, o CEMGFA, General Costa Gomes, de que a Força Aérea pretende equipar com IFF, numa primeira fase, “todos os aviões Fiat G-91, NORD, C-47 e B-26, com prioridade para os pertencentes à ZACVG, seguindo-se os das Regiões Aéreas”.

O CEMFA refere ainda que “os aviões T-6 e DO 27 só serão considerados numa segunda fase, pois exigem como condição de montagem do sistema IFF a substituição do gerador e inversor de corrente próprios (…) sendo a mudança demorada” [97].


Os radares de defesa aérea

No início de Fevereiro de 1974, o General Bethencourt Rodrigues escreve ao CEMGFA queixando-se que,“dos 4 radares AN/TPS-1D cedidos pelo Exército, só um poderá vir a ser colocado em funcionamento, mas em condições deficientes. Mesmo admitindo que este radar viesse a trabalhar em boas condições, as suas características técnicas não satisfazem as necessidades de cobertura de radar do T.O., porquanto não fornece dados altimétricos, necessários à Força Aérea, e tem fracas possibilidades de detecção a baixas alturas, característica essencial para a defesa antiaérea”.

Bethencourt Rodrigues refere ainda que teve conhecimento de “haver um estudo para a aquisição de meios electrónicos de detecção no SGDN, para finalidades antiaéreas, conjugado com um trabalho idêntico no EMFA” e pede que “o problema seja encarado com a urgência possível atendendo à situação crítica” que se vive na Guiné [98]. No quartel-general em Bissau existe o receio de uma intervenção aérea apoiada por países africanos, o que tornaria a situação militar no terreno muito complicada.

Nessa altura, o SGDN tinha já constituído um grupo de trabalho com o objectivo de estudar e recomendar um radar móvel para a Guiné. O radar escolhido tinha sido o AN/APR-41 (XE-2), da Dalmo Victor Division, de fabrico norte-americano, um sistema leve e compacto facilmente transportável em aviões e helicópteros, sendo possível adaptá-lo também a veículos e posições fixas [99].

Por seu turno, a Força Aérea tinha estudado o TRS 2200 (Picador), da Thomson-CSF, e o S600 (sistema 2), da Marconi, tendo preferência pelo radar da Marconi [100]. No entanto, quando este estudo comparativo chega ao conhecimento da 1ª Repartição do SGDN, são detectadas várias imprecisões no estudo da FAP, o que leva o SGDN a propor “a criação de uma comissão ao nível da Defesa Nacional a fim de equacionar devidamente o problema” [101].

A referida comissão é criada ainda durante o mês de Abril, mas com a mudança do regime a 25 de Abril e o fim da guerra colonial algum tempo depois, nenhuma destas aquisições se concretiza. Sabemos, no entanto, por uma nota da Direcção dos Assuntos Económicos e Financeiros (DAEF) do Ministério dos Estrangeiros francês, que, a 5 de Abril, Paris tinha autorizado a venda de cinco radares Picador pelo valor de 75 milhões de francos [102].

Mas, nessa altura, Portugal não tinha ainda tomado qualquer decisão sobre o assunto. Na mesma nota da DAEF é também referido que o Primeiro-Ministro francês tinha autorizado a venda a Portugal de 32 Mirage IIIE pelo valor de 750 milhões de francos, mas com a ressalva dos aviões não serem deslocados, nem para a Guiné-Bissau nem para as ilhas de Cabo Verde. O valor indicado ronda 4,2 milhões de contos, o que significa que 70% do empréstimo sul-africano seria para pagar os Mirage.

Apesar do fim da guerra, um pelotão de mísseis Crotale ainda chega a Lisboa, em Setembro de 1974, e segue para as instalações do Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea e Costa (CIAAC), em Cascais [103]. Porém, em 1976, é vendido à África do Sul com a mediação da Thomson e as verbas já pagas são devolvidas a Portugal [104].

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O autor agradece aos arquivos do Exército, da Força Aérea e da Defesa Nacional, as facilidades concedidas para esta investigação. Igualmente, a Manuel Couto, Tenente-general José Nico, Coronel Pereira da Costa, Tenente-coronel Luís Barroso e Capitão Alberto Cruz, os comentários e informações transmitidas e ao Casimiro Serra a ajuda na pesquisa de informação cubana.

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 Notas do autor:

[91] Diversos PERINTREP da Guiné, ADN/F2/SSR.002


[92] Nota n.º 324 (folha de circulação) do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, 2 de Março de 1974, ADN/SGDN 3556.1.


[93] Cunha, Silva, O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril, Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 318.


[94] Informação nº 36232/GC do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Assunto: Mísseis Crotale, Secretariado Geral da Defesa Nacional, Lisboa, 28 de Dezembro de 1973, ADN/F3/4/8/39.


[95] Protocolo para a negociação da devolução à firma Thomson CSF de um sistema de armas “Crotale”, 2 de Julho de 1975, ADN Fundo geral 833/7.


[96] Maurício, Henrique, Testemunho in Boletim da Artilharia Antiaérea Especial “60 anos da Artilharia Antiaérea em Portugal”, nº 3, II Série, Outubro de 2003, pp. 112-113.


[97] Nota n.º 78-P-4.1.5 do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea para o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Assunto: Defesa aérea da Guiné (Bissalanca), 11 de Fevereiro de 1974, SDFA/AH, 1.ª Região Aérea, Cx. 102, Processo 430.201.


[98] Carta do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné para o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Assunto: Defesa Aérea, Bissau, 4 de Fevereiro de 1974, ADN/F3/17/37/51.


[99] Informação n.º 1/74 do Grupo de Trabalho para Adopção de Radares de Vigilância Próxima, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, 9 de Janeiro de 1974, SDFA/AH, 1.ª Região Aérea, Cx. 102, Processo 430.201.


[100] Informação nº 4/74 da Secretaria de Estado da Aeronáutica, Assunto: Estudo comparativo dos radares de Defesa Aérea Picador e Marconi S600, 3 de Abril de 1974, ADN Fundo Geral SGDN 6836/1.


[101] Informação n.º 77/RA da 1ª Repartição do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Assunto: Estudo comparativo dos radares de Defesa Aérea Picador e Marconi S600, 9 de Abril de 1974, ADN Fundo Geral SGDN 6861/1.


[102] Nota da Direcção dos Assuntos Económicos e Financeiros, Assunto: Venda de armamento a Portugal, 31 de Maio de 1974, Archive du Ministère des Affaires Estrangères (AMAE), Europe 1971-1976 – Portugal – Caixa 3501.


[103] Maurício, op. cit., p. 113.


[104] Memorando sobre o Crotale, 31 de Dezembro de 1975, ADN Fundo Geral Cx. 833/7.

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Nota do editor:

Postes anteriores da série >

6 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15077: FAP (84): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - Parte I

8 comentários:

António Martins Matos disse...

Tenho que felicitar o José Matos pelo seu exaustivo trabalho de pesquisa, deu-nos a conhecer uma outra visão, a dos Altos Gabinetes e EMs, como a política e as chefias militares lidavam com os assuntos da distante (para eles) Guerra do Ultramar.

Constatei o que sempre tinha suspeitado, como assuntos importantes eram discutidos, avaliados e decididos por alguns “teóricos”, sem ouvirem a opinião dos “combatentes”, dou dois exemplos:
- Quererem meter mísseis ar-ar num avião (FIAT G-91) que era concebido para missões ar-chão, mal comparado, seria o mesmo que meterem pneus de corrida num Smart;
- Não havendo uma cobertura eficaz de defesa aérea na Guiné, a compra dos Crotale era totalmente descabida, estes mísseis não podem (devem) actuar a solo mas sim englobados num sistema mais vasto de defesa aérea, por si só o operador de tão sofisticada bataria de mísseis nunca conseguiria destrinçar um G-91 de um MIG. (foi assim que os separatistas na Ucrânia deitaram abaixo um comercial, pensando que estavam a abater um bombardeiro ucraniano).

Só há pouco tempo constatei que havia um radar de defesa aérea na Guiné, até tenho uma foto onde o malfadado radar aparece em fundo, malfadado porque preciosa ajuda nos teria dado se estivesse a funcionar, essencialmente para nos guiar quando em missões de má visibilidade, o elemento que faltava para que se pudessem fazer missões de noite.
Dois anos de comissão e … nunca mexeu!

Sobre as estórias dos MIGs, já aqui no blogue e em tempos escrevi sobre o tema, penso que o texto do José Matos e o meu se complementam, apenas um comentário, contestar a afirmação de, na operação Mar Verde, ao não terem encontrado os MIGs, “alguém” ter afirmado que eles estariam em LABÉ.

LABÉ ainda hoje não tem uma pista capaz de receber MIGs, está situada num planalto a uma altitude de 3396 pés (1000 metros) e tem um comprimento de 6500 pés (2000 m), os MIGs precisavam de uma pista asfaltada e com um comprimento mínimo de 8000 pés.
Aliás e se quisermos ser mais picuinhas, se hoje um qualquer MIG quiser aterrar na Guiné, tem de ser em Conacri, caso contrário … parte a cara.

Do acima escrito reafirmo as minhas conclusões, ou não havia MIGs na Guiné, ou, se havia, estavam em Conacri!

A minha pergunta:
Será que os da missão MAR VERDE foram ao aeroporto?

Abraços
AMM

antonio graça de abreu disse...



Pois é, fala quem sabe, fala o nosso tenente-general António Martins de Matos. Fala de ciência certa, do conhecimento que lhe advém de centenas de horas pilotando os Fiats G 91, e DOs 27, por céus da Guiné, anos 1972/74.

O cagaço, o medo, o empolamento da capacidade militar (aérea neste caso)dos Migs (?) do PAIG -- que tem tido defensores e militantes activos neste nosso blogue!-- é uma outra e a mesma realidade.
Abençoadamente, para todos nós, nunca ninguém viu um Mig,a sério, ou um pombo correio, do PAIGC a voar sobre as nossas cabeças, Guiné, 1963/1974.
Por, favor, a bem dos nosso dois povos, não falsifiquem a nossa história comum.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Diz António Matos "se hoje um qualquer MIG quiser aterrar na Guiné, tem de ser em Conacri, caso contrário … parte a cara".

Peço desculpa ao António Martins de Matos, mas a pista do aeroporto de Bissalanca (Osvaldo Vieira) desde 1983 já tem mais 1000metros de extensão e desde essa data os russos já tinham la instalados 2 aviões MIG 21.

E embora um desses aviões certa vez ter confundido a pista do aeroporto pela contígua estrada de Safim, (dizem que faltou combustível) não quer dizer que os russos se quisessem não pudessem chegar a Bissau sem GPS em 1974.

Cumprimentos

Manuel Luís Lomba disse...

Como soldado sobre a terra da Guiné, é-me gratificante protestar ao camarigo e soldado do ar António Martins Matos o meu reconhecimento a um dos que "nunca tantos deveram tanto a tão poucos"...
Voltando ao meu comentário, confirmo ter-me familiarizado com 4 aviões a jacto negros num contexto exibicionista, na placa do aeroporto de Bissalanca, 7 ou 8 anos após a independência do território, a que chamavam MIG que, ante a explicação, não poderiam ser MIG`s, dado que a pista tinha as dimensões deixadas por Portugal.
Aquela minha estada profissional em Bissau prendia-se com a remodelação e expansão, para o capacitar a receber Jumbos, empreitada financiada pelo Kwait e concluída em 1983, a que Nino Vieira deu o nome do seu primo Osvaldo Vieira, o primeiro comandante do PAIGC, ostracizado (ou mandado executar) no consulado de Luís Cabral, no contexto da morte violenta de Amílcar Cabral.
O MIG "come" mais pista que o Jumbo?
Abraço
Manuel Luís Lomba


António Martins Matos disse...

Ao Antº Rosinha e Manuel Luis Lomba

Há aqui um equívoco, talvez falha minha, quando digo que os MIGs só podem aterrar em Conacri estou obviamente a referir-me à GUINÉ, não à Guiné-Bissau.
Na Guiné-Bissau sempre houve 2 pistas aptas a aviões deste tipo, Bissalanca e N Lamego.

Abraços
AMM

Antº Rosinha disse...

AMM, só uma pergunta técnica: como nunca vi, ouvi falar em Bissau que os FIAT, precisavam de abrir um para quedas para ajudar à travagem.

Era mesmo assim e faziam-no todas as vezes que aterravam em Bissalanca?

E aquela minúscula pista em terra em Nova Lamego, era só para emergência/alternativa a Bissau, ou era usada regularmente pelos FIAT?

Fosse com fosse, fomos todos loucos, foi tudo uma loucura (maravilhosa), honra aos que morreram, nós e os africanos que sempre estiveram ao nosso lado.

António Martins Matos disse...

Respostas ao Antº Rosinha

Era procedimento normal na aterragem do FIAT-G91 a utilização de um para-quedas para ajudar a travar o avião.

A pista de Nova Lamego não era de terra, era asfaltada (cimentada?), era uma alternativa a Bissau anda que, por algumas vezes, fosse utilizada como ponto de partida para missões.

Os aviões a jacto, Fiat, Mig, Boeing, Airbus,..., não podem utilizar pistas de terra, as poeiras, pedras e outros detritos danificam os motores.

Abraço
AMM

Ultramar Naveg disse...

... este 'comment', dirigido exclusivamente ao jovem autor do artigo publicado na Revista Militar.
Àparte o seu trabalho de pesquisa, tratamento e cruzamento de informações, o qual é de elogiar, é bom de ver, imediatamente, se tratar de dar continuidade ao logro da "rapaziada d'abril", quando decidiu titular aquela peça, como «A ameaça dos MiG na guerra da Guiné», sabendo-se, desde então, que jamais existiu qualquer "ameaça", credível, sobre a hipótese de uma escalada de "guerra aérea", fosse qual fosse o território.
Nunca, em situação alguma de 'guerrilla warfare', se recorreu, recorre ou recorrerá a meios de "guerra clássica".
Cpts