quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19067: Historiografia da presença portuguesa em África (133): Um administrador de Fulacunda reticente às ordens do Governador Carvalho Viegas, 1935 (Mário Beja Santos)

Monumento comemorativo das operações de pacificação em Canhambaque, 1935-1936.
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2018:

Queridos amigos,

Se uma andorinha não faz a primavera, um relatório preparado à pressa por um chefe da 4.ª Secção explicando ao Senhor Governador Carvalho Viegas porque não fora bem sucedido no cumprimento da terminação de trazer 150 Beafadas para a campanha de pacificação do Canhambaque, e em que o funcionário denuncia processos de obstrução do administrador da circunscrição de Fulacunda não traz por si qualquer fotografia de um quadro de hostilidade entre o governador e os seus diretos colaboradores, os administradores da circunscrição.

O funcionário António Pereira Cardoso tinha que justificar por que é que trazia tão poucos Beafadas para a campanha, e o relatório desvela que o administrador pretendia gerir vários equilíbrios entre os régulos Beafadas do território. A mensagem principal, no entanto, parece clara: a Administração da Guiné ainda estava muito tenrinha, com muitas pontas soltas, com contestações algo surdas e veladas.

Um abraço do
Mário


Um administrador de Fulacunda reticente às ordens do Governador Carvalho Viegas, 1935

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia encontrei o relatório de António Pereira Cardoso relativo ao trabalho de que foi incumbido em 1935, no sentido de mobilizar auxiliares indígenas para serem incorporados no contingente militar enviado à ilha de Canhambaque “para chamar à nossa soberania os naturais insubmissos havia anos”. António Pereira Crespo era o chefe da 4.ª Secção da Repartição Central dos Serviços da Administração Civil, em Bolama, data o seu relatório de 13 de novembro. Poderá ser para os historiadores peça extremamente útil para aquilatar a fragilidade das relações entre o governador e administradores de circunscrição, com o recurso a tricas e rivalidades entre régulos.

Escreve-se assim:

“Em 11 do corrente segui para Fulacunda, acompanhado pelo chefe dos Mandingas de Bolama, Mamadu Canté, para trazer para Bolama 150 indígenas Beafadas com destino a Canhambaque.
As instruções do Capitão Sinel de Cordes eram para preferirem indígenas voluntários de acordo com o chefe dos auxiliares, régulo Mamadu Canté. Ficou combinado que só viria um régulo que Mamadu Canté escolheu, o da região de Quínara, Buli D’Jassi. Considerei de boa política, dadas as rivalidades existentes entre os régulos Beafadas da Circunscrição Civil de Fulacunda, que não fosse só aquele régulo a fornecer homens, pelo que se convidou os régulos de Fulacunda e de Gam-Pará, Sene D’Jassi e Malam Mané.

O administrador de Fulacunda informou-me que era impossível conseguir os 150 homens de um dia para o outro, este serviço não se faria em menos de 5 dias. Ripostei com os comprometimentos do régulo Buli D’Jassi e dos régulos de Fulacunda e Gam-Pará, pelo que dissemos ao administrador que não sairíamos dali sem cumprir a determinação de Sua Ex.ª o Governador.

Telefonei para S. João para que o chofer trouxesse arroz para ali, visto que os indígenas se iriam concentrar às primeiras horas da manhã, e que lhe comunicasse para Fulacunda o número de homens que chegassem com o régulo Buli.

O régulo Buli não chegou ao longo do dia 12, a resposta foi negativa, facto este que se repetiu durante o dia. Entretanto, particularmente, era informado por Mamadu Canté que o régulo Buli lhe dissera que o Senhor Administrador de Fulacunda estivera lá na véspera, dia 10, e este senhor lhe dissera que não deixasse sair ninguém nem fornecesse gente alguma, e que isto já lhe havia sido confirmado a ele, Mamadu Canté, durante aquele dia 12, razão por que Buli, com receio de ser castigado pelo Senhor Administrador, desobedeceu ao que por Sua Ex.ª o Governador lhe fora mandado cumprir.

No dia 12, em Fulacunda, e cumprindo as ordens de Sua Ex.ª o Governador, chamei para junto de mim Mamadu Canté, na varanda da Administração, e com o seu auxílio principiei a relacionar e identificar por cada regulado e povoação os indígenas que se apresentavam por intermédio dos régulos, tendo a dada altura o Senhor Administrador arrancado o gorro de lã que o régulo Buli trazia na cabeça, atitude esta contra o que o primeiro pretendeu reagir, alegando não se encontrar dentro da Administração e já ter cumprimentado aquela autoridade.

Aconselhado o chefe citado a cumprir a ordem do Senhor Administrador, o signatário conseguiu sanar o incidente, pretendendo no entanto aquele senhor que os régulos acompanhassem a sua gente, ao que retorqui, dizendo que as ordens de Sua Ex.ª o Governador e do senhor Capitão Sinel de Cordes eram terminantes: o chefe dos Beafadas, na campanha, seria Mamadu Canté e o subchefe Buli D’Jassi, régulo de Quínara. Mediante este esclarecimento, o Senhor Administrador de Fulacunda fez incluir no número dos indígenas recrutados um enviado de cada um dos régulos de Gam-Pará e Fulacunda, enviados esses a quem deveriam obedecer os recrutados referidos.
Perante, porém, a minha insistência, sobre as ordens que recebera, aquele senhor transigiu, condicionando que a acção de tais enviados terminaria no momento em que fossem entregues em S. João.

Pouco depois das 12 horas do já citado dia 12, como a única camioneta que se encontrava em serviço do transporte de indígenas não fosse suficiente para poder, a tempo e horas, dar cumprimento ao que me fora determinado, isto é, estarem todos os indígenas em S. João às 19 horas, mandei perguntar para o depósito de STT se não haveria mais alguma disponível, sabendo então, por intermédio do Secretário da Circunscrição, Sr. Eduardo de Lencastre Laboreiro Fiúza que o senhor Capitão Cordes se encontrava ali e a quem, veladamente, dei a entender o que se estava passando. Depois de eu ter largado o telefone, voltou o senhor Fiúza a entabular conversa com o senhor Capitão Cordes, enquanto que a lápis ia anotando o telefonema que deste senhor estava recebendo e em que o último pedia, em nome de Sua Ex.ª o Governador a cedência da camioneta da Administração para facilitar o serviço.

De posse do recado, dirigiu-se o Sr. Secretário à Administração, de onde e daí a pouco e quando o relatante aguardava a chegada dos indígenas, chegou até si o diálogo, um pouco violento, trocado entre o Senhor Administrador e o Secretário, em que o primeiro daqueles dizia em voz alta e bem timbrada: ‘Meta-se no seu serviço que já não faz pouco!... Quem manda aqui sou eu!... Deixei o resto comigo!...’.

Forçado a intervir no assunto, o caso ficou arrumado sem que a minha intervenção nele houvesse influído.

Pouco depois surgia em Fulacunda o senhor Capitão Cordes, que tomou conhecimento do número de indígenas que ali se encontravam, regressando novamente a S. João.

Pouco depois das 16 horas, tomava eu o caminho de Bolama, acompanhando os últimos indígenas – de Gam-Pará e Fulacunda –, ficando na povoação do régulo Buli, a fim de inquirir os motivos da sua desobediência e falta de palavra.

Disse-lhe algumas palavras amargas; fui até duro para com ele, e atingi-lhe o ponto vulnerável dos Beafadas, chamando-lhes preguiçosos, eternos desgraçados, acriançados, desobedientes.
Então, a reserva e o mutismo a que Buli se havia remetido quebraram-se e ele falou que a sua gente estivera toda reunida e estava ainda, quando recebeu um recado de Fulacunda dizendo que ele não seguiria. Que, em face disto, os seus homens dispersaram procurando as suas povoações, era este o motivo por que eu ali não achara ninguém e ele estava agora a sofrer de tal vergonha.
Como a camionete havia seguido para S. João, levando os últimos recrutados, pusemos os dois os pés a caminho e procurámos remediar este contratempo.

Concluindo:

Às 23 horas, pouco mais ou menos, chegávamos a S. João com 27 homens da jurisdição de Buli D’Jassi (que fiz transportar, juntamente comigo, em duas canoas gentílicas) desembarcando em Bolama cerca da uma da manhã, completamente encharcados, fazendo-os recolher à povoação de Mamadu Canté. E, sem ter jantado, sem dormir desde as duas da manhã do dia 11, após ter mudado de fato, acompanhado de Buli D’Jassi, uma hora depois, às duas da manhã, atravessámos para S. João indo percorrer o Quínara em busca de voluntários, onde conseguimos mais 23 que, também em canoas, fizemos transportar para Bolama, hoje às 8 da manhã.”

Não vale a pena fazer conjeturas sobre o procedimento do Administrador de Fulacunda quanto às instruções firmes do Governador Carvalho Viegas. Continuavam a ser muito melindrosas as relações entre os régulos Beafadas, não há qualquer elemento, só da leitura deste relatório, que permita supor que o Administrador geria airosamente o relacionamento entre régulos, procurava contrariar orientações de Bolama que agravassem as suscetibilidades entre régulos.

Acresce a hostilidade permanente entre os Beafadas e os Bijagós, estes últimos tudo fizeram para subjugar Beafadas, foram escorraçados, depois de muitas e ásperas lutas. E há documentos, como os relatórios dos gerentes do BNU da Guiné, assegurando que as vitórias de Carvalho Viegas nos Bijagós eram bem precárias. Mas em 1936, Canhambaque preferiu a capitulação, em todo o arquipélago passou a pagar-se tributo, a Guiné era oficialmente dada como colónia pacificada.




Primeira e última página do relatório do Tenente José Ribeiro Barbosa, à frente do Comando Militar do Oio, com data de 1 de janeiro de 1915, respondendo aos quesitos do Governador, publicados num Boletim Oficial de 1914.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19049: Historiografia da presença portuguesa em África (131): Relatório de um alto funcionário maltratado na Revolução Triunfante, 1931 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Deixo aqui um comentário de agradecimento ao camarada Beja Santos pelo seu incansável labor, de pesquisa, original, nos nossos arquivos, relativamente a temas e problemas que têm interesse para a história do séc. XX de Portugal e das suas relações com o antigo território da Guiné, hoje Guiné-Bissau.

O que sabemos nós da "última batalha das campanhas de pacificação" (um eufemismo...) do território ? Foi em 1936, em Canhambaque, no arquipélago dos Bijagós... Poucos de nós sabiam disto quando fomos mobilizados para "outra guerra", trinta anos depois...

Ainda há uns semanas atrás encontrei o Beja Santos, no seu "posto de trabalho", no riquíssimo centro de documentação da Sociedade de Geografia..., "comendo papel e pó"! Nesse dia fui almoçar, a convite do nosso amigo e grã-tabanqueiro, Armando Tavares da Silva, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)”, Porto, Caminhos Romanos, 2016, ISBN 978-989-8379-44-3), e que é sócio (ativo) da Sociedade de Geografia... Tive então o privilégio de uma primeira visita guiada a esta instituição, que ainda guarda muitos segredos...

Antº Rosinha disse...

É importantíssimo este trabalho de BS para compreender o que foi a colonização europeia em África antes das independências africanas sub-sarianas.

Eu digo África, não digo Guiné, porque esta, devido à sua dimensão pode servir como biopsia para todos os outros países, exceptuando África do Sul e Zimbábué, que o processo foi outro.

Bom trabalho de BS.