quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25244: Historiografia da presença portuguesa em África (412): A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
É sempre um prazer voltar à biblioteca da Sociedade de Geografia e ter uma surpresa à minha espera. Agora que estou a organizar "Guiné, Bilhete de Identidade" e precisava de um texto do historiador Joaquim Barradas de Carvalho sobre a Crónica dos Feitos da Guiné de Zurara, foi-me sugerido a leitura de toda esta revista, vale a pena meditar sobre o poucochinho que é dedicado à Guiné, dizem-se coisas assombrosas sobre as estradas, mas seguramente que de boa fé o funcionário António Pereira Cardoso, que escreveu para o governador em Bolama relatórios anuais que um dia virão a ser indispensáveis para o estudo da economia da colónia, exaltou os quilómetros de estradas como atrativo para possíveis investidores, estamos já numa década em que Bolama definha. Não volto aqui a falar sobre a história destes boletins, os pressupostos básicos para a sua criação, foram anteriormente referidos, o aspeto que me parece mais curioso é a atração que o Brasil já sentia há um século por este berçário africano; não menos curioso é a referência à presença da navegação holandesa e alemã e verificarmos que a CUF de Alfredo da Silva ainda não chegou com as suas linhas de navegação.

Um abraço do
Mário



A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930

Mário Beja Santos

Já aqui se falou do boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e como este deu lugar ao boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. No início da publicação, em 1931, os governos de Lisboa e Rio aplaudiram a iniciativa, mas com o passar do tempo o Estado Novo ficou furioso com as colaborações, republicanos oposicionistas apareciam em força, zangaram-se as comadres. Confesso a satisfação que tive com algumas destas imagens, certo e seguro a redação do boletim brasileiro tinha acesso a muita informação oriunda de Portugal. E a prova está em dois textos que aqui vou referir. O primeiro está assinado por António Pereira Cardoso, era funcionário da administração em Bolama, encontrei nos reservados da biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alguns relatórios assinados pelo seu punho, referentes a este período; ele era sócio correspondente da Sociedade Luso-Africana e escreveu um artigo intitulado “A Guiné Portuguesa, a sua situação económica, o seu estado financeiro e as suas possibilidades, presentes e futuras”, traz a data de 24 de janeiro de 1933, o seu teor é o seguinte:
“A Guiné, cujo nome certamente pela sua semelhança homográfica com a Guiána, causa ainda hoje nos espíritos timoratos, calafrios e tétricas visões: é, de todos os nossos territórios ultramarinos aquele que menos acarinhado tem sido pelo Poder Central. Dentro dos 36.125 quilómetros da sua área, no entanto, acolhe-se uma população de cerca de meio milhão de habitantes, constituída por dezassete raças e sub-raças que fizeram da Guiné, em tempos idos, o inesgotável celeiro de todos os negreiros europeus e de quem hoje descendem, tanto o preto do Brasil como o negro americano.
Pela sua constituição geológica, pelas facilidades de transporte e deslocação interterritorial, e pela sua relativa vizinhança com a metrópole, a Guiné Portuguesa anima e fortalece todas as iniciativas de caráter agrícola e pecuário, e sua respetiva industrialização.
Afora as ilhas que formam o arquipélago dos Bijagós, pertence também ao domínio português a ilha de Cateraque, situada ao sul, próxima à Ponta Cajete, que os franceses nossos vizinhos, certamente por engano, há anos vêm ocupando, até ao dia em que uma, inexplicavelmente arrastada, retificação de fronteiras, consiga reivindicar para nós, a sua posse definitiva.

Ocupa a nossa Guiné, em extensão, o terceiro lugar no nosso império colonial. Semelhante a um corpo humano sulcado de veias, os seus rios entretecem na extensa planura do seu solo ubérrimo e forte, uma complicada teia, de fácil acesso aos barcos de grande cabotagem, e o Atlântico, nas suas costas, constantemente borda, com os bilros das suas marés, a infindável renda dos múltiplos esteiros e braços de mar, que a penetram até muito distante do litoral e que Duarte Pacheco Pereira, há cinco séculos já estudou e percorreu.
Com uma riqueza pecuária avaliada em cerca 306 mil cabeças (das quais só as de gado vacum se pode computar em 80 mil), é incentivo bastante para um ensaio de concorrência, atinente à conquista do mercado metropolitano, com qualquer empresa que se queira habilitar à exploração desta indústria. Colónia essencialmente agrícola, os seus 2.800 quilómetros de ótimas estradas, são, juntamente com o grande número de vias fluviais, meios que bastam à drenagem dos 25 milhões de quilos de amendoim; 12 milhões de quilos de amêndoa de palma (coconote); 550 mil quilos de óleo de palma; 670 mil quilos de arroz; 16 mil quilos de borracha; 90 mil quilos de cera; 170 mil quilos de couros de bovinos e 500 mil quilos de outros produtos que, no valor de 30 milhões de escudos são exportados anualmente para Portugal, Alemanha, EUA, França e colónias, Inglaterra e colónias, Holanda e colónias portuguesas.
Todos estes números, porém, podem, no entanto, ser rapidamente excedidos e até duplicados, desde que às sociedades existentes, ou a estabelecer, o Estado conceda não só as facilidades necessárias, mas também o auxílio pecuniário indispensável. Com um orçamento rigidamente equilibrado, as receitas da Guiné atingem a apreciável verba de 22 mil contos, acusando a sua balança comercial números significativos na importação e exportação.
Campo aberto a todo o género de culturas, nela se desenvolvem, presentemente, entre outras, a cana sacarina, o algodão, o café, o cacau, o milho, a mandioca, o feijão, etc., etc. Eis aqui em largos traços o que é e o que vale a nossa colónia da Guiné, de extensas planícies e ricas florestas, da qual, desde 1755 a 1777 foi concessionada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão e que a figura prestigiosa e heroica do major Teixeira Pinto, em 1915, radicou de vez à nossa burocracia, castigando em combates sucessivos a intolerável rebeldia dos indígenas mancanhas, manjacos, oíncas, balantas e papéis, facilitando a ordem económica e do fomento dos governadores que se sucederam até à data.”


Outro texto que me parece de grande interesse é uma notícia intitulada “Breve resenha da aparelhagem económica da Guiné Portuguesa”, vamos ao seu conteúdo:
“Não há, nesta nossa pequena, mas riquíssima província africana, caminhos de ferro, o que facilmente se explica pelo facto das comunicações e dos transportes se realizarem através das suas magníficas e eficientíssimas redes de cursos de água (rios e canais) e de estradas de rodagem, as quais ligam entre si os centros de produção e de comércio.
A extensão das estradas na Guiné Portuguesa é de 2.809 quilómetros, e para darmos uma ideia sintética e clara do que isto representa como expressão de progresso, diremos apenas que a média em metros de estrada por quilómetros é de 78, enquanto na África Ocidental Francesa é tão somente de 7,15!
Possui também a Guiné Portuguesa uma rede de 685 quilómetros de linhas telegráficas, em contacto com treze estações, além de três de TSF e duas de cabos submarinos, sem contarmos uma linha telegráfica que serve diretamente para as comunicações com a África Ocidental Francesa. O seu porto mais importante é o de Bissau.
Os navios nacionais das Companhias Colonial e Nacional de Navegação visitam mensalmente os portos de Bissau e Bolama, onde também vão com regularidade os barcos da Holland West – Afrika Linie, da Woerman Linie, da Deutsche Ost-Afrika Linie, da Hamburg – Linie e a da Hamburg – Bremen Afrika Linie, assim como os cargueiros da Sociedade Geral de Indústrias e Transportes.”


Pretendeu-se dar ao leitor a apreciação do que era o noticiário reportado aos interesses luso-brasileiros, a Guiné estava praticamente omissa desta publicação, a informação superlotada era, como é óbvio, referente a Angola e Moçambique.


É obrigatório ficar intrigado com este brasão da Guiné, é quanto muito um elemento retirado da bandeira nacional, fica-se espantado como estes publicistas cariocas publicaram tranquilamente as cinco quinas dizendo que se trata do brasão da Guiné. São coisas…
O icónico edifício do município de Bolama, hoje em completa ruína, imagem que acompanhava um texto sobre a I Exposição Colonial Portuguesa que decorreu no Porto em 1934
Imagem porventura tirada por Domingos Alvão mostrando-nos aldeia lacustre que atraiu multidões ao Porto, em 1934, no recinto da I Exposição Colonial Portuguesa
O Marquês de Ávila e de Bolama na capa da revista "O Ocidente", de 20 de março de 1907
Um dos aspetos mais gratificantes de andar a folhear publicações em bibliotecas especializadas é encontrar esta imagem que só era possível ser publicada no Brasil naquela época em que Portugal tudo o que aqui se mostra e escreve era totalmente impensável ser dado à estampa
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Antº Rosinha disse...

Estes luso-cariocas de 1930, de colonialistas não tinham nada.

(colonialismo=A exploração desenfreada dos recursos dos territórios ocupados)

Imaginemos a felicidade e a paixão destes luso-cariocas embasbacados com as riquezas da autossuficiência da mancarra, da cachaça de cana e o coconote e com aquelas descomunais estradas da Guiné, isto em 1930, quando desde 1880 os outros só já pensavam nas minas do ouro e diamantes

Aliás, havia em todas as gerações de "portugueses ultramarinos", uma determinada classe de pessoas que de colonialistas não tinham nada, eram simplesmente e apenas uns sonhadores "tropicalistas" acomodados aqueles paraísos tropicais, Bolama, Ilha de Luanda, Lourenço Marques, Rio de Janeiro e as terras de Jorge Amado.

Tropicalista é uma alcunha que inventei para gente que gostava de chabéu, mas tenho outros nomes, colonialista eram os exploradores europeus que dividiram áfrica e deixaram os bijagós para a gente.

E ainda obrigaram a gente a mandar para lá o Teixeira Pinto.

Ás vezes dá para pensar se não seria esta geração de apaixonados tropicalistas, contemporâneos de Salazar, e também de Henrique Galvão e Norton de Matos etc. se não teriam inspirado Salazar a dar o grito "para Angola e em força" em 1961.




Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha essa das colónias e do colonialismo é sempre a mesma coisa para quem quer avaliar a "habilidade de chico esperto" transferindo de um dia pra outro o ministro das colónias para ministro do ultramar, mas não desfazendo a ideia de "Império" bem a maneira do salazarismo.
Em 1940 não se colocava esta questão, havia colónias e prontus.
No Cartaz da grande Exposição do Mundo Português, na Secção Colonial havia "GinKana de Negros - com várias provas originais". Não sei se havia algum com o cantar à desgarrada de brancos na Secção de Minhotos.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, tens razão, devia de haver na exposição minhotos a cantar à desgarrada, pois que o império era do Minho a Timor.

Mas aí talvez a imaginação dos apaixonados pelo ultramar não chegasse a tanto.

Mas nas colónias havia minhotos e malta do norte suficiente para não deixar morrer o vira do minho e os pauliteiros de Miranda.

Valdemar Silva disse...

Pois, pois Rosinha, mas eram todos patrões e não estavam virados para essas brincadeiras.

Em Bissau, não me lembro o Restaurante, encontrei um meu conhecido empregado da mesa da Portugália (Arroios) a servir, também, às mesas, e como já não estava na tropa fiquei admirado.
Explicou-me que ele e outro tinham comprado o trespasse do Restaurante e um ficava ao balcão e outro servia às mesas.

Julgo que era difícil encontrar um empregado de mesa minhoto a servir num restaurante em Luanda ou Lourenço Marques, ou noutras cidades de Angola ou Moçambique.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, restauração, comes e bebes, do bom e do melhor, em Luanda, em São Paulo e Rio de Janeiro, era ou foi domínio de Minhotos e transmontanos.

Mas em Angola, Nova Lisboa, Sá da Bandeira e localidades mais pequenas, era gente do norte donos de restaurantes , hoteis pensões etc.

Metia um ou outro beirão, mas muito pouco.

Em São Paulo, (10 Lisboas?) em cada esquina um minhoto ou um transmontano.

Mas ainda havia grandes supermercados de gente do norte, acima do Douro, principalmente.

Em Angola vi gente começar do zero e irem longe, e outros darem com os burrinhos na água.

Vou-te contar uma de um retornado de Barcelos, que me serviu muitas imperiais de bandeja na mão em Luanda na Ilha, simples empregado, que se deslocava numa motorizada daquelas que faziam imenso barulho que me acordava de manhã, era meu vizinho, e me acordava às duas da manhã quando largava a cervejaria.

Pois com o 25 de Abril veio para Portugal e não largou a bandeja.

Largou apenas a tal motorizada e encostava um bruto BMW à porta de um bar restaurante que explorava por conta própria, bem junto à estação de comboio movimentadíssima, de Vila Franca de Xira.

Eu que tinha vindo recentemente do Brasil, para onde tinha emigrado com o 25 de Abril, fiquei boquiaberto, quando precisei de apanhar aquele comboio, vou tomar a minha bica, e dou de caras, na caixa registadora com o meu antigo vizinho de Luanda, e perguntei-lhe pela motorizada.

Como havia mais de 5 anos que não nos viamos, foi aquele surpresa e eu já não apanhei o comboio, ele entregou a caixa registadora à mulher e contou-me entre outras coisas como de motorizada velha foi para ao BMW novinho, à porta do bar, café, restaurante.

Bastante mais novo que eu, sei que numa das minhas vindas da Guiné, fui visitá-lo, já tinha passado o negócio...imagina se tiver saúde!

Tive colegas minhotos, de profissão, retornados, todos com golpe de vista.

Gente do norte é que povoou por toda a parte.

Cumprimentos.

Valdemar Silva disse...

Rosinha, tudo o que explicas não me faz confusão ou sequer duvidar da grande valia dos minhotos, transmontanos ou beirões.
A minha dúvida é ter-lhes passado pela cabeça ir trabalhar para África para patrões como por cá devia acontecer. As suas ideias eram de ir ou ficavam depois da tropa como patrões de qualquer actividade.
Contaram-me que a falada "carta de chamada" era exigida a quem queria ir trabalhar p.ex. para Angola desde que apresenta-se o que ia fazer, dado não haver lugar para brancos, além do Estado, em profissões por conta de outrem. E depois sem trabalho viviam de quê, diziam os exigentes.

Abraço
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...


Carta de chamada era um documento de uma pessoa estabelecida, comerciante, fazendeiro, proprietário em que se responsabilizava durante um período (tenho na ideia que era meio ano) pela estadia do emigrante, e caso este não se adaptasse responsabilizava-se em "devolvê-lo" â procedência.

Foram muitos menores, tipo sobrinhos para casa de tios, ou irmãos, em que estes faziam o tal documento de responsabilidade.

Também se podia emigrar para as colónias, sem carta de chamada, mas tinha que deixar como caução dinheiro para viagem de regresso, caso não se adaptasse, ou as autoridades achassem inconveniente a sua presença, penso que era ao fim de meio ano que podia levantar a caução.

Eu tinha lá um irmão, foi fácil.

Para ir para o Brasil havia uma coisa semelhante.

Valdemar, só estranha essa da carta de chamada, que já vem essa norma desde tempos "dos reis" quem nunca esteve perdido num deserto, sozinho sem bússula.

Até quem ia das nossas aldeias para Lisboa, ia dirigido a algum parente ou conterrâneo.

Com uma cartinha com a morada e o nome da pessoa.

Mas havia ainda a história dos colonos, mas isso é outra história em que ultrapassa o próprio Salazar.