domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5703: O cruzeiro das nossas vidas (15): O dia do embarque (José Marques Ferreira)


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 22 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:


Camaradas,

Peço desculpa, mas hoje «engatei» a linha de produção, e aqui envio nova estória.

Esta estava prometida há tempos, pois já contei o regresso. Faltava contar alguma coisa sobre o embarque.
A foto pode ser complementada com uma legenda do género: «Maçarico para a Guiné, a bordo de um monte de sucata».

Aliás, é visível!

O DIA DO EMBARQUE


Já o disse aqui e repito-o sem entusiasmo…

Embarquei naquele local conhecido de todos, em Lisboa, no dia 14 de Julho de 1963.

Já pouco tenho gravado na memória desse dia. Não tinha ninguém a despedir-se de mim na Rocha do Conde de Óbidos, ou por ali perto.

Quase que não lembro como foi, talvez psicologicamente “anestesiado”, quase não dei pela minha entrada no barco. Dessa anestesia, ficou-me o desejo, lembro-o hoje, que a poderia ter evitado… não sei. Quase perdi a total percepção dessas coisas.

Há pelo menos uma que fiz e lembro bem, é que nunca apresentei um documento comprovativo das minhas habilitações literárias, ao tempo do ano de 1963, porque tinha receio de ir para a tropa muito tarde e de ir cair a sítios que, naquele tempo, seriam considerados de maior risco, como por exemplo uma das linhas da frente dos combates, em Angola.

Na Guiné, em 1963, as coisas não estariam tão más quanto isso, pois nessa terra vermelha de sangue, suor e lágrimas (Armor Pires Mota), a guerrilha estava em «preparação» e «organização». Não me enganei, embora já existissem zonas de constante actividade guerrilheira.

Voltemos ao assunto, embarque.

E lá entrei no barco, qual carga de gado vivo, que se chamava «Sofala».

Como era preciso cumprir as ordens de Salazar (porra, sempre este nome a vir à baila, quando falamos da nossa juventude toda ela passada sob o síndrome da guerra colonial), que dizia «rápido e em força». Nem que fosse preciso tratar as pessoas como meros animais, que entravam num cargueiro sem condições para transportar o que quer que fosse, quanto mais pessoas!!!

Ele eram porões e mais porões, num cargueiro enorme, “carregado” de milhares de homens uniformizados militarmente, qual quantidade enorme de carne para canhão, ali metidos, tendo ainda, por baixo desses porões, uma quantidade enorme de outros soldados com viaturas, armamento, máquinas e munições… muitas munições.

Quer isto dizer que aquele barco, o «Sofala», que nos levava, com pouca preparação, para um distante, desconhecido e estranho sítio, carregado até mais não poder.

E lá partimos. Iniciava-se, naquela altura, a construção da ponte, que nem o nome que lhe foi atribuído após ser terminada me atrevo a pronunciar (não é que o actual “baptismo” da mesma me seja acomodatício, mas gostaria que um crânio, mais iluminado, lhe tivesse atribuído outra “nomenclatura”).

E lá fomos. Penso que saímos de tarde, ou terá sido de manhã? Não, não estou a brincar, já não me lembro daquele que deveria ter sido o dia que me ficassem gravados, na memória, todos os momentos e acontecimentos.

Sei, é que no mesmo dia, ou no dia seguinte, todo aquele monte enorme de ferro em que eu ia deitado (uma enorme fonte de perigo sujeita a ir pelos ares e a ficar feito em frangalhos a qualquer momento), avariou. Estivemos então à deriva, em pleno alto mar sob balanços constantes, até ao meio da tarde.

Raro foi aquele que não «deitou a carga ao mar». Eu fui um deles.

Logo que a avaria foi consertada, continuamos a agoniante viagem até à foz do Geba.

Já se cheiravam às águas do Geba e das bolanhas, quando fomos sobrevoados por alguns aviões, que certamente vieram ao nosso encontro. Como estávamos perto da costa, asseguravam-se que a «valiosíssima» carga que o navio transportava chegava em boas condições, não fosse o diabo tecê-las.

Como muitos outros já haviam chegado um dia, também aquela abantesma, chegou a Bissau, tendo de ficar aproado no meio do Geba. E de imediato a «descarga» começou…

Fomos transportados para a Escola Primária “Teixeira Pinto”, próxima do depósito de água, no Pilão, e ali permanecemos uma semana. Já aqui contei este pormenor…

Depois, entregaram-nos a «ferramenta» nova (G3) e lá partimos rumo a Ingoré.

Era o momento ideal para terminar aqui esta estória, mas não o quero fazer sem evidenciar, mais uma vez, as miseráveis condições em fomos transportados naquele flutuante e famoso ferro velho, quase apodrecido… no qual cheguei a ir ver a casa das máquinas. Eram indescritíveis as condições de trabalho daquela gente.

Também tive a rara oportunidade de ver no mar, peixes voadores e o «mar chão» que nunca tinha experimentado! Que grandes e belos espectáculos!

O barco em viagem, rasgando as águas marítimas parecia deslizar, qual automóvel em tapete de alcatrão!

Um abraço aos tertulianos e colaboradores que muito prezo,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5248: O cruzeiro das nossas vidas (14):Queremos o Uíge (António Dias)

Guiné 63/74 - P5702: (Ex)citações (55): Falando de descolonização com António Rosinha (José Brás)

1. Com a devida autorização, estamos a dar conhecimento à Tertúlia de uma mensagem que o nosso camarada José Brás* enviou ao nosso tertuliano António Rosinha em 20 de Janeiro de 2010, versando ainda o tema descolonização:


Meu caro António Rosinha

Antes de mais, a minha sincera afirmação sobre a completa ausência de animosidade entre nós que nem nos conhecemos, mas que tendo nascido na mesma forja histórica, muitas coisas comuns teremos e tais coisas teremos de colocar como fonte de convergência e não as outras que parecem nos separar.

Fartos de divergências deveríamos estar todos nesta longa e inclinada plataforma onde nascemos e onde esperamos morrer, ainda que com certezas seguras quanto ao fim, mas sem qualquer sobre o modo e o lugar e o tempo exactos.
E que não tivéssemos nascido aqui, os dois ou um apenas e outro noutro lugar qualquer do planeta, calhando, aqui mesmo ao lado, em Castela, com quem, pensam alguns de lá e de cá, nunca acertámos verdadeiramente as contas da separação.

Na verdade, tenho para mim que o desejo de ser feliz como foste em Angola, é comum a toda a humanidade, ainda que, em cada lugar, cada povo escolha caminhos lógicos e emparelhados na realidade que lhes deixaram avós.
Entre nós, portanto, não há grandes motivos para divergências tão importantes que possam obstar ao abraço virtual aqui, mas possível em qualquer lugar em que possamos encontrar-nos.
Não acredito que... acredites tu a sério, que em algumas coisas que disseste (e disseste poucas), eu não concorde contigo.

Sobre a barbárie, por exemplo, que foi aquela bagunça que sugeres e que não se exerceu e prejudicou só a brancos e ao seu País de origem mas sobretudo a negros e ao futuro da sua terra.

Sobre o espantoso drama de mais de setecentos mil cidadãos radicados e organizados em famílias, em cidades, em estruturas económicas e culturais crescentes e que de um momento para o outro se viram sem nada. Sem nada mesmo, além da capacidade de respirar, muitos mais desejando que mesmo isso terminasse face ao caos e à falta de futuro e de esperança em que se viram num instante.

Sobre a facilidade com que aquela gente ficou de se matar e destruir; sobre os massacres que cada facção, cada partido, cada grupo étnico (todos eles) perpetuou contra outros grupos, sem piedade e, muitas vezes mais parecendo que apenas por raiva.

E esta minha opinião não é de agora, embora hoje possa estar mais organizada e fundamentada. De facto, foi assim que a discuti em locais onde ela se discutia (mesmo em Luanda) e por isso, também me causei os meus próprios prejuízos, vistos de aqui, hoje, seguramente bem menos lamentáveis que os teus.

Não volto de novo à questão da falta absoluta que fez àquela terra, quem dela sabia muito, na agricultura e nas pescas, na indústria que finalmente começava a tomar alento, nos serviços, na cultura nova que não suprimindo a tradicional, se impunha como necessidade de desenvolvimento, na organização administrativa.
Assisti eu a muitas promessas, a muitas experiências de outra gente que se instalou sob a asa da solidariedade mas que de solidariedade muito poucos tinham como motivo, e mesmo os que tinham, de nada sabiam sobre a terra e nisso esbanjaram meios e esperanças.
E isto são factos que são indiscutíveis como factos, podendo apenas discutir-se as causas que os impôs, a história que os justificou e as perspectivas de modelos alternativos que pudesse dar-lhe outras feições e consequências.

Não julgas tu, nessa afirmação que fazes de que "passaste apenas por Angola, para trazer retornados e pouco mais".

De facto também vi morrer gente branca e gente preta, sendo que os matadores eram todos pretos e, nessa altura, mataram um ou outro branco e muitos milhares de pretos. De facto conheci gente que morreu, gente que matou, gente que morreu por ter matado, sempre ou quase sempre, numa sanha feroz e inqualificável.

Retornados eram para mim gente, seres humanos que construíam Angola como podiam, e se não construíam melhor era porque os seus dirigentes continuavam a ter uma perspectiva colonial e velha, não permitissem o verdadeiro desenvolvimento que a terra poderia ter.
E ajudei a tirar alguns das mãos dos movimentos, algumas vezes em condições dramáticas e de grande risco.

Há uma coisa, portanto, em que discordamos. Dizes que pontos de vista não discutes e... eu penso que é isso mesmo que se pode discutir, mais que os próprios factos em si próprios. Como dizes e eu concordo, cada um de nós tem o direito à sua opinião. Mas ter direito a opinião não quer dizer, ter direito a que discorde alguém e que, discordando, dê replica, sobretudo se o fizer de modo civilizado, melhor ainda, também fundamentando razões.

Os factos, são factos em si próprios, os cadáveres nos passeios de Luanda, a vida boa que portugueses levavam naquela cidade estupenda, o tal feijão com seu cozinhado e panelas, a vida nocturna repleta de casinos improvisados na Ilha e em sítios que já nem sei explicar onde eram mas vi, onde se ganhavam e perdiam somas avultadas numa noite, obrigando noivas viagens que eu sei e tu também, os cabarés, provavelmente ilegais onde a prostituição atingia níveis nunca imaginados aqui.

Ninguém poderá dizer-me que nas noites quentes de Luanda, bebendo a minha cerveja nos terraços dos hotéis, charlando com colegas noite dentro, não ouvíamos os tiros nos bairros da cidade ou que tais tiros eram apenas brincadeirinhas de gente com os copos disparando para o ar.
Pode dizer-se que essa não era a Luanda que vivia e desejava a grande maioria dos seus habitantes, gente de trabalho e de progresso, com famílias e amigos, com convívio são, e na maioria dos casos, provavelmente até capazes de aceitar alguma outra forma de organização social que melhorasse a vida de todos e desse mais igualdade.

Em relação à tua dificuldade de distinguir entre Salazar, Amilcar Cabral, Lúcio Lara, Manuel de Argel, Savimbi, Agostinha Neto, nada posso dizer porque esses são os óculos que conseguiste no penoso processo que te obrigaram a seguir.

Contudo posso dizer-te pelo menos uma ou duas coisas que os distinguem. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca quis universidades em Angola e quando as teve de aceitar eram "Estudos Gerais" e os outros foram gente que teve de vir para Lisboa para estudar na universidade. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca admitiu negociação e os outros foram os que sempre a propuseram antes da luta armada.

Um outro exemplo que nunca vi aqui tratado como a mim me parece que deve ser, que é o da falta de dirigentes brancos locais, capazes de organizar-se para reivindicar de Salazar mais autonomia e outra organização política e administrativa que lhes atribuísse um papel mais activo no processo de desenvolvimento.

Com uma ou outra excepção que não faz a Primavera, sempre se limitaram a ir vivendo no estatuto que era determinado em Lisboa e, com isso, não formaram os seus técnicos, os seus dirigentes, os líderes que poderiam mais tarde defender a sua visão das coisas, alternativas e, quem sabe, melhor futuro para todos.
Sofreram as terríveis consequências da selvajaria desatada no Norte em 61, aceitaram entrada de capitais estrangeiros que iam dividindo o bolo entre si, e acabaram em fuga dramática de 75, perdendo tudo e recusando perder também a vida.

De resto, também acho que apesar das dificuldades que as condições que o 25 de Abril criou para o desfecho da chamada descolonização, muita gente podia com outra atitude, garantir menos drama e mais dignidade na saída e mesmo evitar algumas das consequências que acabaram por desabar.

Não acredito (e isso é a minha opinião que pode ser rebatida) que tivesse sido possível comandar o principal do processo porque esse era já um prato forte só acessível aos patrões de CIA's e de KGB's.

E hoje?

Sabemos que no decurso do regresso, e nos anos que se lhe seguiram, os Governos portugueses cometeram erros graves face às conveniências nacionais dos dois Países. Erros de tal modo graves que obstaram até há muito pouco tempo relações mais concretas e convenientes para as partes. Em nosso lugar (se é justo dizer assim) tem-se instalado uma "cambada" de falsos cooperantes de todos os lugares do mundo, a maior parte apenas no objectivo do domínio estratégico politico e comercial muito do agrado da globalização do mercado.

Como na canção do Xico Buarque "Ai esta terra ainda há-de tornar-se um império colonial", é Angola ou angolanos que compram em Portugal, investem e comandam aqui importantes sectores da economia portuguesa. Esta facto, pelo menos para os que vêm no capitalismo e no mercado o deus do mundo, não deveria causar calafrios, já que, pensando como pensam, sabem muito bem que a internacionalização da economia terá sempre de levar a outras invasões, ainda que com armas aparentemente menos castigadoras. Naturalmente que, aceitando isso, e se nos reclamamos não racistas, não iremos opor-nos agora a que o tal capital estrangeiro venha de mãos negras.

Por mim, verdadeiro bota de elástico, tenho que dizer que sim, que é assustador tudo isso, porque, erradamente, talvez, acho que quem domina a economia... domina o resto e o resto é que me parece o mais importante, sejam brancas ou negras as carteira que investem.

E pronto, aqui me declaro farto do tema que em postes vários já trouxe, apenas com diferenças nas formas e nas vias de abordagem mas dando sempre no mesmo.

Mudarei de tema, se for capaz.

Por mim, não mais, senão o abraço.
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5696: Controvérsias (61): Ser ou não ser (português), eis a questão (José Brás)

Vd. último poste da série de 17 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5665: (Ex) citações (50): Comentário ao texto de José Belo no Poste 5660 (José Brás)

Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Estamos longe da prosa vulcânica de “Tarrafo”.
A profissão de fé nacionalista é assumida neste livro, dou comigo a pensar se não foi ela que contribuiu para o manto de silêncio que caiu sobre o autor.

Um abraço do
Mário



Armor Pires Mota:
Guiné: Sol e Sangue


Beja Santos

No mesmo ano em que Armor Pires Mota recebe o prémio Camilo Pessanha pelo livro de poemas “Baga-Baga” (1968), a Editora Pax publica “Guiné: Sol e Sangue, contos e narrativas”. Onde “Tarrafo” é uma descrição pungente, quase em directo, uma brutal descoberta da guerra do mato e das múltiplas insídias que espreitam o contra-guerrilheiro, onde “Tarrafo” é o diário de uma guerra que se desenvolve em espiral e para qual um jovem alferes não pode ter a nítida percepção da força irradiante do projecto de independência que lhe subjaz, fazendo desse libelo uma reportagem de grande alcance histórico, “Guiné: Sol e Sangue” é uma profissão de fé, um testemunho ideológico, uma catilinária sobre aqueles que descrêem do valor da missão que se trava nas matas densas e nas lalas guineenses. Todas as profissões de fé acabam por retocar a realidade, são a “segunda vida” das recordações, o que se pretende transmitir é que há uma fé no duro combate, é indispensável convencer os indiferentes ou os cépticos sobre a justeza daquela guerra.

Daí o tom panfletário logo nos primeiros parágrafos: “O medo é meia derrota. A guerra não se ganha nas trincheiras. Só a coragem vence falsas bandeiras e perdidos ventos. Há uma Bandeira e uma Fé... Não é a floresta tentacular que me curva a alma. É este não saber a terra que piso, a água que bebo, o ar que respiro. É não saber a verdadeira cor do inimigo... Mordido na pele da alma pelo esbrasear frenético das manhãs sangrentas, espapaçadas de suor e capim, estou com os meus soldados onde há um negro a chamar-nos, uma criança a salvar”.

Este livro de contos e narrativas retoma o percurso de “Tarrafo”, são pequenas notas do feitiço africano, o batuque, o tornado, a emboscada, a acção psico junto das populações forçadas ao jogo duplo, os poemas, os ataques de abelhas, os golpes de mão, os comportamentos heróicos, a colocação das minas, por exemplo. Veja-se esta descrição do mercado, qualquer um de nós se pode rever nesta atmosfera:

“O mercado regurgita de gente. Uma autêntica babel: fulas de sabadora branca e turbante alto, de uma estatura invulgar, balantas, espadaúdos e enodoados à flor da pele e mulheres cor de café ou chocolate gingando-se na euritmia sensual das formas de estátuas gregas. Soldados que, num crioulo feliz, compram isto e aquilo para mandarem para a terra. Gilas da Gâmbia que apregoam nossas-senhoras-de-pau-preto, gazelas, de pau sangue, trabalho em osso e couro. E o ar rescendendo a banana, a papaia, a abacaxi, um suave aroma tropical. Ali há de tudo: colares de missanga e âmbar, potes de óleo de palma e aguardente de cana, balaio de arroz e mandioca, peixe seco, ervilhas de gindungo, panos azuis-brancos, terços longos de mandinca, guarda-de-corpo com versículos do Corão, um ror de coisas úteis e bugigangas. E nesta babel vou conhecendo a África irrequieta e misteriosa”.

O autor revisita os campos de batalha, descreve as viaturas destroçadas, o tempo de Natal e toda a sua carga nostálgica, saúda os seus soldados, menciona as práticas da guerrilha. Um exemplo:

“Os terroristas ameaçam, atravessam arames na estrada, armam escaramuças, montam minas e fornilhos, intimidam as aldeias, escrevem irrisórios cartões que penduram das árvores e em francês: “nos fusils tuent tous les blancs”, “nous voulouns la paix”. Cartões irrisórios que o soldado, rindo ao canto do lábio uma ironia e uma raiva indescritíveis, desfazem com a ponta da bota.”

Finda esta viagem à matéria que já utilizara em “Tarrafo”, o autor afoita-se a contos de diferente dimensão. E aqui deixa marca literária de realce, temos aqui imagens que podem emparceirar nas melhores antologias sobre a Guerra de África. Alguns exemplos:

“Uma chuva de balas espinoteou na carroçaria, no chão. Assobios e chicotadas de loucura sob um sol violento que agulhava como serpente o dorso dos homens. E, para não esmagar a criança contra o solo, deixou-se tombar de costas e, rastejando com a inocente sobre o peito contraído, pô-la a salvo atrás do morro de baga-baga, do lado da estrada avermelhada”.

“Arrimados à frescura das paredes, fronte esbagoada em suor, barbas compridas, luzidias, braços caídos ao longo do corpo, os soldados lembravam estranha visão quixotesca. Poeira e suor desfiguravam-nos. E os olhos, inflamados pelo calor e pelas insónias, pareciam querer estoirar dentro das órbitas.

Amoleciam trôpegos de cansaço. Mas já o alferes os chamava à realidade, arrancando-os àquele torpor doentio:

- Vamos às viaturas buscar todas as pás e picaretas. Temos de construir um parapeito em volta da casa com os bidões que se encontram naquele barranco, além”.

“Alapardámo-nos. Demos de chofre com as nossas sombras num pequeno terreiro onde fumegavam restos de brasedo.

Sentinelas rondavam. Apenas duas. Paravam, cochichavam, voltavam ao eterno movimento de vai-vem. Se nos descobrissem, estávamos tramados, ou talvez não, quem sabe. Estávamos postados nos abrigos que o inimigo abrira ao rés do mato. Bastava um tiro para eles se meterem nos buracos. Era apanhá-los à mão ali mesmo. Ai se ao menos fôssemos uns dez!

Longe, rebentou intensa fuzilaria. Seria em Benna Onça? De certo, era a resposta. Tinham força aqueles cães e os chefes arremessavam-nos para a frente como suicidas. Até blufos de tenra idade. Um bom blufo era aquele que fazia história, que matava branco no mato. E os blufos iludiam-se com glória inútil”.

Armor Pires Mota revela o seu talento a descrever perfis como o do soldado Panóias, pouco dado a bravuras, folião e homem de farroncas que numa noite de serviço no posto de sentinela matou um burro, o do Sílvio, especialista de minas e armadilhas e o heroísmo de Almada Zagalo, um verdadeiro entusiasta que a todos galvaniza nas horas mais adversas.

Repete-se que esta experiência literária é uma profissão de fé de alguém que queria mostrar ao mundo a magnitude dos combates na Guiné, há imagens poderosas, mas o todo é um pouco frustre, fica bem aquém desse prodígio que se chama “Tarrafo”.
Armor Pires Mota continuará na poesia e na prosa a falar da nossa Guiné. Como veremos em próximas recensões.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5700: Tabanca Grande (200): As razões por que eu gostaria de, mas não posso nem devo, aceitar o vosso convite (Carlos Matos Gomes)




Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2000) > Parte final da comunicação de Carlos Matos Gomes, Cor Cav Ref, antigo combatente português, escritor. Título da comunicação: "Guiné 1973: Quando os portugueses perceberam que chegara o fim"...

Vídeo: 2' 57''. © Luis Graça (2008). Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Mensagem de 17 do corrente, do Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes, conhecido estudioso e analista da guerra colonial, investigador e também romancista e argumentista (autor de, entre outras obras, sob o pseudónimo, do romance "Nó Górdio", 1983).

Meu caro Luís, a propósito de uma resposta minha ao post do Jorge Félix relativo ao vídeo da viagem pelo Rio Cacheu Acima (*), fizeste-me uma proposta de integrar esta Tabanca, que me fez reflectir com serenidade antes de ter responder.

A primeira reacção foi: é claro que sim!... Preencho todos os requisitos, tenho ali (na Tabanca) tantos amigos, conhecidos. O local é bem frequentado, isto é, a frequência é de boa gente, são boas as intenções e a finalidade dos que frequentam a Tabanca. Une-me aos que aqui se reúnem recordações de lugares e de tempos e ainda o afecto pela terra da Guiné e das suas gentes. Nada a obstar, antes pelo contrário, tudo me levaria a sentir-me, além de honrado, disponível para integrar este grupo como membro de pleno direito.

Mas… vamos aos mas…

Sou leitor e frequentador assíduo e muito interessado da Tabanca. Tenho um juízo sobre esta Obra. Penso, sem qualquer lisonja, para a qual tenho espinha demasiado rígida e a boca demasiado dura, que este blogue é algo de extraordinário. Um daqueles casos que nos aquecem a esperança e nos incham a alma.

É extraordinário a vários títulos: pela ideia de reunir antigos combatentes num espaço democrático (o que quer dizer de livre expressão de cada um e de obrigatório respeito por todos e cada um dos outros), onde relatassem as suas experiências de há 30/40 anos, revivessem a sua grande aventura dos 20 anos, restabelecessem contactos, amizades e camaradagens, recordassem através da escrita e da imagem os lugares, os acontecimentos e as pessoas com quem partilharam os seus tempos da guerra, que servisse até de veículo de ajuda.

É extraordinário porque tem mantido o diálogo entre pessoas com diferentes visões da guerra e das situações num elevado nível de tolerância, mesmo quando o calor provoca reacções mais ásperas.

É extraordinário porque o colectivo do blogue conseguiu criar um "espírito de corpo" entre os tabanqueiros, que se revêem nas histórias, nos convívios que se vão multiplicando, nas acções que se desenvolvem, seja de solidariedade e ajuda ao povo da Guiné, seja a camaradas em dificuldades, seja ainda a familiares que procuram reconstituir as histórias de parentes seus na guerra.

O bloque e a Tabanca são um espaço de pureza e generosidade.

A pureza do blogue e dos seus tabanqueiros tem a ver com aquilo que é a sua matriz, a sua característica fundadora, o seu ADN: o blogue serve para relatar, contar, descrever, para transmitir emoções, para despejar pesos acumulados.

O blogue é a camaradagem, o que desaconselha grandes reflexões, análises e explicações. Deve continuar assim. É a sua força.

Ora eu, pelos rumos que a minha vida tomou, se ainda mantenho a minha generosidade, perdi a pureza de reviver a guerra colonial. Isto é, eu bebo do blogue, leio o que os homens da minha idade e da minha geração que passaram pelos locais por onde eu passei escrevem sobre ela, tento perceber como, em termos colectivos, a minha geração viveu este período da nossa História. Cada pequena descrição, ou relato, ou fotografia, ou filme, que cada um coloca é para mim um objecto de análise. Não tenho, pois, a pureza indispensável para me intrometer neste ambiente, não me sentiria confortável a fazer de mais um, quando afinal eu era e sou o que está a observar.

Um dos muitos factores de interesse do blogue é ser, além de um extraordinário local de convívio para os antigos combatentes da Guiné, uma futura fonte de conhecimento para a História da guerra colonial. E este conhecimento assenta em informações, por vezes únicas, sobre determinados acontecimentos e só isso já seria muito e bom serviço, mas o mais importante é que este blogue vai permitir aos historiadores e aos interessados do futuro pela História de Portugal, pela história colonial, pela história das forças armadas portuguesas e pela História da Guiné uma visão muito real sobre os actores que estiveram no terreno.

Raramente, na história em geral e na história militar em particular é possível aceder ao sentimento, ao pensamento dos homens comuns que a fizeram. Este blogue dota os futuros estudiosos desse precioso elemento que é o de lhes fornecer o relato em primeira mão do soldado, do sargento, do subalterno, do capitão que estavam no mato, a bordo de navios, nos aviões.

Eu, pelo facto de ter enveredado muito cedo pelo trabalho de análise da guerra colonial, sou alguém que polui essa fonte. Se aceitasse pertencer à Tabanca e aceder ao teu convite, estava a seguir o meu instinto e a fazer o que eu gostaria, mas não estava a prestar um bom serviço à Tabanca (tenderia a apresentar análises e a fazer interpretações que gerariam tensões e desviariam a atenção dos puros tabanqueiros), nem estava a prestar um bom serviço ao futuro estudo da guerra colonial, pois introduziria factores de distorção na análise. Estava a fazer o que gostava, mas não o que devo,

É por tudo isto que aqui tentei resumir e sem ter a certeza de ter sido claro que, meu caro Luís, te peço para me deixares neste lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca como um estrangeiro adoptado, respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos. Sendo agradecido pelo muito que o vosso labor me proporciona, pelo que aprendo e pelas amizades que criei.

Um grande abraço

Carlos Matos Gomes.

NB: Desculpa a extensão da resposta, mas não consegui resumir e devia-te, e a todos os membros da Tabanca, uma explicação séria, sem falsas humildades, mas principalmente sem deixar qualquer mal-entendido sobre a recusa a partilhar um espaço como este que, reafirmo, honra todos os que a ele pertencem e me honraria a mim também, se não fossem as razões que tentei expressar.

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

2. Comentário do Carlos Matos Gomes, com data de 21 do corrente, a uma mensagem minha em que lhe dava conta de um mesquinho e reles comentário de alguém a um vídeo com o excerto da sua comunicação ao Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), disponível em You Tube > Nhabijao, em conta associada ao nosso blogue.

Olá, Luís, um abraço. Obrigado pelo envio do comentário às minhas declarações no colóquio. Nada a acrescentar, porque não merece resposta.


Estas afirmações lembram-me sempre uma pequena história passada com o realizador americano John Ford. Quando lhe perguntaram há quanto tempo estava em Hollyhood ele respondeu: não me lembro, só sei que quando cá cheguei, a Doris Day (uma atriz especialista em papéis de ingénua e pura) ainda não era virgem. Isto para dizer que quando andei pela Guiné ainda estes tipos não eram heróis...

Um abraço, Carlos Matos Gomes

3. Comentário de L.G.:

Carlos:

Em meu nome e dos demais editores, o Carlos, o Eduardo e o Virgínio, bem como de todos os demais amigos e camaradas da Guiné que se reconhecem neste blogue, agradeço as palavras que dizes a nosso respeito e que são um estímulo, público, para continuar...

Às vezes, as nossas forças também fraquejam e a gente tem dúvidas, legítimas, sobre o caminho a seguir... Tu bem sabes, da longa e dura experiência dos três TO por onde passaste, a começar pela Guiné, como as picadas pareciam não ter fim... As tuas palavras são um doce bálsamo para as dores do caminho e um bom tónico para prosseguir, apesar de alguns conflitos, incompreensões e escaramuças que, inevitavelmente - e por que não, saudavelmente - surgem neste percurso comum...

E queremos prosseguir, não exactamente por sentido de "missão" (não somos heróis nem iluminados, somos apenas 'common people'), mas pela simples razão de termos criado, quase sem o querer, uma comunidade de desvairadas gentes que têm, como menor denominador comum, uma experiência de guerra e o conhecimento, vivido, de uma terra...

A guerra colonial e a Guiné-Bissau (ou o discurso sobre) não são monopólio de ninguém, nem sequer mesmo dos guineenses... Este período da história comum de portugueses e guineenses está longe de estar encerrado. Vamos continuar a esforçarmo-nos por manter este espaço plural e aberto, e cultivar nosso espírito de partilha, de tolerância e de discrição.

Dito isto, entendo inteiramente as razões por que gostarias de, mas não podes em deves, aceitar o meu/nosso convite para integrar a Tabanca Grande. És uma figura pública, um autor com obra feita sobre a história e a ficção da guerra colonial, não queres com a tua presença inquinar ou enviesar as fontes subterrâneas que alimentam este blogue... É de um grande honestidade intelectual: tu não queres ser o eucalipto que seca tudo em seu redor, os poilões, os bissilões, as cabaceiras, o mangal... da nossa Tabanca Grande.

Em contrapartida, deixa-me aceitar a tua proposta de seres uma espécie de marginal-secante, alguém que está fora e está dentro, que intersecta dois sistemas... Não propriamente esse "estrangeiro adoptado" de que falas, mas sim alguém que ocupa esse "lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca (...), respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos"...

Carlos, aparece sempre que te der na real gana, entra e sai: não precisas de bater à porta...

Como bem sabes, nesta Tabanca Grande não há moranças com portas nem janelas, não há bunkers nem abrigos, não há portas de armas nem cavalos de frisa, não há cercas de arame farpado, nem muito menos campos de minas e armadilhas... No dia em que nos impuserem tal, serei eu o primeiro a escolher a picada do exílio...
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5632: Comentando o vídeo do Jorge Félix / Pierre Fargeas, sobre a viagem em LDG entre Bissau e Binta, no Rio Cacheu (Carlos Matos Gomes)

(...) 2. Comentário de L.G.: Dei conhecimento prévio deste mail ao Jorge ("Para teu conhecimento em primeira mão e incentivo para o próximo vídeo")... Quanto ao Carlos, disse-lhe o seguinte:


Carlos: Obrigado pela aplicação no TPC... LDG e não LGD: a culpa é sempre das pressas e da falta de controlo de qualidade... final.


Tudo de bom para ti e para nós em 2010. Já é altura de entrares para a Tabanca Grande, que não tem porta nem janelas...Luís

Guiné 63/74 - P5699: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (2): Deslocação de Ingoré para Quebo


1. O nosso Camarada Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto
Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 22 de Janeiro de 2010:

Amigos e Camaradas,

Continuando a ir às minhas anotações e rebuscando pela memória, lá vão mais alguns apontamentos de “estórias”, com várias referências, que não caíram no esquecimento.

DESLOCAÇÃO DE INGORÉ PARA ALDEIA FORMOSA (QUEBO)

Das minhas anotações e memórias da Guiné, “estórias” que vivi, presenciei e tive conhecimento, no período de 18/06/68 a 23/07/68:

A C.Caç. 2381, estava de saída de Ingoré e com partida do Cais de São Vicente, na Lancha LDG 101 ”Alfange”, fazia escala com permanência temporária de espera em Buba - Região de Quinara -, com o fim de marchar para Aldeia Formosa (Quebo) - Região de Tombali -, e o baptismo de fogo.

A deslocação da Lancha LDG 101 “Alfange”, do Norte para o Sul da Guiné: Na Região do Cacheu – Ingoré, em 18/06/68, depois de almoçados dirigimo-nos para o cais de São Vicente, localizado na margem direita do rio Cacheu (foto 1), com o fim de embarcarmos na LDG 101 “Alfange”.

Conforme a Imprensa e Imagens Audiovisuais, actualmente neste local as margens são servidas por uma grande ponte, tecnicamente chamada como obra de arte, que veio beneficiar aquela região no seu desenvolvimento e nas suas acessibilidades.

Foto 1 – Guiné - Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > Rio Cacheu > Cais de São Vicente. Fonte: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, I Série - Poste DXCVI - (sendo solicitado o uso com a devida vénia ao camarada Francisco Allen).

Assim, fora dado o inicio à navegação pelo rio abaixo e, conquanto isso, foram dadas instruções pelo Comandante da LDG 101, para que nos acomodássemos no convés e ninguém se movimentasse na amurada. No entanto entre estas duas posições haviam as interligações junto à torre, servidas por lanços de rampas/escadas, que me serviram para ir assentado e mirando a paisagem marginal da densa e badalada Mata do Canchungo. Dizia-se de aí surgir o perigo de ataque de surpresa pelo IN (foto 2).

Ao avistarmos a vila de Cacheu, ficamos menos tensos e a podermos circular pela amurada de forma moderada. A foz do rio era já ali e o mar recebeu-nos com a natural calmaria do Golfe da Guiné.

Foto 2 – Guiné – Bissau > Região do Cacheu > Rio Cacheu > LDG 101 “Alfange”, em manobra habitual na chegada e regresso de unidades militares. Fonte: Arquivo e Museu da Marinha - sitio Reservanaval.Blogspot.com (sendo solicitado e com a cortesia do camarada Manuel Lema Santos - MLS).

O rio Cacheu é aquele que na Guiné se situa mais ao Norte, por isso a LDG 101 rumou a Sul e navegando com bombordo pela esquerda, depois passava entre a parte insular, que lhe fica adjacente, o Arquipélago dos Bijagós.

Quando a noite ia alta, foi feita uma paragem e amarração, no Canal e foz do Rio Grande de Buba. Disseram-nos que era com a finalidade de aguardar o nascer do Sol e, também, de conjugar com a enchente de maré, de forma a que, no seu todo, o rio fosse navegável.

Com a noite, o ambiente tornou-se pesado e de silêncio, o IN podia detectar-nos, mas não vislumbrávamos algo de suspeito. Depois do nascer da aurora foi levantada a âncora e foi reiniciada a navegação, dando continuação à nossa rota para Buba.

A viagem foi feita em velocidade de cruzeiro. Quando se fez dia foi-nos proporcionado observar a planura marginal e costeira, com as entranças dos rios e os recortes rendilhados dos palmares, dos tarrafos, dos mangais e outros, em que a paisagem era única e deslumbrante.

Aqui e além, viam-se grupos de macacos, gazelas, porcos do mato, bandos de garças, de rolas, de periquitos, de galinhas e de pardais da guiné, entre outras espécies.

A Lancha, seria facilmente detectável por sentinelas IN, pela rota e pelo som dos motores, no entanto as “hostes” aparentavam estar calmas e tudo foi decorrendo sem qualquer arrepio ou sobressalto. De quando em quando, havia sempre alguém para descomprimir, dizendo umas larachas e a dar um ar da sua graça.

À surdina dizia-se que, o COMCHEF, António de Spínola, aquando da visita que efectuara ao Quartel de Ingoré, nesse passado mês de Maio e a protesto de algo sem relevância, aqui entre nós que ninguém nos "ouve”, perguntara qual era o rancho para o almoço e não obteve a resposta de imediato, decidira verbalmente castigar a Companhia e despachar-nos “encaixotados” para o Sul.

A região para onde íamos, era uma incógnita para nós. Não tínhamos a noção dos perigos e das dificuldades que se nos iriam deparar.

Buba era local de passagem, com permanência temporária de espera e baptismo de fogo. Chegados a Buba, em 19/06/68, eram horas de almoço, fora feita a amarração ao cais e concluída a viagem.

Conjugando com a tradicional recepção aos periquitos, houve carnaval por esta banda, com estandartes, buzinas, cornetas roufenhas, bater de latas, tambores, guitarras rústicas e não sei que mais.

Depois recebemos ordens para acantonar em caserna por equipar (foto 3) e, permissão para ir a banhos que eram muito necessários naquela altura. De seguida foi a refeição que constava de bianda com ciclistas, conserva de peixe, pão e vinho, após o que foram dados diversos conselhos sobre o teatro de guerra.

A seguir, com alguns camaradas, fui dar uma volta pelo Quartel e pela Tabanca, porque pretendia tanto quanto possível localizar as trincheiras/valas e os abrigos, e bem como a forma de acesso aos mesmos.

Recordo que a grande maioria dos Praças da Companhia, desde que saíram do RI 2 em Abrantes, ainda não tinham obtido um só dia cama digno desse nome. No NTT Niassa, as instalações eram péssimas e desumanas (sem mais comentários).

Em Ingoré os "colchões" eram o chão de cimento, e, em Buba, para não desvirtuar “idem e... meias raspas”.

Foto 3 – Guiné-Bissau> Região de Quinara> Buba> Aquartelamento. Eu, em ar de passeio para a fotografia, tendo por fundo uma caserna por concluir.

De Aldeia Formosa (Quebo), era aguardada, para dia propício, a vinda de uma coluna – auto, a qual viria escoltada por uma companhia da "velhice" (Os lenços azuis) e outros grupos de combate, todos já muito experientes. De volta juntávamo-nos a eles e, isso, dava-nos relativo apaziguamento interno.

Nas conversas de “caserna” com outros camaradas, que ali tinham chegado antes de nós, diziam-nos que Aldeia Formosa era mais protegida em função de Buba, porque lá residia o Chefe Religioso Cherno Rachid, a autoridade máxima do Islão na Guiné, que o IN muito respeitava.

Só que as colunas-auto eram complicadas, devido ao mau estado das estradas, conjugado com as emboscadas e as minas.

Enquanto esperávamos, neste impasse de acalmia aparente, fui passando o tempo a visitar a oficina auto, a jogar às cartas, a nadar no rio com a água a 28º e o ar com muita humidade e temperatura alta.

Como algarvio estava a fazer turismo disfarçado, mas não havia Sol que sempre durasse e esperava, a qualquer momento pela "pancadaria" (foto 4).

Foto 4 – Guiné-Bissau> Região de Quinara> Buba> Rio Grande de Buba. Eu, na Ponte Cais, a banhos na praia de Buba, como muitos outros Camaradas e ao fundo o Aquartelamento.

Não esquecer que a 9 de Julho/68, seria o meu aniversário das 22 Primaveras, o qual viria a acontecer como sendo o pior da minha existência. Tinha que escrever a tempo para os meus pais e para a minha namorada, com a qual hoje sou casado, e para também desejar receber correspondência (foto 5).

Foto 5 – Guiné – Bissau> Região de Quinara> Buba. Eu, aqui a escrever uma carta, com bonitas notícias, e dando resposta a outras.

Os militares da minha Companhia ainda "saltavam" como periquitos e, enquanto isso, os operacionais iam-se adaptando e conhecendo a zona. Estávamos num teatro de guerra, mas não tínhamos tido ainda qualquer intervenção directa e nem sabíamos como iríamos reagir quando tal acontecesse.

Os mecânicos autos, ainda não "alinhavam" nas movimentações, porque estavam de passagem, não tinham viaturas e por isso não havia escala de serviços (foto 6).

Foto 6 - Guiné – Bissau> Região de Quinara> Algures no Sector de Buba/Empada. Os Camaradas da minha companhia C.Caç 2381 “Os Maiorais”: com camisola branca está o Fur Mil Joaquim Tareco, o Condutor Auto é o Soldado Raul Braz e de pé, à direita, o 1º Cabo Enf Jorge Catarino.

Chegado o dia 22/07/68, inesquecível para todo o sempre dos militares da C.Caç.2381, com vários acontecimentos, entre eles a chegada do previsto apoio logístico e a recepção da coluna–auto, vinda de Aldeia Formosa (Quebo) e, coisa que não pensávamos, aconteceu o dia de baptismo de fogo da nossa Unidade, que Buba veio a apadrinhar.

Eram cerca das 5 horas da manhã, todo o pessoal estava já acordado, e foram dadas ordens para que os pré-determinados grupos de combate da C.Caç.2381, vestissem o equipamento camuflado e se municiassem bem, para marcharem ao encontro da coluna – auto que procedia de Aldeia Formosa (Quebo).

Por parte da minha companhia, por estar no início da comissão, era natural a apreensão tomando como referência o passado recente, em Contabane, com a C.Caç. 2382. Conjuntamente connosco iam outros grupos de combate mais experientes e lá partimos. Os que ficaram desejaram-nos boa sorte.

Em Buba, contávamos com qualquer "escapadela" informativa dos operadores dos rádios e se bem me lembro, quem se prestava para esse fim era o 1º Cabo de Trms Pedra Rafael (que fora jogador de futebol do Tramagal) (foto 7).

No entretanto, foram ouvidas duas fortes explosões que provavelmente seriam de minas e ficamos apreensivos. Iam-nos dando dicas, que as tropas que partiram de Buba estavam bem e relativamente à marcha da coluna–auto, esta vinha progredindo lentamente, pois já tinham sido detectadas e levantadas algumas minas, e, dessas, haviam sido destruídas duas.

Foto 7 – Região de Quinara> Buba> Aquartelamento. Almoço num dos piores refeitórios (se isso podemos chamar ao local, sem mais comentários). À direita, ao fundo, o 1º Cabo Trms Pedra Rafael e, antes dele, estou eu. Em primeiro plano, do lado esquerdo, o 1º Cabo Pinheiro (que infelizmente já deixou de nos acompanhar), e, à direita, o Soldado José da Silva.

Ao por do sol, chegou a coluna auto. As nossas tropas não tiveram contacto directo com o IN e os grupos, que intervieram nesta operação, ultrapassaram todas as ocorrências apresentando-se exaustos, enlameados e "mascarados" de pó e suor.

Muitos camaradas que tinham ficado, dirigiram-se ao encontro dos seus amigos mais próximos a dar-lhes o apoio possível e curiosos em saber como decorrera a missão, bem como para verem se tinha chegado alguém conhecido.

Pela minha parte encontrei um amigo, o Carlos Chapa (que fora jogador de futebol do Portimonense) e era condutor de uma viatura Fox (foto 8).

Foto 8 - Guiné – Bissau> Região de Tombali> Aldeia Formosa (Quebo)> Quartel. No refeitório, Natal de 1968. Eu estou de costas, ao centro e ladeado por dois camaradas da minha companhia. De frente, à direita, está o Carlos Chapa e os restantes elementos são também do seu pelotão - Fox 2022.

Após a chegada da coluna ao aquartelamento houve descompressão, com o natural expandir de satisfação, ajuntamentos nos balneários, no refeitório e nas camaratas, em que havia sempre lugar para mais um se acomodar.

O PAIGC tinha as suas fontes de informações e soube que uma força de mais de 200 militares saíra de Buba ao encontro da coluna. Não havia, por isso, contingente suficiente para protecção do quartel e em simultâneo para realizar outras operações.

Aproveitando esta vantagem, o inimigo, procurou atacar de surpresa a partir de duas zonas: as margens do rio e áreas opostas ao Aquartelamento, onde instalou as suas baterias de fogo. Planeou emboscadas nas calmas e para a sua própria protecção na fuga, de forma a não ser "incomodado", utilizou as zonas protegidas pelo rio, pelo tarrafo e pelas bolanhas. Criando, assim, em caso de perseguição, uma situação a que chamávamos "do gato e do rato".

Pela noite, eis que chega o momento do nosso baptismo de fogo e "embrulhamos" mesmo, ouviram-se diversas explosões e rajadas de tiros. Ouviam-se as vozes de ordem: “Aí estão eles, aí estão eles, para a vala.”

Procuramos a mais rápida protecção nas trincheiras/valas e abrigos, enquanto outros foram reforçar os postos de defesa (abrigos do obus, das metralhadoras e dos morteiros).

No Quartel e nas suas imediações, caíram algumas granadas inimigas (canhão s/r, morteiro 82 mm e rockets RPG 7). O ataque foi iniciado do lado da bifurcação do rio, as granadas passavam por cima de nós e a baixa altitude, ouvindo-se as suas características deslocações no ar. Algumas delas caíram na Tabanca e, outras, explodiram após a mesma.

Fomos iluminados por verylites lançados pelos turras e ouviram-se as célebres PPSH - Pistolas-metralhadoras (conhecidas na gíria pelas "costureirinhas"), despejando sobre nós balas tracejantes, cujos estampidos nos punham nervosos.

Da nossa reacção em contra-ataque, disseram os militares mais antigos, já identificados com a forma do ataque e do tipo de detonações, que nós estávamos a responder ao IN e bem, tendo-se verificado que o seu fogo amainou. Pensei: "Já estão a levar nos cornos!" - pois deixaram de disparar e lançar os verylites, que iluminavam tudo "furando" a noite escura.

Os camaradas mais novos que ficaram surpresos pela súbita iluminação e logo perguntaram se havia algum incêndio, ao que, logicamente, foi respondido que não.

Na retirada, os turras lançaram mais alguns verylites, para tentarem despistar os nossos soldados, através do encandeamento, de forma a que não houvesse a noção mais exacta dos locais de onde lançaram o ataque.

Contudo, os camaradas atiradores de metralhadoras pesadas e artilheiros, indiferentes à luz artificial oferecida pelo IN, continuaram a enviar “bujardas e ameixas”, sem restrições, batendo as possíveis zonas de fuga do IN (foto 9).

Foto 9 – Guiné – Bissau> Região de Quinara> Buba> Quartel. Eu sobre o "gargalo" do poço do abrigo do morteiro de 81 mm. Na zona posterior podemos ver a construção de valas e do poço para abrigo do obus 10,7 cm, com o obus ainda ao lado. Ao fundo vêm-se as margens do Rio Buba e das zonas do ataque IN.

Relativamente ao local onde me fui proteger (vala/trincheira), não tive sequer tempo de tomar noção de onde era efectuado o ataque IN.

Todos se atiraram para a vala, uns por cima dos outros, porque estando escuro saltavam sobre os que já lá estavam e havia o típico vocabulário vernáculo de ocasião (ai... f... c... desculpa lá pá... está bem não faz mal...).

Posteriormente, no decorrer do dito “arraial”, apercebi-me que não estava no local mais adequado, porque a vala se situava no enfiamento do sentido de passagem de granadas da artilharia IN. Havia uma edificação próxima, de permeio, que em parte nos dava também alguma protecção.

Para agravar o desconforto, durante o ataque, abateu-se sobre nós uma forte bátega de água “a cântaros”, mas logo os mais "velhinhos" nos disseram que era normal e que sempre acontecia o mesmo, quando haviam ataques com tempo nublado. O resultado foi que todos ficamos enlameados e encharcados, no meio de uma grande chafurdice, que pouco nos importava, pois o que nos interessava, acima de tudo e como é óbvio, era estarmos vivos e ilesos.

Quanto à reportagem deste nosso baptismo de fogo, no nosso jornal da caserna, o nosso repórter de ocasião o Mário Caixeiro, cuja alcunha era “Diário de Notícias”, escreveu que caíram granadas no rio e no quartel, mas entre a malta ninguém ficou ferido e que na Tabanca arderam três palhotas devido às granadas incendiárias.

Por curiosidade, de manhã, fui observar os estragos e confirmei esta afirmações. Quando clareou o dia, as nossas tropas efectuaram batidas às posições de onde o IN atacara, tendo-se confirmado que deixaram no terreno material diverso e detectado extensos rastos de sangue de prováveis baixas humanas.

2 - PROCURO INFORMAÇÕES

Foto 10 – Guiné - Bissau > No mato em local secreto> Rubrica de perdidos e achados.

Aproveito esta oportunidade, para solicitar qualquer informação que me possa ser prestada sobre o paradeiro do ex-militar da foto.

Gostava de conhecer a sua identificação, disponibilizando as seguintes referências:
  • Andou pelo Norte e Sul da Guiné-Bissau;
  • Na sua especialidade tinha a intuição na arte de dar Mesinho e LMs, tratando sempre e com primor as “bajudas manga di giras;”
  • Foi um artista em rebentar canos de G3, por isso no fim da comissão e à última hora, foi rebuscado para “Comando”;
  • Saiu e voltou para a Metrópole, tendo viajado no Paquete Turístico NTT Niassa, em Classe de Luxe.
Para qualquer contacto, o meu e-mail pesssoal é: estorninho75@hotmail.com>

Por hoje fico por aqui, dando um corte já no repentino "acumular" cerebral de estórias que me estão a afluir em catadupa, do tipo cada cavadela “agúidas” (formigas de asas), isto é, quanto mais escrevo, mais a memória rejuvenesce, pelo que tive de optar em subdividir este bloco e, por hoje, o chão guinéu ficou bem lembrado.

Para a próxima haverá mais.

Com cordiais saudações, para os camaradas da tertúlia da Tabanca Grande, deste amigo e camarada,
Arménio Estorninho
1º Cabo Mec Auto Rodas


Fotos: © Arménio Estorninho (2009). Direitos reservados.
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em: