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segunda-feira, 13 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

1. Mensagem de 8 de Julho , enviada pelo nosso Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande (*):


Caro amigo Luís,

Na continuação das estórias que chamei de 'memórias de infância' (**) envio mais dois excertos. O primeiro fala da minha família. Não queria enviá-la mas apercebi-me que faz falta para uma melhor compreensão das partes seguintes sobre as origens da família e alguns factos ligados com a fuga do irmão do meu pai e patriarca da família, o Sambagaia. O segundo fala do meu pai[, Aliu Tambá Baldé, ] e da encenação de um Marabú tradicional.

Obrigado e um forte abraço,

Cherno Baldé


2. Memórias do Chico, menino e moço (6)

DE CANHAMINA A SINCHÃ SAMAGAIA

Uma família a procura de estabilidade

A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. 

Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] .

O Naor terá morrido logo a seguir após uma doença prolongada (dizem que por desgosto pela morte do seu primo e amigo inseparável) e, com a morte prematura deste, acedeu ao lugar de patriarca da família, o Sambagaia, o irmão mais novo que lhe seguia segundo a linhagem.

Decorridos alguns anos após a morte de Naor, a nossa família saiu de Canhámina. Não consegui obter informações certas sobre as razões que motivaram esta mudança, todavia, algumas vozes especulam que estaria ligada a morte do Régulo Brandjame Baldé, cujo desaparecimento teria provocado uma luta de sucessão bastante perigosa no seio da família reinante.

De qualquer modo, a transferência para a zona de Farimbali, marca o início da liderança de Sambagaia na família e abre uma nova era, marcada por grandes dificuldades materiais de existência, alguma turbulência no seio da família e guerra política.

Para uma família que já estava, de certo modo, habituada a viver não muito longe da sombra do poder e das suas facilidades, a provação foi dura. As dificuldades do duro trabalho agrícola que era a principal actividade da família se juntou a desastrosa gestão do patriarca Sambagaia que utilizava os magros recursos da família (colheita de cereais e gado) para granjear reputação e mobilizar apoios, votando a família à fome e miséria contínuas.

As suas mãos largas e suas frequentes deslocações e viagens para o centro do poder e da administração colonial em Bolama onde servia de agente policial, e também procurava alianças, permitiu-lhe entrar, assim, nos meandros das intrigas e das guerras pelo poder, que eram suportadas pelo esforço da família, obrigando-a a vender tudo que existia, inclusive as vacas de seguro (teguê) das mulheres que normalmente não se vendiam, em obediência às regras de uma tradição secular.

A família estava sem posses, sem segurança para as calamidades naturais, bastante frequentes na época e junte-se a isso mudanças constantes de uma aldeia à outra de forma sucessiva e por períodos muito curtos, provocando a erosão dos poucos recursos disponíveis abalando com isso a coesão social preexistente no seio da familia.

Primeiramente saíram de Canhámina para Saré Saliu, lado norte da bolanha de Berécolom (onde encontraram e conheceram a família de um caçador profissional, originário de Forrea, chamado Samba Candé, vulgo Samforrea, pai da minha futura mãe, Cadi Candé), tendo aí permanecido por pouco tempo.

Nesta aldeia faleceu Paté (Pareru), o quarto dos cinco irmãos, após alguns anos de doença psíquica. Contam as más-línguas que ele ousara desafiar o patriarca Sambagaia ao pretender em herança a mais jovem das mulheres do falecido Naor, a Nhama Aua, filha de Brandjame, pelo que este o teria feito guerra através de forças ocultas para o enlouquecer. Outros afirmam que a jovem viúva teria escolhido do seu livre arbítrio o jovem e bonito Patê, provocando desta forma a desgraça deste.

Esta história ilustra, independentemente do que teria acontecido na realidade, que os vínculos de dependência e/ou obediência aos costumes e a tradição, na reprodução e manutenção das práticas culturais ancestrais, se faziam também por diversos meios, inclusive a difusão de falsas informações a fim de paralizar e/ou neutralizar o(s) adversário(s).

De Saré Saliu passaram para Solambuntô, aldeia situada junto a fronteira com o Senegal, a oeste de Cambajú. Por aqui, viveram uns poucos anos. O que estaria o Sambagaia a procura? Certamente uma base de apoio para as suas ambições politicas. Após Solambuntô, fizeram meia volta regressando para Saré Coba, aldeia vizinha de Sare Saliu. Foi aqui que os filhos de Naor, Baciro e Ioba foram circuncisados. Teriam vivido nesta aldeia perto de 3 anos.

De seguida, regressaram, de novo, para o lado sul da bolanha, e instalaram-se em Farimbali, na altura uma povoação enorme, situada perto de Canhámina (ver recenseamento de 1950), onde a minha mãe Cadi se juntou à família casando com o meu pai, Aliu Tambá (provavelmente entre 1949/50) e onde também nasceram os seus primeiros filhos, Aua (1951/52), Cumba (nome da esposa de Cherno Abdulai Shall, almane da mesquita de Farimbali)(1953/54), Ibraima (1955/56-), Carlos Bubacar (1957/58), hoje farmacêutico formado na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e eu, Cherno Abdulai (entre 1959/60).

A partir desta localidade, Sambagaia lançou-se na corrida à conquista do poder da casa reinante de Sancorlã, fazendo frente aos seus primos de Canhámina. Tendo conseguido mobilizar para a sua causa um grande número de aldeias à custa de alianças fortuitas em terreno movediço num contexto social e político bastante atribulado, minado por ambivalências e sobreposição de poderes de naturezas diversas: colonial, tradicional, religioso etc.




Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. (***)

Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados


No momento decisivo, só ficaram ao seu lado as chefias e as aldeias de etnia Mandinga, nomeadamente de Sumbundo e Tendinto [ vd. carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line'], um número claramente insuficiente quando foram confrontados, no posto administrativo de Contuboel, perante a situação de escolher o futuro régulo de Sancorla.

Conforme já se referiu mais acima, a vida e situação em Farimbali não eram fáceis de suportar. A pobreza extrema, conflitos permanentes com os vizinhos, o mal-estar resultante da humilhação sofrida com a derrota de Sambagaia na luta pela sucessão do seu tio Brandjame tornava inviável a continuação da família numa aldeia minada por intrigas, encomendadas a partir de Canhámina em conluio com alguns representantes das autoridades administrativas de Contuboel e Bafatá.

Foi devido a esta situação, no mínimo embaraçosa, e a chacota que dela resultaram, segundo explicou a minha mãe, é que justificou a fundação, entre 1959 a 1960 de uma nova aldeia no lado norte da bolanha, a menos de 2 km de Sare Coba, na confluência de Berekolóm (antigo feudo mandinga do Séc. XIX), que recebeu o nome do chefe da família, Sinchã Samagaia, que literalmente quer dizer a aldeia de Samba Gaia. Para agradar aos seus amigos da administração de Bolama, Sambagaia deu-lhe o nome de Luanda (porquê Luanda e não Lisboa?...).

Esta mudança de residência coincidiu com o meu nascimento. Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.

Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. O seu apelido era Shall, que faz pensar nos acompanhantes do célebre homem de letras e também chefe de guerra, El-hadj Cheik Omar Saidou Tall que marcou profundamente o então Sudão Ocidental da época pré-colonial com a suaDjihad e que teria feito uma passagem discreta pelos actuais territórios da Casamança e da Guiné-Bissau antes de se estabelecer no Futa Djalon.

O meu pai, Aliu Tambá Baldé (ou Tambá Maudô, como lhe chamava a Mãe), era o mais novo dos irmãos que formavam a família. Trabalhador intrépido e fiel à disciplina familiar, esteve muito ligado ao Naor que, praticamente, conduziu a sua educação após a morte do pai. Esta mesma dedicação faria dele o preferido de Sambagaia. Na verdade, ele estava destinado a liderar a família após a fuga de Sambagaia pois, com a morte de Patê, o belo, ficavam ele e o Dembaro. Este último era mais velho que ele, todavia, não oferecia aos olhos de todos o carisma e as capacidades requeridas para isso.

Mas, as diferenças de pontos de vista entre Sambagaia e Tambá eram também conhecidas de todos e não raras vezes vinham à superfície. De referir que este último, descontente com a maneira como Sambagaia geria os destinos da família, tinha feito uma aliança com Dembaro a fim de formarem um fogão à parte (núcleo familiar restrito no seio da família alargada), separando-se de Sambagaia e seus filhos, embora continuassem a viver juntos.

Este facto, todavia, não impediu que este o tivesse indicado para trabalhar no posto de auxiliar de comércio que lhe tinham oferecido (primeiro em Farim e depois em Cambajú), entre os comerciantes lusos que faziam o negócio de compra e venda local de borracha e outros produtos agrícolas, talvez, no intuito de acalmar o seu apetite pelo poder que seus primos da casa real não viam com bons olhos. Aliás, mesmo assim, [Tambá] ver-se-ia obrigado, mais tarde, com o início da guerra contra a ocupação colonial na zona norte (1963/64), a exilar-se no Senegal para fugir da conspiração dos herdeiros directos de Brandjame e seus seguidores.

Tudo levava a pensar que viveríamos para sempre em Sinchã Samagaia, aliás Luanda, onde, finalmente, tínhamos encontrado um pouco de paz e sossego, para se tentar reorganizar e construir as bases de uma família normal para a época. Aqui nasceu a minha irmãzinha Ramatulai e foi aqui onde comecei a descobrir o mundo, a minha família (**).

Desde cedo ganhei o gosto da aventura acompanhando o meu irmão Ibraima na pastorícia dos poucos animais (gado bovino e caprino) que, entretanto, os nossos pais tentavam reunir. As deambulações atrás dos animais, as brincadeiras junto dos poços de água, locais onde davam de beber aos animais (Bidal), constituíam a minha única ocupação. Não tendo ainda idade para a iniciação à vida adulta, aqui tudo estava em aberto, a minha liberdade e curiosidade não tinham limites. Tudo acabou com o rebentar da guerra que pouco a pouco se alastrou a partir de Cola-Carresse (Oio) e atingiu o Sancorlã em cheio.

A desmoralização e o abandono que se seguiram no seio do Regulado, não condiziam com a epopeia da guerra de pacificação com o Graça Falcão ou Teixeira Pinto. Nós acabámos por fugir para Cambajú (**).

(Continua)


Bissau, Novembro de 2006

[Revisão / fixação de texto / bold / cores: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

Meu caro amigo e irmão: Obrigado por teres tido a coragem de abrir, para nós, o álbum de memórias de família... É uma verdadeira saga... Ajuda-nos muito a entender o que foi a história do Séc. XX na tua terra, nomeadamente no chão fula. Mas também da nossa história, dos portugueses e dos europeus na época da expansão colonial, e do choque (cultural e não só) que isso representou para os povos africanos...
É, da tua parte, um gesto de grande hospitalidade, na melhor tradição fula, e de da grande apreço e amizade por nós, portugueses e guineenses, aqui reunidos na Tabanca Grande, debaixo do velho poilão... Percebo as tuas hesitações: revisitar o passado é sempre abrir a caixinha de Pandora... Estás, além disso, a expor-te e a expor a tua família, mostrando nesta aldeia global é que a Internet que afinal a tua família, tirando o contexto histórico, geográfico e cultural, é igualíssima a todas as outras nossas famílias, incluindo as nossas, do Minho ao Algarve, com as suas alegrias e tristezas, os seus altos e baixos, os seus amores e os seus ódios, as suas alianças e os seus conflitos, com os seus exemplos, bons e maus, de liderança, mas sempre com a mesma vontade e tenacidade na luta pela dignidade, liberdade e justiça...
É atravésa dessa instância de socialização que é a a família, que aprendemos, em primeiro lugar, a falar, a comunicar, a conhecer o que nos rodeia, a perceber o outro, o diferente, o estrangeiro... Mas é também, para o pior e o para o melhor, o lugar onde o aprendemos e imitamos os exemplos dos nossos maiores. Felizmente tiveste um pai e uma mãe que passaram o melhor das suas famílias, que são a memória, os valores, os princípios, a ética, o conhecimento, o nosso verdadeiro kit de sobrevivência. Vê-se que tens orgulho e ternura por eles... Obrigado, irmãozinho, em meu nome e em nome de todos nós. Um AB (Alfa Bravo), abraço. Luís

PS - Por azar, não tenho agora à mão a carta de Tendinto... Depois mando-ta... Está digitalizada mas ainda não disponível 'on line'...

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Vd. também poste de 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)


(**) Vd. postes aneriores da série:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

(***) Vd. poste de 2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P4678: António Sampaio, sê bem-vindo à Tabanca Grande (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves (*), Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 13 de Julho de 2009:

Meus caríssimos editores

Segue um texto de boas-vindas ao António Sampaio que se acharem por bem, poderiam publicar, junto com a foto anexa.

Não sei o email do Sampaio pelo que não posso enviar cópia para ele, o que se puderdes vos peço que façais.

Como falo de amigos da Força Aérea, envio também para o Miguel Pessoa.

Abraço amigo do
Joaquim


2. Mensagem de Mexia Alves para o nosso novo camarada António Sampaio, já enviada ao destinatário

Meu caro António Sampaio (**)
Sê bem-vindo à Tabanca Grande!
Foi um prazer rever-te no Encontro de Monte Real.

Tal como te disse, sendo os meses que passei na CCaç 15, (cujo lema era “Taque Tchife”, o que me afirmaram querer dizer “Agarra à mão”), e dado o avanço do apanhamento das minhas células cerebrais, as minhas recordações desse tempo são poucas, pelo que vou precisar de ti para as reavivar.
Vamos lá a ver se não apanho nenhuma vergonha!!!

Tive ainda o prazer nesse dia de falar ao telemóvel com o António Bamba, que era Furriel do meu Pelotão e com quem não falava desde a Guiné.
É muita emoção num só dia!

Mas o que me traz hoje ao teu encontro é deixar esta fotografia que encontrei no meu álbum e cuja legenda colocada por mim naquele tempo, reza assim:

Mansoa 73 – Na prova do rancho, intervalando com o corte de cabelo (Sampaio).

Ora aqui tens, acredito eu, uma tua fotografia inédita!!!

Mas quero ainda dizer-te que o Major Quintanilha foi um dos maiores amigos que tive em toda a minha vida.
Homem de uma cultura invulgar, (devorava livros), piloto de excepção, feitio a roçar o insuportável, mas um amigo de mão cheia, que só mais tarde soube, me trouxe da Guiné nesse Boeing no dia 21 de Dezembro de 1973, dia dos seus anos.

A frase que citas não tenho dúvidas em dizer que é dele, porque sempre foi rapaz para deixar o pessoal um pouco mais à rasca.

Passei longas noites com ele em Luanda, muitas vezes na companhia do Osório, outro piloto já aqui falado e que esteve na Guiné.

Morreu num trágico e estúpido acidente, já depois de sair da Força Aérea e andar a pilotar aviões de combate a incêndios, juntamente com dois outros grandes pilotos, o Castanheira, salvo o erro, e o Ten Cor David que era comandante da Base Aérea de Luanda e foi quem me tirou de lá, (apesar de eu já não ser militar nesse tempo), quando já em cima da independência me queriam prender, sabe-se lá porquê, e me fez embarcar outra vez no Boeing militar de regresso a Lisboa.

Aqui fica portanto este excerto de história para percebermos que as nossas histórias sempre entroncam nas histórias dos outros e assim juntos vamos fazendo história.

Abraço camarigo para ti e para todos do
Joaquim Mexia Alves
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves

(**) Vd. poste de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4662: Tabanca Grande (159): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e Cap Mil da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74)

Guiné 63/74 - P4677: Parabéns a você (13): Dia 13 de Julho de 2009 - Rogério Ferreira, ex-Fur Mil da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905 (Editores)

Hoje, dia 13 de Julho de 2009, faz anos o nosso camarada Rogério Ferreira (*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné, 1970/71.

Deste modo vimos desejar a este nosso camarada uma longa vida junto dos seus familiares e amigos.

Recordemos a sua apresentação no poste 3255:
[...]
Fui Fur Mil Inf e com a especialidade de Minas e Armadilhas. Pertenci a CCAÇ 2658/BCAÇ 2905. Estive em Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate e manga de LDG para ir do Xime até Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, aí até aos 19 meses, vindo os restantes meses para Bissau para o AGRABIS (600), ainda Nhacra umas duas semanas até ao barco.

Em Mareue, aldeia só com população, calhou-me construir um quartel, mas dessas peripécias contarei outro dia.

Calcorreei muito chão, do manjaco ao fula, do balanta ao mandinga.

Estive em Bambadinca pelo menos uma vez a beber umas bazucas com malta conhecida de Santarém, de onde sou, que era o Vitor Alves, furriel e um soldado ou cabo Orlando Rodrigues, já falecido depois do regresso. Conheço de algum modo a zona. A estrada que ia do Xime para Bambadinca, quando cheguei, era só buracos pegados onde cabiam os unimogs mais pequenos e se deixavam de ver, demorando horas a atravessar. Quando vim para a LDG estava tudo alcatroado, demorámos a volta de 20 minutos, lembro-me que habia soldados africanos a fazer-nos a segurança na orla da mata quem sabe se algum dos colegas que fazem parte do site e que são do meu tempo lá estariam a comandá-los.

[...]
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

19 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3483: Tabanca Grande (97): Rogério Ferreira, ex-Fur Mil da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné 1970/71

30 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3255: O Nosso Livro de Visitas (31): Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné (1970/71)

18 de Novembro > Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4659: Parabéns a você (12): Dia 9 de Julho de 2009 - Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil da CCAÇ 3414 (Sare Bacar, Cumeré, Brá, 1971/73)

domingo, 12 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4676: FAP (32): Defendendo a minha dama (Miguel Pessoa)

1. Mensagem de Miguel Pessoa (*), ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado, com data de 11 de Julho de 2009:

Aos 4 Mosqueteiros do Blogue
Estive afastado da Net quase uma semana e, regressado, leio os comentários saídos nestes últimos dias e fico preocupado com o conteúdo de alguns. Parece que andamos um pouco afastados da troca de memórias e de afectos que este blogue pretende incentivar...
O Blogue não renega a sua ascendência guineense pois, assim como ali se sucediam as revoadas (ou pragas) - de gafanhotos, de baratas, de grilos, de cantáridas, de sapos - não por esta ordem, necessariamente, também no blogue surgem as revoadas que periodicamente enchem as suas páginas e que têm dado alguma polémica: foi a retirada do Guileje, depois o caso do AB a que se seguiu a comparação da tropa especial com a tropa macaca (termo que não aprecio), há pouco foram os desertores e, mais recentemente, o contributo do pessoal miliciano (nomeadamente os furriéis) versus o pessoal do quadro.

Relacionado com este último assunto, embora receando que este meu texto possa vir um pouco atrasado, não quero no entanto deixar de pôr à vossa consideração a sua publicação, pois parece-me de todo necessário que se evite generalizar aquilo que não é igual para todos. Ou corre-se o risco de se ver tudo pela óptica daqueles que cumpriram o seu serviço no Exército, não deixando ao pessoal dos outros Ramos margem de manobra para se pronunciarem neste espaço.

Não gosto de alimentar discussões, mas se tiver que ser... Como diria o outro: - Venham todos! Quantos são?! Quantos são?!.

Um abraço.
Miguel Pessoa.


DEFENDENDO A MINHA DAMA
Miguel Pessoa

Nestes últimos tempos tenho seguido com a devida atenção os textos e os subsequentes comentários feitos por alguns bloguistas relativamente ao contributo dos militares milicianos no decorrer da guerra que travámos nas antigas colónias, comparando-o com o que aos militares do quadro diz respeito.

Atenção e tristeza pois, sendo alguém que desenvolveu a sua actividade profissional como oficial do quadro das Forças Armadas (não fazendo aqui qualquer distinção do Ramo em que desenvolvi essa actividade), custa-me ouvir estes comentários depreciativos sobre um grupo profissional ao qual pertenci (ou, melhor dizendo, hei-de pertencer até ao último dia).

Não irei fazer a defesa do grupo a quem maioritariamente esses comentários se dirigem, e que me parecem passar ao lado da Força Aérea: Primeiro, por desconhecimento dos factos aqui reportados; segundo, porque não fui para tal mandatado por ninguém dos outros Ramos, pensando eu que quem se sentir injustamente atingido com essas observações poderá sempre ter a possibilidade de as rebater neste espaço.

Apenas direi que estas apreciações correm sempre o risco de ser generalizadas, entrando-se em situações de inevitáveis injustiças, ao tomar-se a parte pelo todo, embrulhando na mesma folha os que cumpriram e os que conseguiram uma vida bem menos atribulada.

Posto este meu comentário inicial, e face ao risco de uma possível generalização, tenho que deixar-vos umas palavras em defesa da honra da minha Dama - a Força Aérea Portuguesa. Sei que arrisco ouvir alguns comentários menos abonatórios, mas se é verdade que não gosto de comprar guerras desnecessárias, também não costumo fugir a elas. E penso que esta ocasião justifica que eu corra esses riscos.

Bissau > Bissalanaca >BA 12 > 1974 > O então Ten Pilav Miguel Pessoa..

A Base Aérea 12 tinha naturalmente uma organização hierárquica bem definida, em que cada um, aos diversos níveis, sabia perfeitamente o que lhe competia fazer. Quando se tratava da actividade de voo, a situação era um pouco diferente. As Esquadras de Voo dispunham naturalmente de efectivos estabelecidos para o cumprimento da missão; mas, por escassez de meios humanos e também por existirem na Unidade pilotos dos escalões hierárquicos superiores devidamente qualificados nas aeronaves existentes, aqueles ficavam adidos a uma das Esquadras para efeitos de voo. Já tive a oportunidade de aqui o referir, mas relembro que na Esquadra 121 (Fiats, DO-27 e T-6) voavam regularmente o Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, o Comandante da BA12, o Comandante do Grupo Operacional 1201, o Oficial de Operações do GO1201 e um Oficial Superior colocado no Quartel General como oficial de ligação da Força Aérea. Os postos destes militares variavam entre Coronel e Major.

Quando integrados nas missões da Esquadra, era possível ver esses oficiais voarem sob as ordens de oficiais menos graduados pois, mais importante que a antiguidade do posto, interessava a experiência do piloto no Teatro de Operações. No meu caso pessoal, cheguei a voar integrado em formações chefiadas por alferes milicianos e, no oposto, chefiei formações em que voavam capitães antigos e tenentes-coronéis. E não era por isso que eram postas em causa as competências e autoridade de cada um no desempenho de funções em terra.

Assim, os riscos em voo eram democraticamente repartidos por todos os que voavam na Esquadra, fossem coronéis, tenentes-coronéis, majores, capitães, tenentes (todos do quadro) ou tenentes, alferes e furriéis (todos estes milicianos).

Um exemplo dramático disto é o facto de no decorrer de missões, no ano de 1973, terem sido mortalmente atingidos oficiais superiores adidos à Esquadra 121, o Ten Cor Brito, comandante do GO1201, e o Maj Mantovanni Filipe, oficial com funções no Quartel General, tendo ainda, por outro lado, perdido a vida Furriéis Milicianos colocados na Esquadra, como o Fur Baltazar da Silva e o Fur Ferreira. Isto para além de 3 oficiais do quadro que se ejectaram com sucesso no decorrer do mesmo ano.

É, pois, em nome de todos aqueles que, abdicando de eventuais mordomias, dedicaram todo o seu esforço - e nalguns casos a vida - ao apoio à Esquadra 121, que deixo aqui estes esclarecimentos. (*)

Miguel Pessoa

(*) Tentando evitar fazer chalaça com esta frase, direi que na maioria dos casos o ar condicionado, mencionado naqueles textos, serviu na maior parte das vezes para amenizar as altas temperaturas sofridas dentro do cockpit do Fiat G-91.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4635: FAP (31): Uma viagem de heli a Bafatá, em 1969, com o cmdt Diogo Neto e o casal Ivette e Pierre Fargeas (Jorge Félix)

Guiné 63/74 - P4675: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (9): Férias na Metrópole. Não há duas sem três...

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 8 de Julho de 2009:

Caro Carlos:

Estive uns dias em Oviedo, cidade asturiana, daquelas em que apetece viver,
aliás como deviam ser todas as nossas. Foi esse o motivo do pequeno atraso
semanal no envio da IX estória para a série A Guerra Vista de Bafatá, que segue
em anexo.

Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
8 - Férias na metrópole. Não há duas sem três…


Foto 1 > 1968 > Chegada a Bafatá num Dakota, depois das primeiras férias. Vista parcial da tabanca da Ponte Nova.

Todos têm as suas manias. Eu tenho as minhas. Uma é a de considerar as férias sagradas. Entendo que quem trabalha tem esse sacro direito.

Quando fui mobilizado para a Guiné sabia, à partida, que iria ter direito a um mês de férias em cada ano civil (mais cinco dias, suponho, se viesse à metrópole) mas só podendo vir à metrópole duas vezes, por ser miliciano. Os oficiais do quadro podiam vir três vezes.

Fui para a Guiné em JUN68 e vim em JUN70. Três anos civis com direito a duas férias cá. As regras eram essas pelo que orientei a minha vida nesse sentido.

Gozaria as primeiras em NOV68 e as segundas e últimas em MAR/ABR69. Casaria nestas últimas e a minha mulher mais tarde iria passar umas temporadas à Guiné, em Bafatá, onde tinha possibilidade de alugar uma casa.

Nessas primeiras férias tudo foi pacífico. Passados mais uns quatro meses viria novamente de férias, MAR/ABR69, mas as coisas complicaram-se.

No Agrupamento em Bafatá tinha conhecido um soldado nativo, Seidi, que estava à espera de ser julgado, pensava eu, por algo que teria feito contrário ao RDM. Quarenta anos depois cheguei à conclusão, pela leitura dos livros do Beja Santos, que esse tal Seidi devia ser o mesmo que algures, na zona de Bambadinca, tinha espancado a mulher.

Se tivesse sabido que o Seidi tinha praticado tal javardice talvez eu não tivesse embarcado no que se passou a seguir.

O Seidi foi para Bissau onde iria ficar preso, tendo-me pedido para o visitar na prisão. Passados uns dias sigo também para Bissau a caminho das minhas segundas férias.

Como prometido, procuro a prisão no Quartel General, em Santa Luzia. Já perto, de trás das grades, o Seidi chama-me. Estivemos à conversa e em determinada altura diz-me: Meu Alferes faça-me um favor: sabe que sou muçulmano e que não bebo vinho. Peça ao nosso Major (chefe dos serviços prisionais) que, em vez do vinho, me dêem o correspondente patacão, assim já dá para melhorar o resto do cume.

Fui falar com o tal Major e expus-lhe a situação.

O céu parece ter desabado ali. O homem espumava por todos os lados e aos gritos perguntou:

- O que está a fazer aqui?

- Vim de Bafatá e vou de férias à metrópole.

Aos gritos continuou:

- IA, IA, IA. O nosso Alferes não conhece o RDM? Não sabe que não se podem visitar presos sem a minha autorização?

Vendo a minha vida a andar para trás (e não só a minha), adiantei-lhe que nas férias iria casar, que tinha tudo marcado.

Por isso e talvez por ter conseguido ler os meus pensamentos assassinos, fui de férias.

No princípio do ano de 1970, num fim de tarde estando à conversa com um Major, que por ser do quadro tinha acabado de gozar as suas terceiras férias na metrópole, aquele major sugeriu-me que deitasse o barro à parede, pedindo as minhas terceiras férias.

Depois de pensarmos qual a justificação a apor no requerimento, só se descobriu uma: Conforme casos anteriormente autorizados.

O requerimento foi para Bissau. Ao fim de um mês veio a resposta. Quem deferiu o requerimento ou não conseguiu encontrar a lei que impossibilitava aos milicianos as terceiras vindas à metrópole ou, por pura incompetência, não verificou que eu era miliciano.

Faltavam uns dias para ir para Bissau apanhar o avião com vista às terceiras férias, quando à porta do Comandante (Cor Neves Cardoso) tive uma discussão com um Major que mais tarde se viria a revelar de baixíssimo carácter, que elevou a voz. Como achava que tinha toda a razão do meu lado, elevei também a minha, no pressuposto, no meu subconsciente, que dentro do gabinete do Comandante estaria ainda o anterior Comandante Cor Hélio Felgas, que me teria dado razão.

A pessoa era outra e um pouco depois mandou-me chamar para me comunicar que me tinha cortado as férias.

Foto 2 > 1970 > O Cor Neves Cardoso entre o Ten Cor Banazol e o Administrador

Fui lamentar-me junto do Major que me tinha ajudado a fazer o requerimento e este, que não se dava com o outro (aliás ninguém se dava com tal elemento), prometeu-me que falaria com o Comandante.

Fui chamado novamente e lá vim de férias, só que o insólito ainda estava para acontecer.

Em Bissau, já no aeroporto, quando estava com o chek-in feito e a chamarem para o embarque, o meu passaporte militar não aparecia. Procurei, procurei, revi os bolsos várias vezes, várias vezes tirei tudo da pequena sacola que levava e nada.

Só faltava eu embarcar.

Em determinada altura a minha situação chegou ao conhecimento do Comandante do avião. Junto deste tornei a rever todos os sítios possíveis onde poderia estar o documento militar. Em determinada altura o comandante dá a seguinte ordem, sem que eu estivesse à espera:

- Retirem todas as malas do porão do avião até a mala do senhor Alferes aparecer.

Termino, dizendo que o Passaporte Militar não estava na mala… mas vim de férias… com Passaporte Militar.

Obrigado Senhor Comandante.

Foto 3 > ABR1970 > Viagem de Bissau para Bafatá em LDG - 1.ª classe, no regresso das últimas férias.

Foto 4 > ABR > Chegada ao cais do Xime, no regresso das terceiras férias. “Tudo ao monte e fé em Deus”

A próxima estória relatará uma situação simples da guerra de retaguarda à qual eu pertencia e que a meu ver completava a da frente de combate. O tema será uma mina e um poema alusivo de um nosso camarada também poeta.

Até para a semana camaradas.

Texto e fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4637: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (8): À carga no Esquadrão de Cavalaria de Bafatá

Guiné 63/74 - P4674: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (16): O alvoroço dos (re)encontros: obrigado, malta da CCAÇ 2790 (António Matos)

Guiné >Bula > CCAÇ 2790 > A entrada no destacamento da Ponta Augusto Barros, com o Alf Mil Matos à frente...

Guiné >Bula > CCAÇ 2790 > A equipa de futebol... De pé, do lado direito, de camuflado, o Cap Inf Sucena (ou será o Gertrudes da Silva ?)
Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa: a jangada que fazia a travessia do rio, em João Landim, carregando o pessoal da CCAÇ 2790. (Teve como unidade mobilizadora o BII 18, partiu para a Guiné em 24/9/1970 e regressou a 30/9/1972. Esteve em Ponta Augusto Barros e em Bula. Comandantes foram dois: Cap Inf José Pedro de Sucena, e Cap Inf Diamantino Gertrudes da Silva.

Fotos: © José Câmara (2009). Direitos reservados

1. Mensagem de António Matos (*), ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72:

Caros editores, aqui vai um texto [, para publicação como poste, logo que possível]... Em anexo mando algumas fotos que me foram cedidas pelo José Câmara, lá dos States, que me fizeram muito bem pelas recordações fabulosas que me permitiram (**).

Um abraço
António Matos


2. O mundo é pequeno e o nosso blogue ... é grande (***) > Obrigado, José Câmara!por António Matos

Caramba, como bate o coração !!!!

Caramba, eu que fui um especialista comercial da grande IBM Portugal, [colega do Raul Albino,] vejo-me agora a vibrar a um ritmo cardíaco mais acelerado do que o meu normal pelas maravilhas informáticas postas ao meu dispor !!!!

Caramba, que laços estes que se formaram na guerra e que agora, quase 40 anos depois, me põem de lágrima ao canto do olho, com um entusiasmo danado por alguém ter descoberto uma ligação aos homens que comigo conviveram naqueles 2 anos de inferno mas que a vida os transpôs para terras do tio Sam, para lá do Atlântico, e de quem nunca mais tive a mínima ideia de os voltar a encontrar...

Esta é uma primeira tentativa conseguida (se bem que ainda só em fotografia ) mas talvez o futuro nos venha a possibilitar, ainda, aquele abraço !

Caramba, José Câmara, como te estou agradecido !!!!

Caramba, José Câmara, que fantástico rever o Moniz, o Benevides, o capitão Sucena, o padre Antero, o Rocha, o Ferreira, o furriel Carabina, o furriel Cardoso, o Cordeiro, o Simas, o Aprígio, o capitão Gertrudes da Silva, o Carvalho Araújo em Ponta Delgada, a LDM e tantos outros camaradas que, relembrando-me deles, não recordo os nomes...

Como te posso agradecer, meu caro ?

Não sei por onde começar a desembrulhar o enigma desta parte da minha vida mas sei que não vou largar as pontas agora expostas.

Vou continuar a precisar de ti desse lado do mar para me pores em contacto com essa malta que foram para mim como irmãos, como filhos, como companheiros de luta, como parceiros de momentos de angústia, de medo, de dor, de solidariedade desmedida, enfim.

Melhor do que ninguém saberás dar andamento ao que já deslindaste mas agora põe essa gente a falar comigo , por favor!

Os números de telefone que já me disponibilizaste (José Bairos e José João) não me têm dado qualquer resposta e não sei dar andamento ao assunto.

Conto contigo e com eles!

Faz boas férias e se passares cá pelo Continente, telefona ! Estou no 919777978 !

Um grande abraço do
António Matos
___________

(*) Vd. postes de:

1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

Vd. também postes de:

7 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4296: Espelho meu, diz-me quem sou eu (2): António Matos

26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4582: Os Nossos Camaradas Guineenses (11): Ernesto… procuro saber algo sobre este meu Amigo guineense (António Matos):

(**) José da Câmara, natural das Lajes das Flores, Açores, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73.

Vd. postes de:

15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4350: Tabanca Grande (141): José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73)

25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4577: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (13): Encontro de dois atabancados em terras da América (José da Câmara)

27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4424: (Ex)citações (30): O meu pai só aprendeu as letras que o trabalho lhe ensinou (José da Câmara)

Vd. série Memórias e histórias minhas (José da Câmara):

16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

(***) Vd. útimo poste da série>

12 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)

Guiné > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler... Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (região de Quínara e região de Tombali)...

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados

1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):
Caríssimos editores. Depois de uma conversa que tive ontem com o Chefe de Tabanca, Luís, o qual me deixou a pensar, resolvi escrever este texto inspirado numa cena hoje vivida. Se merecer ter entrada no blogue, façam favor . abraço fraterno para tudo dgenti.

José Teixeira.


O QUE NOS DEVE UNIR COMO VETERANOS DE GUERRA (**)
por José Teixeira


É meu hábito, desde longa data, todos os sábados de manhã ir à feira de Custóias, [no concelho de Matosinhos,] abastecer-me de frutas e legumes.

Um dos feirantes, onde normalmente adquiro a fruta , bateu com os costados na Guiné. Soube-o há pouco tempo e desde então a nossa forma de estar e conversar modificou-se, para admiração dos seus dois filhos, já que minha esposa conhece o que a casa gasta. Desde os bons dias como "na pinda” ou "corpo di bó, o “vai no gosse” ou “manga di ronco” etc. Os rapazes devem legitimamente pensar que o pai estar "apanhado pelo clima”.

Neste sábado a conversa centrou-se nos locais por onde passámos e para alegria de ambos, Ingoré foi o nosso hotel por algum tempo, embora em épocas diferentes. Barro, Antotinha, Sedengal, Ingorezinho, etc nomes sonantes para nós, com aventuras pelo meio que logo começaram a ser contadas.

Continuando a nossa conversa/caminhada, deslocamo-nos para o Sul, onde Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Gandembel foram estrelas para mim que o meu amigo e camarada não chegou a conhecer.

A meu lado postou um possível comprador de fruta, o qual de repente e sem ninguém contar, começa a cantar:

Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira,
onde nós, pobres soldados,
imitamos as toupeiras...


Que espanto! Que alegria ! o meu coração já bailava ao som da cantiga, que tantas vezes cantei no terreno e ainda o ano passado foi show no Simpósio de Guiledge.
- Quem é você ?
- Um pára-quedista da Companhia 121, que esteve em Gandembel, Aldeia Formosa, Cantanhez na segunda metade de 1968.

Segui-se o rosário habitual das cenas vividas naquele inferno, algumas delas em comum, como a coluna que foi a Gandembel levar mantimentos com os Páras na mata a montar segurança e eu/nós na picada a levantar minas e fazer caminho, para que as viaturas carregadas pudessem chegar ao destino.

Que bela manhã de sábado !

Esta minha feliz vivência, quarenta e um anos depois, creio, vir a propósito perante o momento que a Tabanca Grande vive neste momento. Momento, no mínimo apreensivo, para quem cá anda desde 2005, quando estávamos a chegar aos cinquenta tertulianos. Desde essa data, leio avidamente tudo quanto aparece escrito, porque me diz muito. Fala-me de uma terra que é a minha segunda pátria. Também lá pus as minhas marcas; o meu Diário, escrito a quente e outras estórias que não couberam no diário, mas que ficaram gravadas no coração (*).

O desafio que nos é posto, simples e concreto – não deixes que sejam os outros a contar a tua História, por ti – é estimulante e pode vir a ter muito valor, se é que já não tem, na realidade histórica que os nossos vindouros vão querer saber no que respeita à guerra colonial.

Nós somos os actores da História que vivenciamos e temos condições para sermos os autores dessa mesma História. Isto é, as nossas estórias, serão a base verdadeira e real suporte para os historiadores, que no futuro farão da nossa estória, uma História de factos reais vividos e testemunhados e não uma lenda.

Ultimamente, o nosso blogue,(como o Moreira de Gandembel, recém-chegado, me dizia há dias pelo telefone) por intervenção de alguns camaradas, tem-se desviado do seu objectivo central, para se perder em questiúnculas estéreis, vazias de conteúdo histórico, atiçadas por paixões pessoais, de índole, politica, partidarites, e até militarites.

Assim, não fazemos/construímos a História, a nossa verdadeira história, vivida e sofrida de tal modo que ninguém conseguirá substituir-nos.

Basta-me o que vivi no terreno como escrevi no meu Diário:

Janeiro 1969 / Chamarra / 23

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrém.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furrieis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer. (...)


Abril,1969 / Buba / 19

Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se houve a voz da razão.

Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia e um Comando Africano, quando tomavam banho originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece está tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns 'Fuzas' intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultou algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G 3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.


Amigos e camaradas, contemos as nossas estórias sem as carregarmos com espartilhos, estribilhos e outros ilhos. Deixemos que a melancolia de um passado que não voltará, lhe dê um toque de romance, porque não! Mas não as sobrecarreguemos com as marcas que a vida que se seguiu, se encaixaram dentro de cada um de nós.

Sobretudo, saibamos, compreender os camaradas que, ao contar as suas estórias, reflectem uma visão ou pontos de vista diferentes dos nossos. Admitamos que eles viram e viveram os acontecimentos à sua maneira.

Não nos esqueçamos que somos todos iguais como homens, mas todos diferentes na essência, na educação, nas marcas que a vida nos foi deixando. São essas diferenças um enorme factor de riqueza que permitiu ao homem, nascer, crescer e caminhar no cosmos, promovendo a mudança e o crescimento, que nos permite esta forma de viver que ninguém sonhava há alguns anos atrás.

É essa diferença de pontos de vista sobre a mesma vivência, sem ataques pessoais que nos vai permitir uma visão de conjunto, mais realista, permitindo um crescimento cultural efectivo.

Há tanta coisa que nos une, porque havemos de alimentar e dar força a pequenas coisas /paixões que nos desunem, nos fazem sofrer e tiram valor à história que vivenciamos, a qual ninguém jamais nos poderá substituir.

Para todos um abraço fraterno do tamanho... Talvez da vida que vivemos.

José Teixeira

2. Comentário de L.G.:

Zé: Obrigado pela tua história de hoje... Tens um especial talento para fazer um bela história com pouca matéria-prima... Ou melhor, com dois ou três pequenos apontamentos ou observações. A tua ida, ontem, à feira de Custóias veio mostrar que, afinal, o mundo é pequeno e que o nosso blogue é...grande. À volta de coisas tão essenciais como a fruta e os legumes, fostes descobrir , por acaso, camaradas que andaram pelos mesmos sítios que tu, nos idos anos de 1968... E como foi genuína e bonita a manifestação das tuas emoções, do teu espanto e da tua alegria!...

Nem sempre os nossos familiares e amigos entendem esta capacidade de ainda nos emocionarmos, quarenta anos depois, ao encontrar alguém que passou pelos sítios que nós... durante a guerra da Guiné. Às vezes, até ficam com uma pontinha de ciúme pelos novos amigos que fazemos, os camaradas da Guiné...

Esse, é de facto, o maior denominador comum que nos une, a capacidade de falarmos uma linguagem comum como ex-combatentes, falarmos de coisas comuns, lugares, episódios, pessoas, emoções, experiências, que partilhamos uns com os outros...

Pessoalmente, não exijo mais deste blogue que criei, e que ajudo a alimentar todos os dias, com o talento, o apoio, o entusiasmo, a entrega, a paixão, a criatividade e a camaradagem de tanta gente fantástica como tu e os meus/nossos queridos co-editores, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e Eduardo Magalhães...

Obrigado, meu Esquilo Sorridente! Que este blogue continue a proporcionar-te outros felizes encontros e a dar-te muitas outras alegrias... Julgo ser essa a sua missão primordial...
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.

(**) 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4652: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (14): O mundo é do tamanho duma ervilha (António Matos)

Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 6 de Julho de 2009:

Olá Camarada
Fiquei a saber que a filha do Beja Santos faleceu.
Que é que se diz nestas alturas? Num caso como este, não sei porquê, o melhor é nada dizer... Os que nos seguem de longe, quando se nos dirigem nestas alturas, dizem coisas... E eu não quero dizer coisas.

Pois eu escrevi um texto sobre os ex-combatentes no qual procuro saber Quem Somos? São quatro páginas a computador e, por isso, parece-me um pouco infuncional para o blog, pois vai ocupar um grande espaço e a malta terá dificuldade em lê-lo.

Que farei com este texto? Ora dá uma ideia e informa, como se dizia naquele tempo.

Um Ab do
António Costa


2. Cabe aqui uma pequena intervenção antes de apresentarmos o texto do nosso camarada A. Pereira da Costa.

Face a este depoimento, que podia ser igual ao que cada um de nós faria, se para o efeito tivesse a mesma arte e engenho, fica provado que temos tanto em comum, mesmo admitindo as divergências normais e salutares, que todos os conflitos criados recentemente, artificialmente talvez, empolados propositadamente, são insignificantes, comparado com aquilo que nos une.

Vamos definitivamente enterrar os machados, esquecer ou pelo menos desculpar os nossos camaradas que não pensam como nós, e de uma vez por todas deixar de utilizar palavras provocatórias e ofensivas. Problemas pessoais devem ser tratados por mail ou telefone, e nunca nos comentários.

Estou a falar por mim, não entrei para a Tabanca e muito menos para a edição do Blogue para ver a minha caixa de correio cheia de tricas. Quero trabalho, muito, mas construtivo. Para outra coisa, acreditem, não estou cá.

Optei por publicar o texto do nosso camarada por inteiro, porque o achei demasiado importante para o dividir. Leiam por favor, porque é muito importante e leva-nos a reflectir sobre o que foi o nosso passado.
C.V.


Quem somos nós?António J. Pereira da Costa

Afinal quem somos nós, os ex-combatentes, como hoje, se diz?

Primeiro, interroguemo-nos acerca das razões que nos levaram a participar numa guerra, chame-se ela colonial, do ultramar ou de África. O nome é o menos importante e não deve constituir motivo de discussão. O que verdadeiramente interessa é o que se passou, o que fizemos ou não fizemos, porque fizemos isto e não aquilo, o que estava à nossa volta, quer fossem outros compatriotas, o inimigo, a terra ou clima. Por mim, não me restam dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.

Nós que, de vez em quando, em tantos sítios do país e às vezes no estrangeiro, nos reunimos para conviver, temos, como denominador comum, um tempo que passámos em África – mais ou menos dois anos – pouco tempo numa vida inteira e numa situação que, quando terminámos a escola primária, nem sonhávamos que pudesse ocorrer. Pouco tempo depois do fim da escola, fomos surpreendidos por alguma coisa que acontecia naquilo que tínhamos estudado como sendo parte integrante do nosso país e que nem sequer imaginávamos que contornos podia ter. Quantos de nós conheceriam a África? E se era nossa? De quem? Nossa mesmo? E era-o como e porquê? Como exercíamos essa posse? No fundo, nunca tínhamos pensado no assunto. Éramos uma comunidade una, mas dispersa? Ou simplesmente um conjunto de territórios povoados por povos diferentes? De países, em última análise...

Começara a guerra, dizia-se.

Os governantes do tempo procuravam reduzi-la a simples operações contra terroristas infiltrados a partir dos países limítrofes, bandoleiros, tresloucados etc. quase como se fossem operações de polícia. Porém, ainda hoje não tenho conhecimento de qualquer ofensiva diplomática ou protesto, junto das instâncias internacionais, por parte do governo português, para que o apoio estrangeiro aos tais terroristas terminasse. Era o mínimo que se exigia.

Começamos hoje a não ter dúvidas de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes e residentes naquelas terras, que observaram o que se passava e se aperceberam do aumento das tensões entre os diferentes grupos sociais: mais ou menos pobres, mais ou menos detentores ou condicionadores do funcionamento dos meios de produção. Se a isto juntarmos as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos, temos uma mistura explosiva que, só poderia ter sido evitada com algo que se não fez antes e que, quando se pretendeu fazer era tarde demais: o desenvolvimento económico e social e a integração. Os que anunciaram que havia perigo ficaram mal vistos e foram tidos como mensageiros da desgraça, às vezes mesmo como elementos perturbadores, interessados em desequilibrar o país e as suas instituições, espiões, quase. Não há dúvida de que o pior cego é o que não quer ver.

Infelizmente, a ciência, mesmo quando não é exacta, não deixa de ser ciência e de prever as consequências dos factos que vão acontecendo. É inutil fingir que se ignora que as sociedades funcionam num processo dinâmico e que a repressão a esse processo sempre deu mal resultado.

Não sabíamos que era assim, mas aquilo a que a dada altura passámos a chamar guerra era afinal, consequência de um domínio virado para a exploração de recursos, naturais ou não, e dos primitivos habitantes daquelas terras. Se os primeiros servem mesmo para isso mesmo, a exploração e ao mau trato aos segundos revela-se, a prazo, uma fonte de tensão que, neste caso, terminou numa revolta, com largo apoio no exterior mercê da conjuntura internacional favorável, mas com larga implantação na população, como vimos à chegada à Guiné.

Éramos assim, uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida com vento forte. Era um incêndio que tinha por onde arder e boas condições para lavrar. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.

Com a idade que tínhamos quando ela começou, os nossos pais, só tarde, começaram a pensar que a sorte também nos iria tocar.

Que fazer então quando, à data de embarque, a guerra era velha de dez anos e nós jovens com pouco mais de vinte?

Havia, como se lembram, os muitos que já tinham ido e voltado – amigos e conhecidos – e que nos davam a ideia de que afinal as coisas não seriam assim tão más. Poderíamos correr o risco.

A opção não era fácil. As escolhas, quase desconhecidas. Vivíamos num país atrasado e todos os que vieram a emigrar ou os poucos que então visitaram o estrangeiro sabem do que falo. As diferenças que encontrávamos falavam por si. Estávamos encurralados entre dois fogos. Se, por um lado, a incerteza da guerra se aproximava – e hoje todos entendem o que digo – por outro, a certeza da impossibilidade de ficar, era um dado a que não podíamos fugir. Entre as duas soluções, só o diabo sabia escolher. Quantos de nós pensámos na outra solução?... Quantos de nós pensámos em fugir? Quantas vezes não nos arrependemos de não o termos feito?

Fugir. Aqui estava outra expressão que a nós, homens de bem e bem formados, repugnava. Tudo aquilo que pudesse ser confundido com fugir não era para os homens da nossa geração. Mas as coisas não são assim tão simples e fugir pode ser um acto de valentia, quando se sabe, porquê. Quando se recusa fazer algo, arrostando com as consequências que, às vezes, nem adivinhamos quais possam vir a ser, entrando numa espécie de opção “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”, então fugir é um acto de valentia que pode exigir maior integridade moral do que aceitar passivamente o destino comum.

Vale a pena voltarmos a pensar nos que tinham ido e voltado. Por estranho que pareça, à chegada, eles pareciam ter esquecido tudo. Não falavam do que tinham vivido. Não procuravam passar-nos – como se tal fosse possível – a sua experiência. Não nos aconselhavam, nem nos desaconselhavam. Partiam para a sua vida com a ânsia de quem tinha perdido tempo e agora só pensavam em começar a viver.

Hoje não temos dificuldade em compreender a atitude destes camaradas.

A sociedade, à chegada, não lhes reconhecia o mínimo valor. Eram um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, teimosia e intransigência. À sociedade relembravam um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, deixava o tempo passar e o problema agudizar-se.

E se voltavam deficientes, estavam condenados a sobreviver.

Desde aqueles que ficaram depositados numa cama ou numa cadeira de rodas, sobrecarregando a família e sofrendo o esquecimento dos amigos, até àqueles que conseguiram, sabe-se lá com que esforço e vencendo que combates, progredir na vida, parecendo esquecer-se do que lhes tinha sucedido. Não podiam. No fundo, não lhes era fácil recordar, ao fim de cada dia, que lhes faltava um bocado do corpo.

E os que por lá se tinham perdido, caídos nas mãos do inimigo e sofrendo, na prisão, uma culpa que não sabiam se tinham? E aqueles a quem a família não teve outro remédio senão esquecer, apagados na sequência dos dias? As mães, os pais, as esposas, os irmãos ou um outro amigo ainda os procuravam, de vez em quando, no local do último repouso, mas depois...

Depois... o resto já todos sabemos. A vida é isso mesmo e não há nada a fazer.

Enfim chegou a nossa vez.

– “Se os outros foram e voltaram, eu também poderei ir e voltar” – era um dos nossos pensamentos.

– “E até pode ser que não seja bem assim. Pode ser que o sítio não seja mau e que o tempo passe depressa. No fundo são só dois anos” – dizíamos também.

– “Tenho fé de que comigo vai ser diferente” – pensávamos para nos animarmos.

À chegada, o choque foi grande. O desembarque numa cidade militar e num teatro de operações não tinha nada a ver com a simples chegada a um país que não era o nosso. Era o mergulhar num desconhecido, que se mostrava cada vez mais soturno e dramaticamente enigmático, à medida que trocávamos impressões com os veteranos. Alguns, poucos, pareciam ter ganho a guerra. Outros revoltavam-se. Outros aceitavam a sua sorte como algo que não podia ser modificado. A confusão no nosso espírito era grande. Todavia, numa coisa estávamos todos de acordo: aquilo era outra terra e – porque não dizê-lo? – outro país. Deixada para trás a cidade, a vida no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, em que os camponeses nos eram estranhos, não falavam a nossa língua, não cultivavam a terra como nós e tinham hábitos de que só vagamente tínhamos ouvido falar, era algo que nos paralisava.

Quem eram? O que queriam? De que lado estavam e porquê? Se recusavam a protecção e a ligação ao inimigo, preferindo o nosso apoio e colaborando com a nossa acção, tendo nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal? Estas talvez fossem questões que não púnhamos, ao princípio, mas que ao fim dos primeiros tempos de acção, com as primeiras horas de mato feitas e a recepção das diferentes notícias do inimigo começaram a preocupar-nos.

O tempo escorria no calendário, com as operações – quem não se lembra das emboscadas, quando o tempo não passa? – as tarefas monótonas de cada dia e as notícias ou a falta delas dos nossos, a quem tínhamos de escrever, contando verdades ou mentindo, consoante entendêssemos que era melhor para o destinatário.

Começávamos a ser cada vez mais experientes e fazer uma ideia do que se passava à nossa volta. Envelhecíamos, sem darmos por isso. Sabíamos agora mais o que era importante na vida. As amizades ganhas nas horas de incerteza, o contacto próximo e diário com outros – civis e militares – as tarefas desempenhadas em equipa. Numa palavra: amadurecíamos. Claro que poderíamos questionar se, para amadurecermos, seria necessário expormo-nos assim e virmos para tão longe.

Mas afinal quem éramos? Cidadãos-patriotas? Soldados-heróis? Acomodados à espera que o tempo passasse e jogando na lotaria do “não há-de ser nada!” como então se dizia?

Talvez uma mistura de tudo isto. Hoje, se regressarmos ao passado, havemos de encontrar muitos momentos em que fomos tudo aquilo e muito mais a que a vida impiedosamente nos obrigava. Estávamos ali, sem podermos alterar drasticamente a nossa situação e, mesmo assim ficávamos. Entregues ao fluir do tempo, sabíamos que a sua contagem decrescente corria a nosso favor e, até lá, havíamos de nos aguentar. É certo que alguns dos nossos camaradas... Mas... connosco havia de ser diferente! Era a nossa convicção. E foi assim, felizmente.

Passámos a alegria breve do regresso, a inserção no mundo do trabalho e a constituição de família. Tal como os nossos antecessores, sofremos a incapacidade de transmitir, mesmo aos que nos são muito próximos, o que tínhamos passado. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse dos outros, perante a nossa mensagem e, por fim, a necessidade de, a bem da nossa saúde mental, esquecermos o sucedido. Isso levou-nos a evitar falar do que tínhamos passado. Era coisa “para esquecer”. Agora era necessário viver e desfrutar da luta diária da vida, no fundo a razão pela qual os Homens vivem.

A vida foi correndo e a curiosidade em sabermos o que seria feito deste camarada que nos ajudou nesta ou naquela situação, daquele a quem apoiámos num momento em que se foi abaixo ou daquele outro que se tornou notado num episódio cómico, que a todos fez rir. Primeiro a curiosidade, depois as saudades e, por fim uma vontade irresistível de recordar. Ficamos velhos. E os velhos têm necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo. Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?

Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.

Há quem diga que cada homem é ele próprio mais as suas circunstâncias. As nossas foram estas. Bem difíceis, temos que concordar. Sobrevivemos e demos a nossa contribuição, modesta como é sempre é a dos homens do povo feitos soldados. A História só muito excepcionalmente recordará os nossos nomes, numa pequena rua da nossa terra natal. Para que serviu o que fizemos? Não sabemos. Talvez para pouco. Se calhar não passou de um esforço inútil, ao qual fomos coagidos, sem qualquer espécie de fuga. Custa, mas teremos que o admitir, mais tarde ou mais cedo.

Estamos condenados ao esquecimento que o tempo sempre traz, mas, enquanto pudermos, havemos de lutar contra isso. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo. Toca-nos procurar passar aos vindouros uma mensagem. Qual é ela? Será de paz? Há quem diga que os ex-soldados são sempre os mais ardentes pacifistas. Pacifistas pela análise fria e pausada do que sucedeu, mas não medrosos. E, se o futuro perguntar, a nossa resposta será sempre sim ou não, mas, desta vez, convicta e justificada.

Creio que devemos sentir-nos orgulhosos. Passámos por uma prova que, esperemos, não se repetirá tão depressa. E quem sabe? A nossa própria experiência demonstra claramente a margem de incerteza que sempre marca a vida dos povos. Vencemos a prova. Mal ou bem, mas vencemo-la. Não temos hoje nada para provar a ninguém nem podemos aceitar que nos censurem por aquilo que fizemos.

Fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos, como se lembram. Faltava muitas vezes o essencial. Tive sob o meu comando um soldado que lhe chamava “a guerra a petróleo”, por semelhança com os fogareiros da nossa meninice que usavam aquele combustível. Os meios do inimigo, como se recordam, evoluíam a olhos vistos. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos. Perdemo-la, sim. E depois? Alguém esperava ganhá-la? Ninguém. Nem os que a aprovavam naquele tempo, nem os que hoje, por preconceito, saudosismo ou desonestidade intelectual, afirmam que a poderíamos e deveríamos ter ganho.

Nós perdemos porque fomos lá. E só quem ali viveu sabe o que é ganhar e perder.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

sábado, 11 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4671: Histórias de José Marques Ferreira (2): Domingos – A Mascote da minha CCAÇ 462


1. Mensagem de José Marques Ferreira, ex-Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 11 de Julho de 2009:


Camaradas,



Hoje, passados todos estes anos, quando quero escrever uma estória sobre o Domingos, faltam-me as palavras, os verbos e é difícil juntar as sílabas.


Ainda me estão a martelar no cérebro as palavras escritas pelo Engº Pedro Moço, funcionário de uma empresa do grupo Soares da Costa, que, recordo o que disse em tempos, esteve 18 meses na Guiné, fazendo parte da equipa que dirigiu a construção da ponte “Euro-Africana”, que para nós será sempre a ponte (onde foi jangada) de S. Vicente.


Dizia então o Pedro:

"Penso que qualquer cidadão europeu devia viver em África, pelo menos 6 meses, para poder dar valor ao que tem disponível no seu país, coisas que para qualquer europeu são banais, tais como, o direito à saúde, educação, o poder dispor de electricidade, água potável, etc., etc. Aqui nada existe, a não ser a tentativa de sobrevivência do dia-a-dia.

Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava. Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da Guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece."

Vamos à história.

O DOMINGOS – UMA CRIANÇA SOLDADO

O Domingos era uma criança, em 1964, de estatura normal para os seus cinco, seis anos (talvez nem tantos na altura), os olhitos pareciam estar em permanente melancolia (como os de muitos putos guineenses), mas já o seu porte e presença eram um tanto diferentes.

O Domingos, fazendo fé nas recordações um tanto esfumadas, porque o tempo não perdoa e não é eterna a sua permanência nas minhas memórias cerebrais, começou a aparecer com a mãe, que lavava a roupa de alguns camaradas nossos, o que, como sabemos, constituía mais alguma fonte de sobrevivência para a família.


Ingoré - Edifíco de Comando

Tantas vezes lá foi que começou a ter contacto mais directo com os militares que, pelo seu feitio e postura simpáticas, eram afáveis para aquela criança de tenra idade. Ficou lá connosco um dia, depois outro e outro...

Todos o acarinhavam e brincavam com ele, e o Domingos ia demonstrando alguma sociabilidade, retribuindo simpaticamente com as peripécias próprias das crianças, o trato que lhe ia sendo dispensado.


Até que, para não alongar mais esta “lengalenga”, o Domingos foi adoptado, oficialmente, como mascote da CCAÇ 462. Passou a ter uma farda verde igual à nossa, com excepção do camuflado e do vestuário de trabalho. Comia connosco, e durante muito tempo, chegou a dormir na nossa caserna, tal como todos nós. Os pais sabiam desta situação, o comandante da Companhia também. Já fazia parte da nossa "família".

Por isso, as palavras do Engº Pedro Moço e que peço, voltem agora atrás e, releiam o primeiro parágrafo.Muitos de nós, estejamos onde estivermos hoje, lembramo-nos com certeza que conhecemos e convivemos com muitos simpáticos e afáveis Domingos, por toda a Guiné, e sei que, como eu, ficarão doentes ao lerem esta infeliz realidade: «Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação e na educação…»

Ao fim de dezasseis meses, a minha companhia foi “embalada” e enviada para Bula, pelo que perdemos o rasto do Domingos. Continuamos sem o ver quando fomos ocupar, pela primeira vez, o território de Có, Ponate, Jolmete e Pelundo.

E perdemos-lhe completamente o rasto, quando destas localidades seguimos para Mansoa.

Nunca mais soube nada do Domingos, aquele puto simpático e meigo, de olhar melancólico, que viveu connosco durante vários e saudosos meses.

Um dia, a Guiné tal como a conhecemos então, acabou para a nossa companhia, pois regressamos a casa no paquete Niassa…



Do Domingos ficou-me as naturais saudades do seu sorriso e traquinices, e a única foto que tenho dele…


Na foto podemos ver o Domingos sentado no chão, entretido a colcocar um capacete na cabeça.

Fotos: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.


Um abraço,
José M. Ferreira
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Notas de M.R.:

(**) Vd. último poste da série em: