quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18251: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (47): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (2)

Paisagem duriense, Património da Humanidade


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.
Aqui deixamos a segunda parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

47 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (2)


A razão de um nome… 
Porquê Pedro Milanos?

Por José Manuel Lopes 

PEDRO MILANOS é o anagrama de ARMINDO LOPES, o autor do poema que estava nos contra rótulos. (Ambos os nomes têm as mesmas letras, só que por ordem diferente).
Por trás de um nome está sempre uma história e esta é a de um homem que viveu sempre apaixonado pela sua região. No fim da década cinquenta, passava na tv um programa sobre as 7 maravilhas do mundo… 
Com cerca de 8 anos a grandeza de tais obras me deixaram encantado, particularmente as Pirâmides do Egipto e perguntei a meu pai: 
- Qual das sete maravilhas é a de Portugal? 
- Nenhuma. 
- Pois, nós somos um País muito pobre! 
- Achas!? Anda daí comigo. 

Subimos ao mirante da casa, abriu a janela e disse. 
- Que vês rapaz? 
- Vejo montes. 
- E nos montes o que é que há? 
- Vinhas. 
- E as vinhas são feitas de quê? 
-Videiras e folhas. 
- E essas videiras estão onde? 
- Na terra. 
- E a terra como está segura? 
- Bem!?...não sei como. 
- Pelos muros de pedra meu filho. Consegues contar todos os que vês? 
- Não, eles são tantos. 
- Agora imagina, quantos não haverá pelo Douro fora… Todos juntos, são uma obra muito maior que as Pirâmides do Egipto. Passam é despercebidos. 

E foram passando, até que um dia em 2001, dez anos depois da morte de meu pai, recebo a notícia pela TV de que o Douro, as suas vinhas e os seus muros, passavam a ser Património da Humanidade. 
Como ele teria adorado ter tido conhecimento disso! 

Decidi dar o nome de Pedro Milanos ao primeiro vinho feito pelo meu filho Vasco, que é enólogo e neto de Armindo Lopes.

Um brinde de camaradas ex-Combatentes da Guiné, com Reserva Pedro Milanos, na Tabanca de Matosinhos. 

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 (Outros poemas do Zé Manel) 

Heróis que a história não narra 

Por José Manuel Lopes

“Quinze dias após a nossa chegada à Guiné estávamos em Bolama a fazer o treino operacional (IAO) que duraria cerca de um mês, após o que partiríamos para o Sul da Guiné, Mampatá Forreá que seria o nosso lar nos próximos 2 anos. 
Naquele dia, fazia-se fogo real com o dilagrama e foram escolhidos os soldados para utilizar esse tipo de arma. O Instrutor do Batalão, onde fomos anexados pontualmente, que era o Alferes Figueiredo, estava a ensinar o instruendo,o Soldado António Mata da minha Companhia. 
Após o Mata ter retirado a cavilha da granada defensiva, a alavanca desta saltou imediatamente, pois a anilha de segurança tinha caído e ninguém se apercebeu disso. Instintivamente o Alferes deitou as mãos à granada que menos de 4 segundos depois lhe rebentou nas mãos. Ambos foram atingidos em cheio tendo morte imediata. Os seus corpos receberam a grande maioria dos estilhaços e protegeram todos que à volta assistiam ao lançamento do dilagrama. Houve alguns atingidos por um ou outro estilhaço, mas sem gravidade. 
O Mata era casado. A mulher quando se despediu dele já estava grávida. Meses depois nasceu uma menina que nunca conheceu o Pai, nem por foto, pois a mãe casou novamente pouco tempo depois.

Trinta anos passados, fomos à procura daquela jovem emigrante em Paris. Tal como o vínhamos fazendo com outros camaradas mortos, colocando no túmulo uma placa com um poema dos meus, queríamos fazer uma homenagem ao António Mata, sepultado em Pinhel. 
Fomos lá no verão, quando a mãe estava cá de férias. Porém, a filha ficara em Paris e sem qualquer interesse em vir a Portugal. E contacto telefónico com ela, a partir de Pinhel, ela manifestou-se sensibilizada com a nossa atitude mas confessou que não possuía qualquer ligação com o seu pai, de quem nem foto conhecia. 
Viemos a saber que o padrasto não permitiu nunca essa ligação. Manifestámos-lhe a nossa intenção na homenagem e prontificámo-nos a pagar-lhe a viagem, se necessário. 
Efectivamente, a filha do Mata acabou por aceder ao nosso desejo. Veio cá, assistiu à homenagem e viu colocarmos a placa de mármore, sobre a campa do seu pai, onde se destacava a sua foto de Combatente a encimar um poema. 
Sensibilizada com a nossa atitude, recebemos a sua emocionante mensagem: 
- “Nunca conheci meu pai, vosso camarada, mas hoje pelo menos, tive um pai em cada um devocês. Muito obrigado." 
Presentes nessa homenagem estiveram cerca de 12 elementos dos Unidos de Mampatá (Cart 6250).

Gostava de vos falar 
dos esquecidos 
dos heróis que a história 
não narra 
que as viúvas choraram 
mas já não recordam 
daqueles 
que nem tempo tiveram 
para ter filhos 
que os amassem 
descendentes 
que os lembrassem 
daqueles que nunca 
tiveram o dia do pai 
vítimas de guerras 
que não inventaram 
em tempo que já lá vai 
falar deles é prevenir 
se bem que de nada 
lhes valha 
de guerras que possam vir 
geradas pela ambição 
dos 
que nunca morrerão 
num campo de batalha."

Assistência aos feridos 
 
Puseste o pé em sítio errado

Por José Manuel Lopes

“Março de 1973. A construção da estrada alcatroada havia começado em Aldeia Formosa, 7 Km depois atravessava Mampatá e seguia na direcção da Fonte de Iroel, como uma gigantesca jibóia negra lá ia até Colibuia, seguindo paraNhacobá e um dia havia de chegar ao Cumbijã. Era como uma faca encravada nas zonas até ai controladas pelo PAIGC, atravessava o corredor de Uane, virava para Sul ao Cumbijã e facilitaria o controlo pelas nossas tropas de toda aquela área. 

A todo o custo o PAIGC tentava evitar a sua progressão e para tal plantavam minas por todo o lado a fim de destruir viaturas e máquinas de desaterro que trabalhavam na abertura da estrada. Logo ai o trabalho para detectar as minas era importantíssimo. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente dos trabalhos e depois fazia-se a segurança à engenharia e aos operadores das máquinas. O trabalho dos Furriéis de Minas e Armadilhas era importantíssimo e o Vilas Boas distinguiu-se nisso. Perdi a conta às minas que ele levantou. 

Um dia na rotina habitual os picadores da frente gritam:mina!. Todos param. O Albuquerque repete a mensagem (mina!) e dá um passo atrás. Pisou uma mina antipessoal.

Puseste o pé em sítio errado 
um som violento, o pó levantado 
escondeu por algum tempo 
o teu corpo violentado 
sem pensar em outras minas 
correram em teu socorro 
o sangue fugia do teu corpo 
e o "hélio" não chegava 
 tua cara, ainda de criança 
ficava cada vez mais pálida 
tudo num silêncio angustiado 
Apesar dos teus vinte anos a 
vida fugia-te em golfadas 
porquê tanto sangue derramado?”

Minas 

Parece inofensiva a maldita 

Por José Manuel Lopes

“Desde o início da construção da estrada que as picagens se tornaram um cenário diário e hoje mesmo me surpreendo, como só tivemos uma vítima nesse trabalho perigoso que se tornou numa rotina. Só um trabalho muito responsável e competente dos picadores e dos Furriéis de Minas e Armadilhas explica tudo isso. Grande Vilas Boas e Fernandes! 

"Estradas amarelas corpos 
cobertos de pó 
pica na mão à procura delas 
o polegar ferrado num pau 
tac,tac,tac,tac,tac,tac 
tacteando por sons diferentes 
o Fernandes com cara de mau 
espeta no solo 
o ferrão da pica 
tac,tac,tac,tac,tac,toc... 
o calafrio... 
depois o grito 
anunciando o perigo 
o grupo é mandado parar 
chega o Vilas à frente 
e todos manda afastar 
de joelhos no chão 
numa simulada carícia 
afasta a terra com a mão 
com gestos simples e perícia 
vai cavando devagar 
ei-la... está aqui 
parece inofensiva a maldita 
deita-lhe a mão e grita 
és minha, já te tenho 
tira-lhe o detonador 
e entre dentes diz... 
esta não 
esta não causará dor.”


Cheira a emboscada

Por José Manuel Lopes

"Em fila indiana 
vai o grupo pela picada 
um silêncio pesado 
de natureza estranha 
deixa os sentidos alerta 
cheira... a emboscada 
aos primeiros tiros 
todos caem no chão 
há avisos e gritos 
e reina o palavrão 
responde-se de pronto 
com a arma na mão 
subitamente, de lá 
as armas se calam 
enquanto por cá 
elas ainda falam 
e eis que 
o silêncio volta 
e chega a segurança 
regressa a confiança 
olha-se em volta 
há um corpo caído 
que não grita nem mexe 
se adivinha razão 
engole-se em seco 
se desvia o olhar 
se esconde a emoção."

************

Não pode haver melhor prenda 

Por José Manuel Lopes

 
Em dia de correio, o grupo de serviço ia levantá-lo à Aldeia Formosa. Uma secção montava-se num Unimog, lá ia em busca das boas novas, aproveitando para levar as cartas que os militares escreviam aos familiares e madrinhas de guerra. 

Eu raramente escrevia. A minha mãe queixou-se disso na primeira vez que vim de férias. Eu dizia-lhe que pouco havia para contar e que não se preocupasse, pois no nosso caso, a falta de notícias era a melhor das notícias, se algo corresse mal, a má nova chegava rápido. 
Havia um Furriel já casado que todos os dias escrevia à mulher e numerava as cartas. Quando após o almoço passava junto à tabanca dele, lá estava o Santos sentado a escrever. Eu perguntava: 
- Oh Santos quantos dias já levamos disto? 
Ele olhava para a parte superior da primeira folha da carta e dizia: 
-184, não falha. 

Quando o correio chegava, ele recebia 7,8,10 cartas, pois a mulher também lhe escrevia todos os dias, mas nós não recebíamos o correio com muita regularidade. 

Um dia foi a minha vez de ir buscar o correio a Aldeia Formosa e fiz uma maldade. Retirei do saco todas as cartas endereçadas ao Santos e guardei-as no bolso lateral das calças. 
Ainda hoje recordo o olhar angustiado daquele Furriel a assistir à distribuição do correio. Entretanto, eu já tinha passado pela tabanca dele e deixado 6 cartas em cima da cama. Depois, assisti ao caminhar pesaroso do Santos, da cantina até à sua tabanca. 

De seguida, ouve-se um grito de surpresa. Ele sai e diz: 
- AH SEU FILHO DUMA PUTA, ISSO NÃO SE FAZ!... NA PRÓXIMA, DOU-TE UM TIRO NOS CORNOS!"

"Um ruído vem do céu 
e há cabeças no ar é que 
é dia de correio 
há novas para chegar 
faz-se a distribuição 
com chamada frente ao bar 
para o Santos, nada veio! 
será que vai desmaiar? 
p'ró Zé Manel veio a Bola 
com notícias do Benfica 
p'ró Nelson uma encomenda 
e há quem lhe mande uma dica 
fazendo-se para a merenda 
sim, de correio foi o dia 
não pode haver melhor prenda 
é tempo de alegria 
retiram-se os felizardos 
procuram privacidade 
relêem a mesma carta 
até afogar a saudade." 

************

Ao Santos de Leça 

 "Um dia nunca passava 
sem que escrevesse uma carta 
à mulher que tanto amava 
como se fosse promessa 
e todas elas numeradas 
como que a testemunharem 
a grande paixão do Leça"

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Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em boa hora, Zé Ferreira, retomas os poemas do nosso Josema...de que eu já tinha saudade. Bem hajas...

Ele disse-me, há 10 anos atrás, que em Mampatá todos os dias escrevia um ou mais... Depois, quando voltou, num dia negro queimou a maior parte dos papéis da Guiné... Sobraram seis dezenas de poemas...

ze manel cancela disse...

Já li muitas vezes estes poemas do meu amigo Zé Manel
mas continuo a gostar,como se fosse a primeira.
Um obrigado ao Zé Ferreira,por os ter divulgado
mais uma vez......

Anónimo disse...

Não sei que escrever, recordar os heróis anónimos é um misto de satisfação e tristeza. Recordar aqueles que connosco partilharam alguns momentos daquele tempo nem sempre é fácil, alguns eram amigos verdadeiros, outros, mesmo que só companheiros, eram uma parte de nós, ninguém estava sozinho, estávamos, no mínimo, unidos pela mesma situação.
Gostei de ler os poemas do Josema.
Interessante também a explicação dada para a escolha do nome do vinho que tão bem nos sabe.
Ao José Ferreira da Silva o obrigado por dar a luz do dia aos poemas do Zé Manel.
BS

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Belarmino, os poemas do josema (, o pseudónimo do José Manuel Lopes) estão há muito publicados no nosso blogue... Vd. série "Poemário do José Manuel"...Pesquisa em "poemário":

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/poemário

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Este é um dos que mais gosto... Sobre ele escrevi:

(...) Este poema do Josema merece figurar em qualquer antologia da poesia da guerra: é uma homenagem aos nossos "picas" e sapadores, metropolitanos e guineenses, que eram na altura os melhores do mundo...

"É também um grito contra essa arma, a mina (A/C, A/P), que era um "assassino silencioso", usado tanto pelo IN como pelas NT... Todas as armas são "sujas", esta era talvez a pior de todas... Há centenas e centenas de camaradas nossos que ainda hoje trazem no corpo e na alma as suas "marcas", fora os que infelizmente morreram por ação, direta e indireta, de minas e armadilhas...

Obrigado, Josema! (...)



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Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

por Josema [José Manuel Lopes] (*)

Estradas amarelas,
corpos cobertos de pó,
pica na mão à procura delas,
o polegar ferrado no pau,
tac, tac, tac, tac, tac, tac,
tacteando por sons diferentes,
o Fernandes, com cara de mau,
espeta no solo o ferrão da pica,
tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!...

O calafrio,
depois o grito,
anunciando o perigo!

O grupo é mandado parar,
chega o Vilas à frente,
e a todos manda afastar:
de joelhos no chão,
numa simulada carícia,
afaga a terra com a mão,
com gestos simples e perícia,
vai cavando devagar...

Hei-la... está aqui,
lisa, preta, a brilhar,
parece inofensiva, a maldita,
deita-lhe a mão e grita:
– És minha , já te tenho.

Volta-a,
tira-lhe o detonador
e entre dentes, diz:
– Esta, não,
esta não causará dor.


Josema, Guiné, s/l, c. 1972/74 [Revisão e fixação de texto: LG]


1 de março de 2016
Guiné 63/74 - P15813: (De)Caras (31): José Manuel Lopes (Josema), o poeta duriense de Mampatá... Relembrando um dos seus poemas de antologia, Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2016/03/guine-6374-p15813-decaras-31-jose.html

Anónimo disse...

Que digo eu ?

Testemunha dos factos narrados, ou não fosse eu um dos Unidos de Mampatá, sinto-me grato ao Zé Ferreira pelo seu trabalho de divulgação de um certo olhar da guerra pelo prisma do Zé Manel da Régua, em pedaços de prosa e magníficos poemas. O Zé Manel terá sido a figura mais exótica e mais heterodoxa da C.Art.6250, sempre generoso e solidário com os seus camaradas, ao ponto de se voluntariar para alinhar no mato em substituição de qualquer um, sempre correctíssimo na sua relação com os militares e civis guineenses, particularmente amigo das crianças que ensinava a jogar futebol ou as primeiras letras na escola.
Para ele, para o Zé Ferreira e par todos os tabanqueiros, um grande abraço.
Carvalho de Mampatá.