
1. Terceiro dos Episódios da Guerra na Guiné, trabalho do nosso camarada e Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), enviado em mensagem do dia 15 de Março de 2011:
EPISÓDIOS DA GUERRA NA GUINÉ 1973/1974 (3)
MINAS ENTRE JUMBEMBÉM E LAMEL
Por volta do dia 20 de Maio de 1974, um ano após os acontecimentos de Guidage, um mês depois do 25 de Abril, o PAIGC, aproveitando a indefinição e a fragilidade políticas de Portugal, intensificou a sua acção na Guiné, a que o quartel de Jumbembém não foi excepção.
O limite do subsector era numa linha de água designada por rio Lamel, situada a cerca de 3Km para o lado de Farim, cuja ponte, de pedra e cimento, estava frequentemente sabotada por parte do PAIGC.
Ponte de Lamel. Foto de Carlos Silva revelada a partir de um slide do ex-Alf Rebelo da CCaç 2548. Com a devida vénia a ambos.
A passagem das viaturas muitas vezes só era possível sobre troncos de árvore que se colocavam sobre a referida ponte, para suprir a sua destruição parcial.
Tratava-se de uma zona perigosa, porque era ali nas proximidades da ponte que os guerrilheiros do PAIGC passavam do Senegal para uma das suas “zonas libertadas”, Bricama, e vice-versa.
Num desses dias de Maio, durante a noite, foram ouvidas em Jumbebém algumas explosões para o lado de Lamel, presumindo-se que se trataria de mais uma sabotagem à ponte, pelo que foram feitos uns disparos de obus naquela direção, a que se chamava o batimento da zona.
No dia seguinte foi recebida informação, através dos pilotos de dois helicópteros que deslocaram a Jumbembém, que a ponte estava destruída e a picada estava obstruída por abatimento de árvores.
Já sabíamos o “barril de pólvora” que nos esperava aquando da realização da próxima coluna.
Talvez logo no dia seguinte, não me recordo bem, foi organizada a coluna a Farim, com a prévia picagem da picada até Lamel.
Nesse dia a picagem esteve a cargo do 3.º Pelotão, a que eu pertencia, reforçado pelo 4.º creio, e entre os quatro homens destinados a picar, eu, mais uma vez, estava incluído.
À saída do quartel, um dos quatro picadores, sabendo o que nos esperava, fez tudo para ir a picar em último.
Coloquei-me então eu à frente, do lado direito, outro atrás, do lado esquerdo, outro mais atrás, do lado direito e o tal que fez questão de ir em último mais atrás, do lado esquerdo.
Como “picas” usávamos, nesta altura, umas varas com cerca de 4 ou 5 metros de comprimento, as chamadas “canas da índia”, que nos permitia estar o mais longe possível de eventuais explosões de minas ao serem tocadas.
Sensivelmente a meio do percurso, próximo do chamado “Alto de Lamel”, apercebo-me da existência de rastos de bota diferentes das que nós usávamos, ao longo da picada, junto ao capim, que segui atentamente.
A dada altura, cerca de 20 metros depois, aqueles rastos deixaram de se ver, desfeitos aparentemente por um arbusto.
Ali parei e olhei mais em pormenor a picada e vi um quase imperceptível rebaixamento, portanto na rodeira do lado direito, muito alisado.
Passei a palavra para trás para o Alferes Macedo, Comandante do 4.º Pelotão, especialista em minas e armadilhas, se deslocar até mim.
Depois de lhe ter relatado a situação, mandou-me recuar e colocou um pequeno petardo junto ao tal rebaixamento que, com a sua detonação, originou o rebentamento duma potente mina anti-carro, abrindo uma enorme cratera na picada.
Reiniciámos novamente e progressão e, a cerca de 20 metros depois, ouvi uma pequena explosão atrás de mim, o que me levou a baixar imediatamente, pensando tratar-se de alguma emboscada.
Apercebi-me então que foi uma outra mina que explodiu na rodeira do lado esquerdo, acionada pelo tal militar que fez tudo para ser o último da picagem.
Por sorte a mina fazia parte de algum lote antigo e já não se encontrava em condições, rebentando apenas o dispositivo anti-pica, deixando o explosivo da mina anti-carro à vista, uma espécie de gesso em fragmentos.
Prosseguimos mais uma vez, e já com as tais árvores que obstruíam a picada à vista, a cerca de 200 metros, vejo indícios idênticos ao anterior.
Repetiu-se o mesmo procedimento, com a explosão de outra mina, originando, também, uma profunda cratera.
Continuámos e, a escassos metros, ouço outra pequena explosão a trás, concluindo-se que fo mais uma mina que rebentou na rodeira, do lado esquerdo, depois de passar o tal último picador, debaixo da roda da frente de uma Berliet da coluna que vinha atrás. Felizmente também com deficiência, à semelhança da anterior, rebentando apenas o pneu da viatura.
Chegámos então às árvores caídas na picada, a escassos 200 metros da ponte e, junto a uma delas, fora da picada, tinha explodido uma mina anti-carro, accionada por um javali.
A partir dali as viaturas saíram fora da picada e atravessaram o rio, na altura sem água, ao lado da ponte, restabelecendo-se a ligação com Farim, cujos picadores já estavam do outro lado à espera.
Não houve qualquer contacto com o IN, contudo tudo se passou sob um estado de tensão só imaginável por quem por ali passou.
Passados alguns dias iniciaram-se os contactos com o PAIGC, no sentido de se acabarem as hostilidades
Aqui fica o meu testemunho destes dois dos vários episódios de guerra em que estive envolvido.
Uma nota final:
Por tudo aquilo que vi no teatro de guerra da Guiné, admirei a disciplina, a coragem e até a valentia das chamadas forças especiais, Marinha (Fuzileiros), Força Aérea (Pára-quedistas) e Comandos, sendo o seu contributo importante nos momentos mais críticos da guerra nesta província, como no caso de Guidage.
Mas, sem querer aqui esgrimir argumentos a favor ou contra qualquer ramo das Forças Armadas, porque todas elas deram o seu melhor nas missões que lhe foram atribuídas, não queria deixar uma referência especial para o Exército, a que eu pertencia:
Como força de quadrícula, ou seja, cada unidade ou sub-unidade era instalada no terreno, num sector, cuja missão era:
- De defesa desse sector (operações e patrulhamento, colunas, construção de valas e instalações abrigo, vedações de arame farpado, etc.);
- De logística (construção e manutenção de infra-estruturas, manutenção de viaturas, alimentação, reabastecimentos, etc.);
- De âmbito social, em relação às populações sob a sua responsabilidade (construção de tabancas, apoio sanitário, apoio alimentar, etc.
Com estas características o Exército tornava-se mais vulnerável. O IN sabia que estávamos ali, sabia que utilizávamos as picadas de acesso. Portanto podia surpreender-nos a qualquer momento.
Enquanto as forças especiais eram forças de intervenção e de reserva, ou seja, estavam bem instaladas em Bissau, no caso da Guiné, bem alimentadas, e nas suas operações surpreendiam o IN, com resultados sensacionais, regressando de novo à base, o Exército estava sempre no terreno, como acima disse, sob desgaste físico e psicológico, mais vulnerável às investidas do IN.
Só para dizer, e não vejam isto como “puxar a brasa à minha sardinha”, é uma constatação, que o Exército foi a força que mais sofreu física e psicologicamente, no caso da Guiné que conheço.
Aqui deixo um abraço para todos aqueles que, como eu, ali deram o corpo ao manifesto e a sentida homenagem a todos os que, infelizmente, não tiveram a sorte de voltar, em especial aos que fiz questão de identificar neste trabalho, que comigo conviveram de perto.
Um abraço.
Manuel Sousa
Fevereiro de 2011
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Abril de 2011 >
Guiné 63/74 - P8044: Episódios da Guerra na Guiné (Manuel Sousa) (2): Afinal, os Anjos acompanham-nos