segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21734: Notas de leitura (1332): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Desdobram-se os ensaios e estudos em torno das estruturas sociais, económicas, culturais e políticas guineenses, cada investigador escolhe os seus quadros de referência. Philip Havik considerou importante encetar o seu trabalho com a mudança social operada pela Liga Guineense que teve vida efémera (1911-1915) mas que o primeiro movimento de cariz nacionalista, estudou depois a ascensão dos movimentos nacionalistas a partir de finais de 1940, o que se passou na luta armada e no pós-independência, procurando um quadro explicativo para os sucessivos desaires com as políticas de Luís Cabral e Nino Vieira.
Como outros autores, Havik considera que a Guiné-Bissau é um Estado ‘fraco’ mas devido à particularidade notável da sua ágil sociedade civil mantém um facho de esperança aceso para melhores dias que virão.

Um abraço do
Mário


Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné Bissau (1910-1994) (2)


Beja Santos

Philip Havick
O
ensaio de Philip J. Havik publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos nº18-22, 1995-1999 visa observar e comentar certos padrões de articulação política em termos sociais e geográficos na sociedade guineense, interpretando certos saltos qualitativos, entre 1910 e 1994.

O autor regista a composição da classe civilizada e assimilada dos núcleos urbanos. Conquistada a independência, o PAIGC fracassou nas cidades, isto quando, na luta armada recusou estrategicamente os núcleos urbanos e mudou-se para o mato onde organizou comités de tabanca e enveredou por um impulso democrático de participação popular. Amílcar Cabral sabia que a criação de um Estado dominado por um único partido pressupunha contrapesos como a consulta popular, todo esse esforço caiu por terra a seguir à independência, o PAIGC descurou o meio rural, congeminou grandes projetos económicos demonstradamente dispendiosos e ineficientes, cedo se esbarrondaram. Os movimentos em torno dos jovens, das mulheres e dos sindicatos também esfriando, a cúspide política foi-se divorciando das suas bases. Numa tentativa de retomar o poder local, retomaram-se as chefias tradicionais, houve um complexo processo de negociação entre certas linhagens, no caso dos Manjacos, tudo foi mais fácil com Mandingas, Fulas e Biafadas. Os produtores rurais começaram a resistir devido à política de controlo apertado, tanto administrativo como policial, sobre a economia. Por ironia do destino, era o reverso, ressalvadas as distâncias, da resistência dos agricultores à extorsão pelos preços, nomeadamente do coconote e da mancarra.

O PAIGC, no seu sonho de nacionalizar a economia, viu as companhias de comércio nacionalizadas falirem pela corrupção, pela inépcia e pela falta de articulação entre uma estratégia nacional e as redes de comercialização locais, voltaram os comerciantes ambulantes e as vendedeiras de mercado. Em meados da década de 1980, o Programa de Ajustamento Estrutural, que visava criar alavancas para o desenvolvimento acabou por ter efeitos contraditórios em termos sociais, ao criarem-se linhas de crédito para o desenvolvimento agrícola a clique do regime teve acesso a esses benefícios, criaram pontas para benefício próprio e, de um modo geral, não pagaram os seus empréstimos, o que se saldou no agravamento financeiro.

Nino Vieira
Assim se foi aprofundando o vazio político e emergiram aspirações de se constituir uma oposição política. Em 1986 criou-se o Partido da Resistência da Guiné-Bissau, vulgo ‘Movimento Bá-Fata’, cuja base de apoio social era constituída por meios ligados a antigos Comandos e tropas auxiliares africanas, sobretudo oriundos das zonas islamizadas, este partido defendia uma cooperação mais estreita entre a Guiné-Bissau e Portugal, irá denunciar o crescimento das pontas. Entretanto, agudizaram-se os conflitos no seio do PAIGC, tudo tinha a ver com o agravamento das condições de vida, soçobravam os regimes comunistas, o partido único era posto em causa. O regime ditatorial de Nino Vieira procura reagir em várias direções: patrocinar o regresso dos régulos, à procura de apoio político; repressão brutal na direção política e nas Forças Armadas, o tristemente célebre caso “Paulo Correia”, que deixou marcas insanáveis com a etnia Balanta; explodiu o comércio informal, as mulheres constituíram ‘mandjuandades’ (grupos etários de entreajuda), ao princípio ligadas ao PAIGC, mais tarde desfiliadas.

Assim se chegou ao II Congresso Extraordinário do PAIGC nos princípios de 1991 onde se decidiu uma abertura política com base nas ‘profundas mutações que se verificam na cena política internacional’ e ‘nas transformações operadas no tecido económico guineense’. Recomendava-se a eliminação de vários artigos da Constituição associados ao partido único e a introdução de sufrágio universal através de eleições livres e periódicas dos órgãos representativos do Estado, mais se sugeria a despartidarização das forças de defesa e segurança e a desvinculação dos sindicatos do PAIGC. Em consequência, aprovou-se a Lei Quadro dos Partidos Políticos, a Constituição passou a permitir a liberdade de associação partidária, surgiram outras leis como a Lei de Imprensa, Lei da Liberdade Sindical e a Lei da Greve; e apareceram sinais de contestação dentro das Forças Armadas, apelando-se à sua neutralidade.

Surgiram partidos em catadupa, Frente Democrática, Frente Democrática Social, Partido Unido Social Democrata, Partido da Convergência Democrática… Os seus dirigentes, regra geral, eram antigos ministros e antigos dirigentes do PAIGC, caso de Aristides Menezes, Vitor Mandinga, Rafael Barbosa e Vitor Saúde Maria; numa outra fase, apareceram o PRD, o MUDe, o PRS, a FLING, e outros mais. Constituiu-se com o PAIGC, em 1992, a Comissão Multipartidária de Transição, irá aparecer a Comissão Nacional das Eleições, completa-se a revisão constitucional em fevereiro de 1993, que confirma um regime presidencialista, e aprova-se uma nova lei eleitoral.

Philip Havik aprecia os resultados: uma maioria relativa para o PAIGC, que beneficiou do método de Hondt, que lhe assegurou uma maioria absoluta na nova Assembleia Nacional Popular, o movimento Bá-Fata e o PRS ficaram em segundo e terceiro lugares. Nas eleições presidenciais, Nino Vieira bateu Kumba Yala na segunda volta, a despeito deste último ter denunciado inúmeras irregularidades. Meses depois, Manuel Saturnino Costa era empossado como Primeiro-Ministro.

Nas conclusões, o investigador recorda que as mudanças políticas na África subsariana, com imposição de modelos democráticos nem sempre conhecedores da estrutura cultural das populações têm intervenções dos doadores e credores internacionais, da notória debilidade administrativa do Estado, da generalização de práticas de patrimonialismo, nepotismo e corrupção, faltam estruturas eficazes, recursos humanos ou até meios financeiros para cumprir as promessas com que os agentes políticos se apresentam perante os eleitores. E daí a facilidade com que medidas que tinham como objetivo reduzir a função pública tenham levado à paralisia do aparelho administrativo, causando uma deterioração das condições de vida para a maioria dos cidadãos.

No final das suas conclusões, vê-se que Philip Havik anda muito próximo de Joshua Forrest: existe um Estado ‘fraco’ na Guiné-Bissau, mas a sociedade civil permanece de pé, o partido foi-se diluindo, alienou o capital político granjeado na luta, irá continuar a manter uma confiança junto do eleitorado devido à incapacidade de todos os outros partidos de se dotarem de uma estratégia nacional mobilizadora que reinstale uma ampla confiança nacional. Philip Havik lembra igualmente que é da agricultura que a população resiste. Esse poder da sociedade civil continua a ser a alavanca da esperança democrática da Guiné-Bissau, a despeito de todos os impasses e da desqualificação da jovem classe política.

Presidente José Mário Vaz (Jomav)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21701: Notas de leitura (1331): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Ao ser referido o governo de Nino Vieira, estranha-se o facto de não terem sido elucidados os leitores sobre a data em que foi assassinado este líder político e Presidente da República da Guiné: 2009.

Abilio Duarte disse...

Dizer, como muitos disseram, que o PAIGC, conhecia bem os costumes e povos da Guiné, este relato, é precisamente, o seu oposto.

E o resultado aí está.

Não ponho em causa a Independência da Guiné, nem desculpo o Colonialismo Português, mas a verdade e a realidade naquela altura, não é a que nos venderam.

Foi pena os dirigentes do PAIGC, não terem tido o esclarecimento necessário, para se entenderem, com o Gen. Spínola, e por aí terem encontrado vias de desenvolvimento e afirmação na criação de quadros, para estarem cada vez mais apetrechados para se autodeterminarem.

Saí da Guiné à 50 anos.

E o que se vê???

Nós Portugueses, soubemos, esperar e aprender para aderirmos, à CEE.

E agora vejam onde estava mos, e onde nos encontramos.

Não vos maçando mais.

Abílio Duarte

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... citando:
- «O PAIGC [...] na luta armada [...] organizou comités de tabanca e enveredou por um impulso democrático de participação popular. [...] A criação de um Estado dominado por um único partido pressupunha contrapesos como a consulta popular.»
Perante aquela "narrativa", não há como ignorar a persistente tendência de MBS em difundir eufemismos, digamos, historiográficos, relacionados com supostas excelsas virtudes da democracia cabralista...
«Organizou [?!] comités de tabanca»?!
«Impulso democrático»?!
«Participação popular»?!
«Consulta popular»?!
Difusão de meia-dúzia de opiniões - seja, falácias propagadas por bibliografia afecta ao cabralismo -, advindas de um investigador que se diz especialista em «global health and tropical medicine, health systems & governance, anthropology of health and history of tropical medicine and ecosystems in sub-Saharan Africa».
Enfim: é para o que ficámos guardados.
Antropólogos e sociólogos...

Valdemar Silva disse...

Duarte, a mim não me maças nada, antes pelo contrário por não falarmos há algum tempo.
Parece-me que a nossa entrada na CEE foi mais por vontade da Espanha do que da CEE. E viu-se quem ficou com as pescas e quem é um dos grandes clientes dos espanhóis.
Os quadros na Guiné deveriam ter sido pensados por aqueles "cabeças extraordinárias" no momento certo do tempo das mudanças coloniais em África, e preferiram um conflito armado a atrasar o problema e a martirizar a nossa geração e o povo da Guiné. Até as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento (ex. estradas) só foram levadas a cabo por necessidades da guerra.
Os problemas actuais de África são os problemas "naturais" da evolução/criação de países saídos/formados de conjunturas através dos séculos. Veja-se a pequena Europa, grande parte da sua história em guerras religiosas, culturais, económicas e de fronteiras até há bem pouco tempo. Nem sequer há cem anos, e até há muito menos, no grande continente africano começou a criação/formação de países com fronteiras distintas, e muitas delas criadas pelas potências coloniais sem atenderem a questões étnicas, religiosas ou económicas. E é o que vemos agora e ainda onde ver os nossos netos, bisnetos e trinetos. Vai uma aposta?
É o que dá os problemas actuais, com conflitos armados, de muitos países africanos e não se pode dizer não terem tido formação de quadros em devido tempo.

Um abraço, saúde da boa e viva o glorioso
Valdemar Queiroz