Guiné > Região do Cacheu > Biambe > Bajuda Papel, cristianizada > Uma homenagem à beleza da mulher guineense... Um "verdadeiro monumento ao amor", escreve o Vitor Junqueiro, neste post, a propósito da sua Fanta Faldé....
Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho, outro tuga enfeitiçado... (ex-fur mil op esp, CCav 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74)
Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.
Texto do
Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (
Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1). Enviado em 17 de Janeiro de 2007.
Comentário (prévio) de L.G.:
(i) Amigos e camaradas: o que vão ler, é um dos mais belos textos que um homem pode escrever sobre uma mulher em tempo de guerra. O estilo é puro e duro, o título enganador... Há uma tremenda ternura subliminar que me emocionou, e que só pode honrar o homem, o médico e o português que é o Vitor Junqueiro. É um texto que nos honra a todos. É uma homenagem a todas as
Fantas Baldés da Guiné que climatizaram os nossos pesadelos, e que dormiram connosco na cama...
(ii) É um texto corajoso, escrito na primeira pessoa do singular, sem máscaras, sem defesas, que muitos de nós gostariam de ter escrito. É um escrito da maturidade, um escrito que revela uma grande nobreza de alma, sensibilidade e humanidade...
(iii) É um
post que definitivamente vai figurar na antologia dos melhores
posts do nosso blogue...
(LG)
__________
Luís,
Mantenhas p'ra bó.
Como as promessas se fazem para cumprir, aqui vai um pedaço de prosa da minha lavra que gostaria de ver publicado no Blogue.
Assim como aquele texto que te enviei ontem, já tarde (2). Se for possível e quando for possível. E caso não seja, agradeço que me dês conhecimento.
Saudações cordiais,
Vitor Junqueira
A minha puta ...
por Vitor Junqueira
1. Reflexão:
Toda a gente tem a sua
puta. Que nem sempre é a doce
puta-amante. Na maioria das vezes é uma bem amarga
puta de vida, ou uma
puta de sorte ...
Não sendo um
expert em matéria de
putedo, tenho sobre este assunto algumas ideias próprias, nem sempre consensuais com a moral e os bons costumes prevalecentes na família
portuga. Começo por dar conta de um facto: Há muita gente que, com a maior naturalidade, visiona no leitor de DVD ou televisor da sua sala, filmes contendo cenas raiando o mais puro
hard core, e no entanto, se numa conversa de circunstância o tema descamba para o lado das meninas, lá vem o inevitável e embaraçoso constrangimento. Tal como proclamava o nosso bem conhecido cónego Remédios, “não havia nechechidade” ... também estes benzetas não se coíbem de grunhir moengas contra estas sem-vergonhices. Repudio os seus argumentos bacocos, moralistas e reaccionários, quase sempre eivados de indisfarçável hipocrisia.
Afinal, todos sabemos que as
putas como as cadeias existem, porque existem homens e mulheres. Reconheço contudo que entre nós, este continua a ser um tema meio tabu, com conotações geralmente negativas. Veja-se, a título de exemplo, algumas designações aplicadas às principais linhagens de
putas:
Entre as plebeias, assumem posição de relevo as
putas do c... São uma estirpe comum que pode desabrochar virtualmente no seio de qualquer honrada família. Porém, o grosso do efectivo é constituído pelas
putas reles,
putas manhosas e
putas rafeiras. Há quem se refira a uma variante urbana particularmente desqualificada, como
putéfia de merda, também conhecida como
gatinha do Cacém. Não possuindo forçosamente qualquer vínculo nobiliárquico, as reais
putas, cuja patrona-mor até foi por mero acaso uma conhecida princesa, são intocáveis, quase sagradas aos olhos dos milhões de
putas sérias que por aí andam e com quem dormimos habitualmente!
As
putarronas têm experiência, têm estatuto e acima de tudo possuem bons amigos. Sabidonas, cuidado com elas! As minhas preferidas são as refinadas
putas. São o que são e não enganam ninguém. Distinguem-se pelo seu elevado grau de profissionalismo. Fora deste elenco, ficam as
putas finas. Como dizia uma comadre minha tentando defender a honra da filha: são tão
putas quanto as outras, mas sabem escrever à máquina! Têm carreira própria e à pala de umas cambalhotas com peixe graúdo, tornam-se alpinistas. Olhem em redor, e vejam até onde algumas conseguiram trepar!...
Por mim, rejeito qualquer expressão ou atitude classicista ou discriminatória em relação a um grupo profissional tão antigo quanto a humanidade. Que, por sinal, até tem merecido a atenção de alguns dos maiores pensadores e poetas que a humanidade já produziu. Como argumento final e para não me esticar em demasia, direi apenas que dentro de cada um de nós, existe certamente uma
putinha adormecida.
Isto não significa que não fique deveras chateado se algum chifrudo me apelidar injustamente, de filho da
puta. E se o mandassem para a
puta que o pariu, como é que o meu prezado amigo reagiria? Como eu, mal. Pois é, paradoxos ...
2. Vamos à estória:
Era eu um chavaleco de merda na casa dos vinte e poucos anos, quando conheci na Guiné uma refinada
puta. Tão
puta, que suspeito que tenha nascido já sem
cabaço. Ou se o teve, foi por pouco tempo! Não era uma
puta comum. Esta veio ao mundo por uma causa, com uma missão. Tinha o seu código de honra e levava-o muito a sério: À sua beira, ninguém deveria padecer à míngua de sexo, ainda que estivesse teso!
A Fanta Baldé era uma mandinga retinta, grande, de feições fortes quase viris, voz meiga e riso espalhafatoso. Nunca soube qual era a sua idade, mas julgo que seria idêntica à minha. Ouvi-a dizer que nasceu lá para os lados de
Binta, e por lá se manteve até ter peso suficiente para um
tuga lhe fazer um mulatinho, o Mário. Já a criança era nascida quando à cata de melhores oportunidades de negócio montou estaminé num tugúrio em
Farim.
Aí, acolheu no aconchego do seu corpo torrentes de esperma, em troca dos pesos que tanta falta lhe faziam para criar o seu rebento. Mais tarde, acabou por atravessar o Cacheu vindo a fixar residência em
Saliquinhedim (K3), dedicando-se à prestação de serviços em regime de exclusividade aos Barões da CCAÇ 2753 (1).
Foi aí que nos encontrámos pela primeira vez e, desde logo, uma forte antipatia nasceu entre nós. Armado em cão com pulgas, eu via naquela mulher uma fonte de complicações. Já imaginava o mais do que provável abandalhamento da Companhia com quebra na disciplina e, sabe-se lá, a possibilidade da prática de actos de rebelião na hora de sair para o mato. Assim como a exploração, a favor do IN, de fontes de informação às quais tinham acesso privilegiado os nossos militares, seus clientes, sobre os quais possuía notório ascendente. O que, diga-se, representava uma enorme e inaceitável desvantagem estratégica das nossas forças face às tropas do PAIGC.
O tempo veio a demonstrar que era apenas uma mulher e mãe. Uma boa mãe. Como nenhum daqueles temores se concretizou, acabámos por nos tornar amigos íntimos. Demasiado até, tendo em conta as marciais regras do decoro e bons exemplos!
Mas ela assim quis, e
quando a mulher quer, Deus ordena. E foi assim que moenga aconteceu:
Como assíduo frequentador da tabanca, situada arames meios com as instalações militares, procurava na convivialidade com a população local o alento para o stressante dia a dia dos golpes de mão, das colunas, patrulhamentos, emboscadas, em suma, da vida em estado de guerra. Sentados no chão ou estendidos sobre esteiras, gozando a frescura relativa da tarde sob a ramagem frondosa das mangueiras, a modorra tomava conta dos corpos enquanto a neura se apoderava das mentes. Entediados por meses de permanência naquele buraco do fim do mundo, amarfanhados pela saudade dos familiares e amigos que tinham ficado na metrópole, aquelas eram
as tardes mais longas de todas as tardes, como no poema do Ary dos Santos (3).
A noite, porém, metamorfoseava aquele escafundó num pedacinho de paraíso. No tabancal, quase não havia homens, pois estavam praticamente todos exilados nos pelotões da milícia de Binta e Bigene. Deles, só se sabia quando apareciam para gozar uns dias de férias e esvaziar os sacos da saudade! Talvez por isso, os lusos eram muito bem recebidos. As esposas e namoradas, carentes como se compreende, lá se amanhavam com os nossos bacanos. Mas também as mães, primas, amigas ou irmãs que nos lavavam os camuflados, o pescoço e a alma em troca de quase nada.
Depois do jantar, que era geralmente servido ao lusco-fusco, distribuíam-se as armas aos putos que tinham a seu cargo a auto-defesa da tabanca. Eram na sua maioria adolescentes, a quem os nossos antecessores tinham ensinado o manejo da G3 e do morteiro. Recolhiam as armas da mão da tropa ao fim da tarde e entregavam-nas pela manhã do dia seguinte. E sempre souberam dar conta do recado.
Quanto a nós, magníficos representantes do marialvismo nacional, uma vez montada a segurança, o objectivo passava a ser bajudame e cada um se safava como podia. No terreiro da aldeia, localizado no centro de um aglomerado de 20 ou 30 moranças, ardia uma fogueira alimentada com lenha que todos ajudavam a recolher e transportar. Espantava os mosquitos, aquecia e alegrava o ambiente. Ao seu redor, apertavam-se os nossos à molhada com os indígenas.
Havia lugar para todos e todos tinham o seu lugar. Lado a lado, brancos e pretos, fulas e mandingas, homens, mulheres grandes, jovens adultos e crianças, escutavam interessados o relato feito por alguém, que em tom jocoso, dramatizava o acontecimento social ou peripécia desse dia. Via de regra, havia sempre uma vítima, alvo de dura chacota. Que ninguém levava a mal.
Às tantas, um ritmo de batuque, cantoria e risos de mulher enchiam o ar fresco da noite com cheiro a África. Para tanto, bastava que alguém desse início a um som com as palmas. E logo as palmas de muitas mãos acompanhavam aquele ritmo. Qualquer velha lata ou cabaceira, primorosamente percutidas por mãos experientes ou improvisadas baquetas, produzia uma música a que os corpos não resistiam, e recusando o controlo da vontade, gingavam ao ritmo da batida. Para o centro da roda, saltava então uma mulher, depois outra e outra. Curvadas para a frente, muitas vezes com os pequenitos na costa, batiam o chão, forte e compassadamente, com os pés nus. E logo a pequenada toda, as bajudas, honradas mães de família e outras menos honradas, toda a gente participava naquela dança quase frenética em que os cânticos entoados por conhecedores transformavam num ritual cataléptico que podia durar horas, e só terminava quando os corpos trémulos e suados pediam descanso, ou o quadro que fornecia luz à tabanca era desligado. Na esteira ficavam apenas os coxos e o mija na escada,
moi, eu!
O convívio continuava então, mais terno, mais íntimo, com a cumplicidade da escuridão traída por esquivos reflexos das labaredas moribundas. Numa dessas noites, quando a maioria do pessoal já havia recolhido a penates, a Fanta aproximou-se de mim, risonha, e num crioulo palpitante disse-me:
- Zunqueira (tinha problemas com a dicção do meu nome), preciso falar contigo.
- Então fala, diz o que é que queres, respondi.
- Zunqueira, aquilo que tenho para te dizer ... tem de ser em minha casa. Vem por favor - disse ela. Disse-o como se fosse uma ordem, e num passo ligeiro e silencioso, pôs-se a caminhar à minha frente.
Fiquei intrigado, receoso mesmo. Ocorreu-me que quisesse pedir qualquer coisa para o filhote. Ou estaria ela a tramar alguma armadilha, a mando do IN? Mas, dado que
noblesse oblige ..., senti-me impelido a seguir-lhe a silhueta através do labirinto de moranças, àquela hora escuro e deserto. Chegados à sua porta, no extremo oposto da tabanca quase junto ao arame farpado, accionou a taramela que garantia a segurança da sua espartana habitação.
- Vem, disse em voz ciciada, afastando-se para me deixar passar.
Instintivamente agarrei a coronha da [pistola]
walter que levava escondida no bolso do dólmen. Contudo, o seu sorriso descomprometido tranquilizou-me. Entrei.
A casa tinha apenas uma divisão com chão de terra batida. Do lado esquerdo, arrumado à parede, um leito de ferro sobre o qual um colchão de espuma coberto com uma colcha cor de rosa impecavelmente limpa, sem uma ruga. Um pequeno caixote servia de mesa de cabeceira e evidenciava a singeleza do local. Em cima dele, um luxo, um candeeiro a petróleo cuja luz subiu. Pude então destrinçar junto à parede oposta um camita de madeira onde dormia placidamente o pequeno Mário. Esta visão acabou com os meus receios, senti-me completamente descontraído.
No pouco espaço disponível entre as duas camas, a Fanta volta-se para mim e apontando com o queixo para o pequenito, apoiou o indicador sobre os lábios em sinal de silêncio. Ostentava um sorriso enigmático a que luz velada do candeeiro realçava o brilho dos olhos e a brancura dos dentes. Acheia-a diferente, parecia uma garota.
Num gesto rápido fecha a porta, e sem uma palavra aproxima-se mais. Sinto-lhe o hálito, as formas e o calor do corpo. Delicadamente, como a pedir licença, envolve-me com os braços e aproxima a sua boca da minha. Um beijo rápido, carregado de promessas que me deixa paralisado. Balbucio uns nãos pouco convictos que só servem para reforçar o ímpeto com que se atira à tarefa de me despojar da farda e das botas. Sinto as suas mãos percorrerem-me o corpo à procura de fechos e botões enquanto me vai tocando com os lábios.
Sei que estou arrumado. Cheio de princípios e convicções, já não disponho de forças nem vontade para bater em retirada. Vejo-a pegar no cinturão carregado de artilharia, que atira sem cerimónias para cima das roupas caídas no chão. Troça despudoradamente:
- Zunqueira, para que andas com isto? Se eu quisesse fazer-te mal de que é que estas coisas te serviriam?
Xeque-mate, sem discussão! Num abrir e fechar de olhos, está nua. À volta dos quadris, um cordão de cheirinho, realça-lhe a feminilidade. Trata-se de uma enfiada de pequenas bagas escuras colhidas no mato que libertam uma oleosidade perfumada. Afasta a colcha e estende-se sobre o lençol branco. O contraste com a cor do seu corpo tem um efeito estonteante. E que corpo, Senhor! Que coxas, que mamas! Fico ali, ridículo, confuso, convulso, com tusa, em três pernas.
Aí, ela estendeu-me a mão e num convite cheio de sensualidade, puxou-me para junto de si. Acaricio-lhe a pele macia e aveludada com que a natureza brindou as mulheres negras. Percorro-lhe a pentelheira de um crespo sedoso, perfeitamente recortada, na busca dos recantos mais secretos daquele verdadeiro monumento ao amor. Claramente excitada, o seu corpo procura o meu que, tomado por uma espécie de frenesim, já só pede os finalmente.
A Fanta porém, conhecedora do seu ofício e com o saber fazer que o profissionalismo confere, com a docilidade e delicadeza que lhe eram próprias, lá foi tomando conta das operações. Controlando-me os gestos e moderando o impulso, ensina-me a beber repetidamente da cantarinha.
Alta madrugada, enrosca-se, envolve-me, retém-me o mais que pode. Faço-a entender que o meu regresso ao aquartelamento é imperioso. Submissa cede, e acompanhando-me à porta sussurra:
- Zunqueira, logo espero por ti.
- Não sei Fanta. Vou precisar de descansar porque o dia vai ser duro - respondi de forma evasiva para não criar falsas expectativas.
E abalei, ciente de que aquele só poderia ter sido deslize único que de forma alguma poderia repetir-se. À vista da sentinela, passo pela suprema humilhação de ter que me identificar:
-Quem vem lá faz alto! - diz o cabrão, perdido de gozo!
Sorrateiramente, para não acordar o camarada com quem partilhava o quarto, enfiei-me debaixo do mosquiteiro. Adormeci que nem uma pedra a pensar que aquela (volto a citar o Ary):
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram... Aquela e as seguintes. Porque durante mais de um ano, foram poucas as noites em que não dormi entre as pernas da Fanta. O caso assumiu foros de escândalo. O alferes Junqueira que alguns consideravam o homem mais disciplinado e disciplinador da Companhia, caíra de joelhos numa rendição incondicional, vencido pelo feitiço de uma mulher ... pública. Inacreditável. Ela deu-lhe alguma mezinha a beber, diziam uns, ou o caso tem mistério afirmavam outros. Nada disso, garanto eu. O que houve foi uma luta desigual. De um lado, os atributos físicos e a juventude de uma mulher simples, extremamente doce e feminina na cama. Do outro, a fraqueza da carne, bem rija na altura.
A Fanta nunca frequentou a escola mas possuía uma notável sabedoria de experiência feita. Acho que era sábia. Tinha tiradas de índole filosófica que me deixavam de cara à banda. Com ela aprendi bastante. Sobre a vida, o mundo e as pessoas. E o sexo, já agora! Fiquei a saber, por exemplo, que até as coisas têm alma, podendo continuar a existir mesmo depois de materialmente terem desaparecido!
Avizinhava-se o final da comissão. Havia uma data prevista para a rendição, com entrega das instalações a uma Companhia de
periquitos. Por maior sigilo que se quisesse guardar quanto a estas movimentações, o segredo era invariavelmente quebrado como se sabe. No entanto, talvez por dever, mas certamente por cobardia, eu nada disse à mulher com quem tinha literalmente vivido nos últimos meses. Mas ela sabia de tudo havia tempo, mas nunca tocou no assunto. No dia da partida, pouco depois do sol nascer, estava eu ainda deitado quando bateu à porta, pedindo licença para entrar. Levantou o mosquiteiro e sentou-se a meu lado. Estávamos sós. Voltou-se para mim e sorriu, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pela face.
- Zunqueira, tu ias embora sem te despedires de mim!? - O tom era de mágoa e tristeza.
Senti-me um verme. Gaguejei sem saber o que dizer, mas lá arranjei arte para arquitectar umas mentirolas:
- Estás maluca Fanta, vou lá embora agora ...
Bem, eu devia meter dó, porque foi isso que li nos seus olhos. Limpou as lágrimas e passando-me para a mão um pequeno embrulho, foi dizendo:
- Zunqueira, quero que leves esta lembrança. É coisa pouca, mas acho que vais gostar.
Fiquei siderado. Pela atenção e carinho que não merecia. Pelo remorso. Desfiz o embrulho e retirei uma lanterna eléctrica daquelas de tipo espalmado, com uma grande pilha rectangular, dentro de uma caixa metálica cor de tijolo. Devia tê-la mandado vir de Bissau, com a devida antecedência. Muito tempo antes, eu tinha deixado escapar que, ao regressar todas as madrugadas ao quartel, tinha alguma dificuldade em orientar-me por entre as tabancas (moranças) na noites mais escuras.
Durante todo o tempo em que dormi com a Fanta, ela nunca me pediu nada, nunca aceitou nada. A não ser algumas latas de leite condensado Néstlé, meia dúzia talvez, que lhe levei para o filho ainda bebé. Terá vivido julgo eu, de economias, porque durante esse período se absteve completamente do negócio. Se aquele pequeno objecto valia uma fortuna para uma população que praticamente não tinha acesso ao dinheiro, para ela então, teria sido uma autêntica extravagância.
- Fanta, eu não posso aceitar. Desculpa, mas não posso mesmo. Na casa onde compraste, talvez te possam fazer a troca por qualquer coisa útil para o teu filho, insisti.
Dei-lhe a entender que se por um lado, aceitar o presente me deixava embaraçado, por outro, aquilo era um desperdício... dinheiro perdido.
Cada cavadela, cada minhoca, como se vê. A emenda estava a sair pior que o soneto. Nesse momento a expressão da Fanta tornou-se séria e fixando-me nos olhos, retorquiu:
- Sabes, Zunqueira, só se perde e deixa completamente de ter valor, aquilo que consumimos para satisfazer o nosso egoísmo. O que oferecemos ou partilhamos com os outros, existirá para sempre. Porque mesmo depois de já se ter transformado em pó, continuará a existir na cabeça e no coração daqueles de quem um dia gostámos.
Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.
Como diz o povo na sua bondade:
Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve.
Quanto ao filho Mário, estive com ele há uns três anos. Era então um jovem robusto de trinta e quatro anos de idade, pouco dado ao trabalho, casado, com um filho pequeno. A vida não lhe corria nada bem, pois uma espécie de Bar-Discoteca que geria em Farim, havia falido uns sete ou oito meses antes.
Descobri entretanto que o pai é um ex-militar de uma Companhia que chegou a Binta por volta de 1969/1970, de nome Mário Figueiredo. Originário da zona de Mangualde, encontrava-se na altura (2003), emigrado no Reino Unido.
Dedico esta narrativa absolutamente
naïve, ao estilo de conto da revista Maria, à memória da Fanta. Com este despretensioso texto, pretendo também homenagear todas as
Putas do mundo, muito em particular aquelas que conhecemos enquanto combatentes na guerra colonial.
Mulheres anónimas, a quem a sociedade continua a aplicar o labéu de fáceis, franquearam-nos a alma enquanto nos vendiam corpo. Foram amigas e confidentes discretas. Ofereceram-nos o colo ou simplesmente um ombro sereno que nos ajudou a apaziguar a torturante saudade de esposas, namoradas e, porque não admiti-lo, até das mães. Não posso prová-lo, mas estou convicto de que, sem o seu oportuno apoio, alguns teriam sucumbido àqueles tempos difíceis e não seriam os cidadãos equilibrados e válidos que são hoje.
Vitor Junqueira
Pombal, 17 de janeiro de 2007
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. postes da série de:
18 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753
23 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim
27 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas
31 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto
5 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida
(2) Vd. alguns dos post anteriores:
11 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)
7 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira
(3) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1439: Questões politicamente (in)correctas (19): Os rambos só existem no cinema (Vitor Junqueira)
(4) Extracto de:
Estrela da tarde,de Ary dos Santos
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
In:
José Carlos Ary dos Santos >
As palavras das cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). Lisboa: Editorial Avante. 1989, p.58.