sábado, 24 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9262: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (1): O Natal de 1973, em Cufar, na véspera da Op Estrela Telúrica...

1. Há dias o António Graça de Abreu (AGA) mandou-nos uma bela prenda de Natal, o ficheiro em word, completo (com exceção das fotos) do seu Diário da Guiné, 1972/74, com autorização para publicarmos os excertos que  entendermos ter interesse para os nossos leitores.

Estamos a falar do livro, editado pela Guerra & Paz, Lisboa, em 2007,  embora com outro título (Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).

Recorde-se que o AGA chegou a Bissau a 24/6/1972, vindo de DC-6, de Lisboa. Foi colocado no CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1, sediado em Canchungo (Teixeira Pinto). É Alferes Miliciano, com a especialidade de Atirador de Infantaria, reclassificado por incapacidade parcial em "Secretariado, Serviço de Pessoal". Chega a Canchungo, de helicóptero, a 26, de manhã. Nunca identifica o seu comandante, coronel paraquedista [ Durão]. Tem um diário, onde escreve quase todos os dias (ou em alternativa, cartas e aerogramas que manda à sua mulher, num total de 347, até ao fim da comissão, 17/4/1974). Teve os seus primeiros "trinta e cinco dias de férias em Portugal" de 7 de Novembro a 17 de Dezembro de 1972 (, período em que não quaisquer notas no seu Diário).  Irá passar depois por Mansoa (Parte II do Diário) e acabará a sua comissão, sempre no CAOP1, em Cufar, no sul da Guiné (Parte III).

É desta III parte do seu diário, que transcrevemos as suas entradas relativas aos dias 22, 24 e 26 de dezembro de 1973. É em Cufar que ele passa o seu Natal de 1973, o seu segundo Natal na Guiné, numa época claramente de escalada da guerra no sul... Estava em curso mais uma grande operação no Cantanhez, a Op Estrela Telúrica. Como ele escreveu ironicamente, "Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação 'Estrela Telúrica.' Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade".  (LG)


(...) Cufar, 22 de Dezembro de 1973 

Deixei a cidade [de Bissau], deixei o frenesim das gentes, os motores, a poluição, a confusão e regressei ao bucolismo do campo, à nada pacata aldeia africana, aos rebentamentos de granadas, foguetões e bombas, às cabeças alteradas pela guerra, ao desamor e aos medos.

Ao descer do Nordatlas na pista da Cufar, deparei-me logo com a nossa ambulância à espera, pronta para as evacuações para Bissau. Mais um morto e oito feridos, fuzileiros estacionados no Chugué atacados no rio Cumbijã mesmo em frente a Cufar.

Preparam-se grandes operações na zona. Os comandos africanos vêm cá para baixo fazer mortos, ter mortos. Ontem – isto é muito animador! – deslocaram-se para Cufar mais dois médicos (um cirurgião e um anestesista) mais uns tantos enfermeiros. Trouxeram uns quilos largos de aparelhagem médica e cirúrgica, e materiais para primeiros socorros, enfim temos um aparato clínico capaz de assustar o menos medroso.


Os pobres vão morrer com a certeza de que morrerão bem acompanhados e assistidos.

Por estes dias, chegarão mais quinhentos homens, três companhias de comandos africanos, mais a minha conhecida 38ªde Comandos e ainda talvez pára-quedistas. Estes homens vão tentar a “limpeza” do Cantanhez. Em Bissau, encontrei alguns alferes amigos da 38ª que me puseram a par do que se espera com esta operação. Os rapazes também estão receosos, a moral não é elevada.


Entretanto, os Fiats continuam a bombardear aqui à nossa volta, com poucos resultados, parece que os guerrilheiros já possuem abrigos à prova da nossa aviação.

Cufar, 24 de Dezembro de 1973 


Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.

Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã.  Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de “Estrela Telúrica”. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a “Estrela Telúrica” prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª, fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a “embrulhar”, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata,[1] com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos “embrulhanços”, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação “Estrela Telúrica.” Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
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Nota de AGA: [1] Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, (coord.), Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora,1995, pp. 195-213

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9261: Estórias do Juvenal Amado (40): O meu compadre Aljustrel

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 21 de Dezembro de 2011:

Carlos, Luís, Virgínio e restante Tabanca Grande
Há muitos camaradas que, por vezes, quando estou com eles já não sei se eram da CCS ou de alguma companhia operacional. Conheço-os e pronto, mas também há os que passados estes quase quarenta anos, a sua recordação está tão viva que parece que nunca estive sem os ver. O Aljustrel é a par de muitos outros uma figura incontornável e já há algum tempo fazia tentativas para relatar as suas andanças. Muitas mais coisas há para dele contar mas por agora fico por aqui.
JA


ESTÓRIAS DO JUVENAL (40)

AI COMPADRE AMADO, QUE DOR TÃ GRANDE!

O meu compadre "Aljustrel" era um daqueles camaradas que as estudava e armava a cada passo.
Era mecânico e acompanhou-me nalgumas das piores colunas que fiz pelo Leste. Como já contei, era ele que ia comigo quando o Teixeira caiu na mina e também me acompanhou a Buruntuma em 1973, quando se esperava um grande ataque do PAIGC naquela zona, depois dos ferozes ataques a Copá. Nessa altura também sapadores do 3872, foram destacados para essas paragens e por lá ficaram durante uns tempos a "semear" os mortíferos engenhos. Eu e o "Aljustrel" tivemos mais sorte pois viemos logo embora no mesmo dia, depois de descarregarmos a nossa perigosa mercadoria.

Da esquerda para a direita: Lourenço (periquito), eu e o Aljustrel.

Mas o que eu quero é falar do "Aljustrel", que tinha uma propensão para a tonteira e alguns disparates, que fizeram dele personagem única.
Ele estava sempre envolvido na matança de algum cabrito, que entrasse no arame, chegando mesmo a matar um que tinha sido oferecido ao nosso Comandante.
Quando soube de quem era o bicho, apresentou-se com ele debaixo do braço ao nosso T.Coronel, dizendo que ele andava à solta e que o tinha matado sem querer. Está claro o nosso Comandante olhou para ele e disse, que se andava à solta não era dele. A verdade é que ele tinha proibido os animais à solta dentro do quartel e assim não quis dar o dito por não dito.

No inicio da nossa comissão quando fez o primeiro reforço resolveu pregar uma rajada de G3 numa vaca e gritar que eram turras. Escapou dessa como de muitas outras.
Um dia disse-me: "oh compadre Amado o periquito tem umas galinhas já matadoras e o que é que acha de a gente matar uma e fizer um petisco?" Assim foi, matamos, assamos a galinha e quando estava pronta, fomos ao posto de sentinela onde o Lourenço periquito estava de serviço e zás, fizemos uma petisqueira.

O periquito ficou tão contente e tão agradavelmente surpreendido, que até pagou as cervejas, enaltecendo a nossa amizade por nos termos lembrarmos dele para o pitéu. Escusado será dizer quando no outro dia deu pela falta da galinha, nunca mais se calou de f.d.p. para cima.

Um dia foi entregar material para abate a Bissau e pela terceira vez pediu à mãe dinheiro para a carta de pesados. Ele ia para Bissau com boas intenções, mas uma vez lá, havia umas raparigas muito acolhedoras lá para os lados do Pilão e a carta ia à vida, nas ditas, da vida.
Entretanto quando pediu à mãe o dinheiro para a carta, ela perguntou-lhe se a mesma era da avião, pois estava cansada de lhe enviar o dinheiro para o efeito.

Quandos os "periquitos" estavam para chegar, brincávamos com coisas sérias. O Aljustrel, eu e o Esteves na enfermaria

Outra vez foi chamado ao Comandante, porque uma madrinha de guerra, a quem com o tempo acabou por prometer casamento se queixou dele. Ela fez queixa porque ele lhe deixou de escrever. Foi obrigado a escrever-lhe e à cautela, passou a escrever a todas as outras, não fosse alguma lembrar-se de fazer queixa dele também. O Comandante avisou-o, mais alguma fizesse queixa dele e ia ver como elas lhe mordiam.

Mas umas das melhores teve a haver com as férias.
O nosso herói fez requerimento para o gozo de férias, mas como não vinha à Metrópole, entendeu passá-las no quartel e deitado. A malta achou graça e assim levavam-lhe as refeições à cama, deixou de se barbear, só saía de noite para ir para a tabanca ou para a cantina, não fosse o azar de ter um mau encontro com o Tenente Raposo ou mesmo com o Comandante.
Não esperava ele que tanto descanso lhe fizesse mal.

Um belo dia o compadre "Aljustrel" ia para se levantar e não conseguiu. Umas dores lancinantes nas costas, não o deixavam endireitar nem dar passada. "Aí compadre Amado que me desgracei. Que dor tã grande!!!!!" Amparado por mim e pelo periquito, a caminho da enfermaria com as costas num ângulo de 90º, assim mais ao menos como a Alemanha perdeu a guerra.
Resultado, o "Aljustrel" acabou as férias na enfermaria a levar umas injecções, que o Dr Pereira Coelho lhe receitou. Doeram que se fartou, mas curou-o.
Este episódio teve outro realce ao ser responsável, por ter acabado com o direito a férias, para quem permanecesse no quartel.

Passado pouco tempo depois de termos regressado, apareceu-me em Alcobaça com a esposa e já uma filha. Depois disso deixei de o ver durante 34 anos, não sabendo nada dele durante esse tempo pois correu o Mundo como embarcadiço. Num almoço em 2008 na Mealhada apareceu com esposa, a segunda filha e mais o marido desta. Foi uma alegria reviver as estórias.
Era ver a esposa e a filha olharem incrédulas para ele.
Faltava-lhes aquilo para acabarem de o conhecer melhor.
Um abraço
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9227: Blogoterapia (194): Como é bom não termos dúvidas (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8857: Estórias do Juvenal Amado (39): O meu Avô Juvenal, o Benjamim e Eu

Guiné 63/74 - P9260: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Madrinha de guerra e... amor

1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (12)

Madrinha de guerra e… amor

O Neca Quintino era sapateiro e bastante conhecido. Além de ser um artista no desempenho da sua profissão, granjeara um certo respeito pela sua honrada postura e pela solidariedade da sua viuvez precoce. Casou com a Micas do Canto, sua vizinha e bem conhecida desde os tempos de criança. Sempre se sentiram atraídos um pelo outro e, logo que puderam, assumiram uma relação, aliás abençoada por todos.

Era gente de trabalho árduo, fruto dos tempos inseguros da República e da fome que os acompanhou com a implantação do Estado Novo e os sacrifícios com a “neutralidade” de Portugal durante a II Grande Guerra. Além do amanho da casa e das hortas, do pequeno quintal, a Micas estava sempre ao lado do Neca, para o ajudar nos trabalhos de sapateiro.

A filha Deolinda, nasceu “antes do tempo”, o que acontecia muitas vezes com o primeiro filho de um casal. Portanto, naquele ano de 1944, além do casamento dos pais, festejou-se, também, o baptismo da Deolinda. O pai do Neca era serrador e o tio solteiro era pedreiro. Juntos decidiram ajudar o Neca e a Micas e iniciaram a construção de uma casa de quatro paredes. Na parte de cima, ainda colocaram, entre os tijolos vermelhos, três janelas e uma porta mas em baixo, estava tudo vedado com casqueiras de madeira.

A mulher já havia abortado por três vezes e fora avisada de que a sua vida corria perigo sempre que isso acontecia. Porém, a Micas queria um rapaz e como vira que os três fetos eram do sexo masculino, ela vivia ansiosa por conseguir o filho tão desejado.
Quis o destino que no último parto, as coisas corressem pior. Assim, a contrariar a alegria do nascimento do rapaz, caiu a tristeza do falecimento da Micas, pouco tempo depois.

Com oito anos, a Deolinda deixa a escola e vai ajudar o pai e cuidar do bebé recém nascido. Por outro lado, o Neca, apesar da falta de apoio da falecida mulher e, ainda, com algumas dívidas da casa inacabada, resolve instalar luz eléctrica em casa. Convida alguns colegas de profissão, para trabalharem com ele, ajudando-o, assim, a custear tal investimento. A Deolinda substituía a mãe em quase tudo. Sempre com o irmão ao lado, dentro de uma giga de giesta, fazia quanto o pai lhe pedia.

O Quinzinho, que herdou o nome do avô, rapidamente se tornou no miúdo mais acarinhado daquele lugar. Foi crescendo cheio de atenções e simpatias e muito amor da irmã adolescente, que sempre o tratou como se fosse seu filho, para além de seu boneco de estimação.

Quando estalou a guerra em Angola, já a Deolinda era uma mulher. Mulher de raça! Fazia o trabalho de qualquer sapateiro, cuidava da casa e ainda se esforçava na pequena horta contígua à casa.

Na cave da sua casa, em redor de duas mesas colocadas de frente para a luz, que penetrava pelas duas portas abertas (de Verão e de Inverno), trabalhavam mais de 10 pessoas. Trabalhavam à tarefa para as várias fábricas de calçado da região e davam o seu máximo de tempo e de esforço para conseguirem ganhar o sustento condignamente. O Neca trabalhava isolado lá mais atrás, junto a uma pequena mesa, onde era ajudado pela filha Deolinda e por um ou outro aprendiz que ia admitindo. Desta forma, isolava a sua filha das conversas menos convenientes dos adultos e dava o privilégio da entrada da luz, aos outros (seus “inquilinos”).

A Deolinda era inteligente e apercebia-se de quase tudo que ali se discutia, do futebol à política (surda); da religião à má-língua. Agora, já mulher, quando soltava os seus longos cabelos pretos, via-se que, apesar de não ter mais que 1 metro e 60, se tratava de uma mocetona. Era bem feita de corpo e tinha um palminho de cara muito bonita e uns lindos e expressivos olhos negros. Todavia, escondia as mãos e os joelhos, devido aos calos do trabalho.

É nesta fase dos primeiros tempos da guerra, que se vive com muita emoção, o envio das nossas tropas para defender o Portugal de além-mar.
Havia um vizinho, o Zequita, que gostava muito de ir para lá aos serões, ouvir a conversa e ler em voz alta alguns jornais ou revistas que chegassem até ali. Tinham por ele muita simpatia porque era órfão do Zé da Feira, considerado um amigo de todos, que falecera de doença hepática com trinta e poucos anos. Além disso, como eram praticamente todos analfabetos e sem tempo disponível, gostavam de ser informados, através das leituras, enquanto trabalhavam.

Como se falava muito nas Madrinhas de Guerra, a Deolinda confessou que gostaria de ter um afilhado. O pai, embora torcesse o nariz, não via motivos para censurar tal desejo da sua sacrificada filha. Porém, ela tinha um grande entrave: saíra da escola com a primeira classe e já quase nada sabia.
Um dia, ela apanhou uma revista (talvez a “Flama”) e viu lá uma foto tipo passe de um rapaz com a farda diferente. Era da Força Aérea e pedia a alguém que o contactasse durante aquela guerra. Logo que o Zequita lá chegou, ela disse-lhe, meio a brincar, que ele poderia mandar-lhe uma carta no nome dela.

Passados poucos dias, a Deolinda não aguentava tanta emoção. Pois havia recebido uma linda carta, com a primeira foto dedicada por um bonito rapaz, e a tratá-la com elevada educação. O Zequita, apesar dos seus 15/16 anos, gostava muito de cinema e já havia lido alguns livros de enredo romântico, especialmente os de Camilo Castelo Branco, emprestados pelo vizinho Mário Malheiro. Por isso, não foi difícil “abusar” um pouco desses conhecimentos e colocar o relacionamento da Deolinda com o Pára-quedista, João Morgado, talvez um pouco acima da realidade.

A Deolinda, que nunca namorara, entusiasmou-se e agora, já não se sentia bem quando o tema de “Madrinha” era motivo de discussão ali na mesa de trabalho. Preocupava-se, então, em controlar o que o Zequita escrevia e tomou uma atitude:
- Pai, quero frequentar a Escola de Adultos. Vai ver que consigo trabalhar e ir para a escola.

O pai, apesar da falta que ela lhe fazia, ficou contente com a decisão.
Não levou muito tempo para que ela se desenvolvesse na escrita e, com a ajuda do Zequita, o relacionamento de Madrinha de Guerra estava a transformar-se numa relação amorosa.

Entretanto, o Zequita, que trabalhava na cortiça, também resolveu ir aprender contabilidade à noite, no ensino privado, e passou a dispor de pouco tempo para acompanhar as cartas da Deolinda. Este atraso veio a provocar alguma aceleração no relacionamento Madrinha/Afilhado. É que o João Morgado, o tal afilhado, vinha, através do ciúme, demonstrando cada vez mais, que se sentia apaixonado. E ela, por mais que se esforçasse, não se sentia capaz de lhe corresponder como gostaria. A barreira da escrita e um certo retraimento face ao vizinho Zéquita, eram motivos de sobra para chorar a sua sorte. É que o Zequita alinhou naquilo como uma brincadeira e parecia não aceitar o desenvolvimento que estava a levar. Especialmente, não gostava que a Deolinda se apaixonasse daquela forma por “um desconhecido”.

Ela pensou, pensou, chorou, chorou e acabou por tomar a difícil decisão. Quando apanhou o Zéquita, pediu-lhe para escrever a última carta.

Querido João
Gosto muito de ti. Mas neste momento, estou obrigada a parar com o nosso relacionamento. A culpa não é tua. Um dia, se quiseres, poderei explicar-te pessoalmente.
Até lá, desejo-te as maiores felicidades, especialmente nessa maldita guerra.
Fica com esta última foto, tirada no monte da Senhora da Saúde dos Carvalhos.
Um beijinho desta que nunca te esquecerá.
Deolinda

A partir dali, a Deolinda sofria em silêncio aquela mágoa de um amor “cancelado”. Dedicava-se cada vez mais a preparar-se para o exame da 3.ª classe e continuar a aprender aquilo que tanta falta lhe tinha feito agora.

Cerca de dois meses depois, pára um carro VW azul claro, junto da casa da Deolinda. Nenhum vizinho o conhecia. Dele saiu um jovem que se dirigiu à primeira pessoa que encontrou:
- Por favor, diga-me onde vive uma rapariga chamada Deolinda.

- Não tem nada que saber, o senhor parou lá quase à beira. É essa, a segunda casa para quem vem do lado da Feira. – respondeu a vizinha.

Bateu no pequeno portão. Surgiu o Ti Neca que, do alto da escadaria, lhe perguntou o que queria.

- Chamo-me João Morgado e quero falar com a sua filha Deolinda.
Ela que já se apercebera do que se estava a passar, surgiu-lhe junto ao portão, vinda de trás da casa.

Ele, decidido, atira-lhe:
- Vim de férias. Não aguentava estar lá na guerra e ao mesmo tempo não suportava o teu afastamento. Tens de me dizer o porquê dessa atitude.

A Deolinda, emocionada e já com as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, exclama:
- Não tenho coragem para te dizer toda a verdade.

- Seja o que for, só sairei daqui esclarecido e quando tu mandares. – respondeu ele.

- Gostei de ti logo na foto em que pedias uma Madrinha de guerra. Como tive que abandonar a escola, aos 8 anos, quando a minha mãe morreu, pedi a um rapaz vizinho que te escrevesse em meu nome. Nunca pensei que cairia nesta situação. Fui para a escola nocturna por tua causa e agora, que já me sinto capaz de te escrever, não o podia fazer porque a letra não era a mesma. Tinha que parar. Não te queria continuar a mentir. Por outro lado, tens que saber que somos muito pobres, que sou uma rapariga simples, que vivo para ajudar a criar o meu irmão e ao meu pai, fazendo de sapateira e o trabalho de casa. Como vês, não sou rapariga para ti, porque vejo que és rapaz de outras possibilidades.

- Não, por favor, não digas isso. – interrompeu o João, que continuou:
- Também gostei logo de ti e agora, depois do que acabas de contar, sinto-me mais decidido a lutar para que venhas a ser minha mulher.
- Mas eu nunca namorei. Nem ninguém me interessou como tu. – continuou cada vez mais banhada em lágrimas.
- Que se passa, filha? – Perguntou o pai que havia ficado lá em cima.
- Diz ó rapaz para subir. Não fiquem aí a modos do povo ouvir.

Entraram os dois. Estiveram lá umas horas a conversar, para se conhecerem melhor.

À saída, ainda o Ti Neca estava sentado no cimo da escada, junto à porta aberta. O João aproveitou para lhe dizer:
- Senhor Manuel, apenas lhe quero dizer que o Senhor tem a melhor filha do mundo e eu, daria tudo para que ela viesse a ser minha mulher. Ela não tem nada a ver com as raparigas que conheço.
Sou ribatejano. Meu pai, que Deus tem, ensinou-me a tratar os problemas de frente, como se enfrentam os touros. Como trabalho muito, também não tenho tempo para meias conversas. Volto para a guerra. Penso que agora vou para o “descanso” e não vou mais para os combates. Fico feliz se a Deolinda continuar a estudar. Por mim, vai até onde quiser ir. Temos muito trabalho mas também temos empregados para ajudar.

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Uns dois anos depois, estive com o Ti Neca, por ocasião dos Fiéis Defuntos. E perguntei-lhe:
- Que é feito da sua Deolinda?
- Está lá para a beira de Santarém. – respondeu e continuou:
- Casou com uma jóia de homem. O meu Quinzito está com ela e anda a estudar e eu, ando lá e cá. Estou aqui porque vim ao Cemitério ver a minha patroa, mas vou já para baixo. Ela está em finais de gravidez e não me sai da cabeça o que aconteceu à minha falecida Micas.

- E o trabalho, como vai? - perguntei.
- Olha, isto está a mudar. Os fabricantes de calçado querem agora toda a gente a trabalhar junto deles. O meu patrão Romualdo tem-me dado algum serviço para casa mas, isto já não é vida para mim. Por outro lado, a minha filha e o meu genro querem que eu fique lá. E eu já estou a habituar-me àquela vida no Ribatejo, ajudo no que posso e, realmente, sinto-me em família.

Há mais de 30 anos que quando passo naquela rua, reparo que a casa foi acabada e se mantém bem cuidada. Porém, sempre de portas e janelas fechadas.
Um dia, há uns 15 anos, consegui falar com uma vizinha do lado. Perguntei-lhe:
- Que é feito do Senhor Neca?
- Já faleceu há uns 4 ou 5 anos. Do filho não sei nada. Parece que foi para o estrangeiro. Esse, não cheguei a conhecer porque nunca o vi cá. Mas a Professora Deolinda e o Senhor Morgado passam por cá de vez em quando. Já têm netos!

Silva da Cart 1689

OBS:- As devidas vénias a Manuel Graça, autor da foto do desembarque de tropas em Angola em 1961
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal

Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9119: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Sexo - a quanto obrigas

Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 21 de Dezembro de 2011:

Viva Carlos,
Envio ao teu critério a minha breve opinião sobre a interessante biografia de Bobo Keita, que li por gentileza do Virgínio Briote.

Para ti e para o Tabancal envio um abraço com votos de Boas-Festas.
JD


Li no Blogue a extensa recensão sobre a biografia de Bobo Keita, um comandante do PAIGC, que resultou do conjunto de conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor da edição. Aquela amostragem no Luís Graça e Camaradas da Guiné, estendeu-se por três episódios e, talvez fruto da extensão, não terá sensibilizado os leitores para a excelente exposição feita sobre aquele partido, tendo em conta que deriva das lembranças de quem viveu o período colonial e, por via disso, juntou-se ao movimento emancipalista, participou na organização e em acções de guerra, tendo atingido um lugar de destaque na estrutura e, portanto, revela variados momentos e acontecimentos que contribuem para uma melhor avaliação histórica.

Sensibilizou-me a correcção dos discursos em relação à potência colonial, sem preconceito, sem ódio nem azedume, até com uma ingénua simplicidade, como quando se refere à ausência de direitos de uma grande parte da população - os gentios - que, no seu caso, por não ter nome de aculturado, não podia ter bilhete de identidade e, em consequência, não podia frequentar a escola. Disse-o sem rancor ou qualquer animosidade, embora aqueles gentios, sob aquele regime, estivessem sujeitos a perpétua subalternidade e impossibilitados de serem parte em actos administrativos. Não eram escravos, mas eram ostracizados. O regime viria a corrigir a situação mais tarde, para todo o território ultramarino, provavelmente em consequência da evolução social e política, mas também para dar resposta ao crescimento do bem estar e ao estabelecimento de novas formas comerciais.

Valeu-lhe uma missão católica e o bom padre que lhe deu o nome de Henrique dos Santos Keita, para que tivesse tido oportunidade para frequentar a escola, que iniciou aos nove anos. As conversas revelam que o jovem não só estudava, como se iniciava na aprendizagem e ajuda à profissão de alfaiate que o pai exercia. E porque o pai era muçulmano, dificultava-lhe a vida aos domingos para que o Bobo não tivesse oportunidade de frequentar a igreja, preocupação de que sairia aliviado, quando expôs a questão ao mesmo padre que o dispensou das missas e lhe permitiu concluir os estudos primários em condições de alguma normalidade. Hoje, adultos, devemos levar em consideração a influência destes acontecimentos na formação moral e ética de um jovem, que correu contra a exclusão na sua própria terra.

Outra nota muito subtil sobre a formação do carácter e o determinismo pessoal, aconteceu quando o Bobo já era ídolo na cidade de Bissau. De facto, enquanto estudava e ajudava o pai, também praticava futebol e desenvolveu habilidades que o levaram ao Benfica local (apesar de ser o Sporting o clube do coração). Aos dezassete anos, para representar a selecção da Guiné, deram-lhe nova identificação com a idade de dezoito, e passou a deslocar-se para participações em torneios africanos. Aos jogadores era destinada uma pequena verba, talvez para despesas de representação ou pequenos gastos pessoais, com a qual os dirigentes se locupletavam. Reclamavam os futebolistas, mas não havia nada a fazer. Até que num torneio, no Gana, em 1959, que celebrou a independência da antiga colónia britânica com a designação de Costa do Ouro, o presidente Nkrumah exaltou a libertação dos povos oprimidos. Mais tarde, sobre uma deslocação à Nigéria, refere: "no balneário e no hotel, começámos a reflectir nas nossas condições de existência em relação aos outros futebolistas com que nos cruzávamos nesse torneio internacional de Lagos". "Começámos então a manifestar a nossa insatisfação , a acantonar-nos numa certa reserva em relação aos dirigentes da selecção". E o cachet, nicles! Numa deslocação seguinte à Gâmbia os jogadores ameaçaram não participar se não lhes dessem o dinheiro. Em consequência dessa actitude colectiva foram chamados à PIDE que os intimidou, uma prática da "justiça" dominante.

Nesta senda, Bobo e alguns companheiros de futebol decidem abalar para Conakri onde se modelava a oposição. Não foi um guerrilheiro romântico que saiu de Bissau, mas um jovem conhecedor das duas faces da vida que, apesar de se estar a afirmar como futebolista, continuava a sentir as dificuldades da ascendência humilde, em termos que lhe feriam a dignidade. Nem por isso, no entanto, deixa escapar qualquer expressão de ódio ou desprezo em relação aos portugueses. E é também sem qualquer traço de soberba, insulto ou desdém, antes, consciencioso e com sentido das responsabilidades, que Bobo vai fazer o seu exercício de memórias sobre a guerra pela independência.

Sobre o congresso de Cassacá confirma as razões da convocatória e a aplicação da lei marcial. Parece-nos brutalidade (e foi), mas quantos de nós ainda hoje não manifestamos vontade de pendurar em postes públicos ou nos pelourinhos os corruptos de Portugal? Faz-nos descrições interessantes sobre a vida no mato, e nas chamadas zonas libertadas (aquelas onde os portugueses bombardeavam e só passavam em percursos operacionais), bem como os relatos de vários episódios de graça e de guerra, e histórias de intrigas no seio do partido, ou de contactos com os portugueses, quase todas caldeadas de informações complementares e esclarecedoras.

Relativamente à morte de Cabral, Bobo conta-nos sobre a percepção do líder relativamente ao atentado, e a sua convicção (de Bobo) sobre a responsabilidade partilhada por Inocêncio Cani (que iria substituir no comando dos blindados), Mamadu Injai, Momo Turé (primo do Bobo) e Aristides Barbosa, todos concominados com a PIDE, que pretendia a captura dos líderes, e apostava na divisão étnica entre guineenses e cabo-verdianos, e revela o forte indicio de Inocêncio (o autor do primeiro tiro) ao comandar um barco em fuga para Cacine com Aristides Pereira prisioneiro e escondido a bordo. Foi apanhado em Boke, aparentemente para se reabastecer de combustível ou vingar-se de José Pereira que o denunciara de mau carácter. "Os cabo-verdianos estiveram ali nas frentes de combate durante todo o período da luta", refere Bobo desmistificando teorias elitistas no PAIGC relativamente aos guineenses. "Os que defendem esta tese, ou fazem-na de propósito para criar a divisão entre guineenses e cabo-verdianos ou então não conhecem a história da luta". Ora, neste capítulo, dá-se conta de algumas tentativas para eliminação de Cabral.

À morte de Cabral o partido reagiu e declarou a independência, enquanto recebia novos equipamentos para a prossecução da guerra. De entre esses destacaram-se os mísseis Strela. Reorganizados e reequipados, levaram a cabo a operação "Amílcar Cabral". "Lá onde não podiam pôr os pés, porque a guerrilha estava presente em força, mandavam os seus aviões que lançavam bombas semeando o pânico e a destruição para depois fazerem avançar os seus soldados ao assalto, protegidos por tanques blindados e helicópteros de combate. A correlação de forças encontrava-se desequilibrada e a favor deles. Por isso é que a nossa luta durou tanto. Mas na operação multi-direccionada (Guileje-Copá-Guidaje) o uso massivo e sem recuo de canhões de artilharia, foguetões e morteiros fizeram oscilar a balança". E acrescenta sobre a evolução na formação militar: "Com a aquisição da nova força das armas, do cálculo dos artilheiros, muitos de nós certificámo-nos ainda mais de que não eram os 'mésinhos' que determinavam as nossas vidas ou mortes. Compreendemos que uma vez que a bala mortal rompesse a pele e se incrustasse na carne não havia remédio algum que possa salvar. Vi qual era o valor das trincheiras, dos abrigos, do amontoamento de areias à volta das bases". "O primeiro reflexo do guerrilheiro que antes era pôr-se de pé e disparar a peito nu contra o inimigo, confiante no 'mésinho' pendurado à volta do pescoço ou nas coxas... passou a ser a escavação de abrigos, a formação de montes de terra para se proteger do assalto inimigo, a codificação do espaço, a disciplina quotidiana, uma maior concentração nos indícios, a melhor utilização do terreno geográfico, etc.. Éramos combatentes e não feiticeiros ou jambacuses".

Bobo também se refere ao protagonismo e aos privilégios de Nino durante o período da luta, e não lhe foi simpático.

Spínola, o "desmancha prazeres". "É verdade. ...Mas não se esqueça que à frente dele estava também um dos mais prestigiados líderes da revolução africana, Amílcar Cabral! E o braço de ferro entre eles, apesar da morte de Cabral, saldou-se na derrota de Spínola, que acabou por reconhecer que tudo o que fez na Guiné não deu resultado, não conseguiu vencer-nos". Repare-se na delicadeza de trato deste comandante relativamente ao mais famoso adversário. E tece a seguinte consideração: "Spínola estava numa perfeita contradição entre a sua visão neocolonialista de uma autodeterminação e independência da nossa terra debaixo da bandeira de Portugal e o estado avançado em que a luta do Partido se encontrava e de onde já não podíamos recuar". Poderiam os portugueses ter rebatido? Acho que sim, e hoje sabemos de algum abrandamento diplomático dos países ocidentais contra Portugal, mas os portugueses não souberam tomar em tempo devido as medidas aglutinadoras, e cansaram-se da guerra.

Parece um depoimento sério, que aborda várias questões que rivalizaram o PAIGC com Portugal, antes, durante e depois do período da "luta". Não escamoteia o confronto com outras teses conhecidas, antes contribui para novas abordagens sobre essas relações entre duas partes que se reclamavam da legitimidade para governar o povo da Guiné. Aconteceu, porém, que os portugueses desistiram, e Bobo, que comandou a frente leste depois do 25 de Abril, apressou a retirada dos portugueses daquela região, com recurso a estratégias que aproveitavam a desorganização e "desmobilização" da tropa metropolitana.
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Notas de CV:

Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:

24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho

25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

Vd. postes da recensão deste livro feita por Mário Beja Santos de:

5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)
e
9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego

1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta vez relembrando um colega, de faculdade, cego.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (19)

O Colega Cego

Em pleno Outono de 1961 iniciei os estudos em Coimbra. Matriculei-me no curso de Filologia Germânica; éramos mais de 250 alunos naquele curso, mas menos de 20 eram do sexo masculino. Em determinadas aulas havia 600 alunos numa sala a ouvir um professor lá na frente porque havia “cadeiras” comuns a três cursos: Germânicas, Românicas, e Clássicas.
Imaginem hoje um professor ministrar uma aula com 600 alunos dentro duma sala! Seria interessante se um professor nos dias de hoje conseguisse dar a aula.

No meu curso havia um rapaz que era cego. A mãe acompanhava-o diariamente até à Faculdade; no fim das aulas lá estava ela a esperar pacientemente pelo filho generoso para o conduzir, a pé, até casa.
Naquela época os carros eram raros... o dinheiro não abundava mas ninguém “comia fiado”. E hoje só se fala em crise! O que seria aquilo?!

Apercebi-me que o Fausto, o companheiro cego, vivia para as minhas bandas.
Eu vinha diariamente da Conchada,... ele da Nicolau Chantrene, ali perto.
Combinei com aquela mãe maravilhosa que trouxesse o filho até à Antero de Quental; dali para a Faculdade e volta eu seria a sua muleta.

Na vida já fiz muitas coisas... extra: já fui engenheiro, empreiteiro de pontes e aprendiz de moço de cego (prestei provas e passei a moço). Sem pretender molestar ninguém... penso que desempenhei adequadamente esse cargo... voluntário; nunca houve atrasos nem faltas de comparência.

O Fausto era um colega interessantíssimo, muito paciente e muito inteligente; todos os colegas adoravam conversar com ele e ajudá-lo; era um óptimo conversador. Em cada intervalo, um montão de malta (colegas) rodeava-o para conversar, saber como escrevia manualmente (Breille) o que o professor ía relatando, como “lia” as horas no seu relógio... para cegos etc.

Em casa tinha um gravador de bobines onde o irmão – estudante de medicina – “gravava” as sebentas. A ouvir a gravação o Fausto aprendia a matéria.

No nosso percurso de e para as aulas conversei muito com ele; contou-me como tudo tinha acontecido com pormenores surpreendentes.

Nasceu com uma deficiência que lhe afectou a visão; passou a ver cada vez menos; a partir dos cinco já via pouco mas passou a ter dores horríveis. Estas dores abrandavam se estivesse em local absolutamente escuro. Apareceu um médico americano que prometeu debelar as dores... porém “levou-lhe” também a pouca visão que lhe restava.
Naquela época ele apercebia-se apenas dum obstáculo – um muro, por exemplo – à sua frente; um buraco, por maior que fosse, não era perceptível.

Nos exames escrevia à máquina; o Fausto era um bom aluno. Conhecia todos os colegas... pela voz; era muito vivo, muito perspicaz.
Um dia perguntei-lhe se ele gostaria de vêr. Ele estacou no meio das escadas monumentais; depois de pensar calmamente por uns instantes e respondeu:
- Nunca me fizeram tal pergunta; daí a minha demora em responder; sinceramente penso que ter vista agora seria uma desilusão para mim... o mundo talvez não seja como eu o imagino... não será mesmo... calculo que a minha decepção seria enorme!

No ano lectivo seguinte tínhamos horários diferentes; eu já não podia auxiliá-lo. Outro colega ocupou o meu lugar; “víamo-nos” e falávamos de vez em quando... raramente.

Findo o ano lectivo de 1962/63 mandaram-me para Mafra, EPI; ainda me matriculei em duas cadeiras... apenas para poder exercer a praxe. Aos fins de semana, de vez em quando, ia até Coimbra e lá tomava parte numa “trupe”... para caçar caloiros. Seria até uma boa preparação para mais tarde... caçar “turras”. Como só actuava de noite nunca encontrei o Fausto.

Em Janeiro de 1964, como aspirante, fui para Évora; em Maio no mesmo ano, como alferes, parti para a Guiné.

Um ano depois, em Abril/Maio de 1965, vim de férias; ia muitas vezes a Coimbra visitar a garota (que veio a ser e ainda é a minha mulher) e assistir à queima das fitas.
Numa das idas a Coimbra, numa rua bastante inclinada que desemboca no Largo da Portagem – Conraça de Lisboa, creio) vi o Fausto no meio da multidão amparado por uma ex-colega minha.

A uns metros de distância gritei:
- Oh Fausto! Estás bom, pá?!
Corri logo para junto dele.
O Fausto retorquiu:
- Fala mais alguma coisa! Estou a reconhecer a tua vez!
Mais duas ou três palavras e o Fausto exclamou contente:
- Tu és o Belmiro! Que foi feito de ti, rapaz? Dá cá um abraço, meu grande amigo! Deixa-me chamar-te... meu guia!

Iniciámos logo um longo desfiar de recordações; conversámos longamente.
A certa altura, o Fausto informou:
- A minha guia agora é esta! (e acarinhou amorosamente a nossa ex-colega) lembras-te dela? Casámos há quatro meses... é uma grande companheira! Uma excelente amiga!

Uns anos mais tarde soube que ele era professor de inglês num liceu de Coimbra; A esposa leccionava na mesma escola; os alunos adoravam-no!
Quando em fins dos anos 70 pretendi saber o que era feito dele... fui informado que tinha falecido em consequência da doença congénita que lhe provocou a cegueira.

Aquele encontro em Maio de 65 ficou gravado na minha memória, para sempre. Mais de 46 anos passados ainda recordo aquele dia com alegria e emoção: o Fausto reconheceu-me depois duma separação forçada de 3 anos. Que rica queima das Fitas!

Lisboa, 19 de Dezembro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (18): Uma mina anticarro e as suas consequências

Guiné 63/74 - P9257: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (8): Mensagens das nossas amigas tertulianas Felismina Costa e Margarida Peixoto

MENSAGENS DE NATAL DAS NOSSAS AMIGAS
FELISMINA COSTA E MARGARIDA PEIXOTO

1. À Tabanca Grande de Luís Graça & Camaradas da Guiné 
e a todas as Tabancas dela derivadas

Meus amigos
“Muito em cima da hora“, porque os afazeres nesta data, são múltiplos, não quis no entanto deixar passar esta quadra, sem vos enviar os meus votos de “Festas-Felizes”.

Num ápice, desapareceu 2011!
365 dias, voaram!
E, se por um lado, nos custa ver voar os anos, por outro, é um prazer achar que passaram depressa.
Tristes dos que, com a nossa idade, acham que os dias são enormes e que as noites são infindáveis!
Quanto a vida nos permita ocupação, quanto o tempo nos ofereça capacidades para preencher as horas da nossa vida, é um bem incalculável, somente apreciado por aqueles que se sentem limitados nas suas capacidades físicas.
Assim, bem digo a velocidade a que o tempo corre!
Bendigo o tempo vivido!
Bendigo a aprendizagem permitida no tempo, no meu tempo de vida!

Nestas seis décadas, somos testemunhas de evoluções e retrocessos, certamente de mais evoluções que retrocessos, lembramos um passado comum, embora cada um de seu modo diverso, mas comum, em que somos capazes de compreender o que cada um sente e viveu.
Não cabe aqui o desfiar do tempo que já vivemos, a universalidade contextual da nossa existência, mas digo-vos que, apesar de todas as contingências, dos grandes erros humanos que lamento, a vida, é o maior bem!
Nela crescemos, física e intelectualmente, diferenciados por capacidades e oportunidades, e por isso mesmo, formamos um todo, diverso entre si, rico pela multiplicidade dos conhecimentos adquiridos.
É neste contexto que vos saúdo!

Agradeço a todos a partilha dos vossos conhecimentos, dos vossos sentimentos, da vossa visão do tempo, presente e passado.
Quero reafirmar-vos o meu prazer, em fazer parte desta “família” de gente bonita, de seres humanos extraordinários, que se mantêm unidos, que partilham lembranças de dias difíceis, que com tudo os uniu, pois que é nas dificuldades que as pessoas se unem.

E, é por saber que o Natal aproxima mais as famílias, que há um espírito de maior união, que há até uma necessidade de ir ao encontro dos amigos, saber deles, falar do passado para manter o presente, que vos quero desejar uma reunião natalícia, Alegre e Feliz.

Quero também desejar, que o Novo Ano traga estabilidade, paz para todo o mundo, discernimento para os homens que tem por missão a governação dos povos, de forma, a que haja uma mais justa distribuição da riqueza, para que me possa sentar à minha mesa humilde, contente por saber, que em qualquer parte do mundo, o mais pobre, tenha como eu, o pão e o conforto do seu lar.

A todos vós, o meu abraço imenso, fraterno e solidário.
A vossa amiga de sempre
Felismina Costa


2. É NATAL

É Natal!
Foi-nos dado um tempo, mas todos temos a consciência que atravessar esse tempo não é deixá-lo passar ao sabor do vento, chegando ao fim do dia sem reflectirmos o que fizemos de bom, de positivo de humanitário nas vinte e quatro horas que passaram por nós, ou nós por elas.
A juventude vai passando e as recordações da mocidade vão-se avivando, fazendo-nos pensar no que somos e no que poderíamos ter sido.
Melhores?!!!
Piores?!!
Ou simplesmente como somos?
Não importa, o que realmente conta é a nossa consciência, a nossa postura na vida, os nossos sentimentos.

Natal! Palavra mágica! Católicos ou não, esta quadra mexe connosco.
Ao sentimento de amor, de sensibilidade, de darmos as mãos em sinal de Paz e Amizade.
Que as luzes cintilando em cada casa, árvore ou rua, apaguem a revolta e a tristeza, transformando-as num manto de serenidade, e numa certa tranquilidade. E sem sabermos como, sentirmos ainda, mesmo ao de leve, uma esperança de uma vida melhor.

Ainda que a Fé, esteja longe de nós, mesmo que pensemos que tudo isto não passa de um conto de “fadas” ninguém fica indiferente ao olhar para o Presépio. Ele representa a Vida, a Família a União.

Neste Natal, em que vós ex-combatentes estais unidos pela amizade, pelo passado, pelo que de bom e de mau vos uniu, desejo-vos a todos assim como à vossa Família, que o “ vazio “ que sentiam antes de se encontrarem nesta maravilhosa aventura da vida, seja um acumular de glórias no vasto horizonte das vossas vivências.

Que a Estrela que guiou os Reis Magos até à cabana onde nasceu o Menino Jesus, vos guie para uma vida de Paz, saúde e alegria.

Que o Presépio construído em Belém represente a vossa família.

O tempo que aqui passamos é breve. Pensemos nesta realidade e vivamos este momento com toda a Glória do Universo a que pertencemos.

Um Bom Natal e que o Ano Novo vos reúna novamente.
Margarida Peixoto
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9255: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (6): Onde não mora o Natal. Mensagem do José Eduardo liveira (JERO)

Guiné 63/74 - P9256: À margem da história oficial ou oficiosa (2): A tragédia, em São João, que ensombrou o Natal de 1966 da CART 1613: o assassínio do Cap Fausto Ferraz, substituído depois pelo Cap Eurico Corvacho (que morreu anteontem)





Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Eurico Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos ostenta é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim, que foi seu camarada da academia (O Nuno era de um curso anterior ao do Eurico) ... (LG).

Fotos: ©
Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Todos os direitos reservados.






1. Na vésperas da noite de Natal de 1966, uma tragédia vai ensombrar a história da CART 1613/BART 1896, a companhia que estava em IAO em São João  e que  iria, seis meses depois,  para  Guileje (onde esteve de Junho de 1967 a Maio de 1968).


Nos registos oficiais diz-se que Cap Mil Art com o nº mecanográfico 1036/C, pertencente à CART 1613/BART 1896, mobilizada no RAP2, Vila Nova de Gaia, de seu nome Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, foi vítima mortal de acidente com arma de fogo (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João, vindo a morrer a 24 de Dezembro de 1966 no Hospital Militar 241, em Bissau.


O malogrado Cap Ferraz foi inumado no cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.


Antes de morrer, o  Cap José Neto (1929-2007) contou-me, antes de morrer,  que se tratou de um homicídio, e não de um simples acidente com arma de fogo. O autor dos disparos foi o Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco. Era madeirense (se não erro), tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana ou de poncha (se não me engano).


A companhia tinha chegado à Guiné há cerca de um mês, e estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional. As saudades da terra, as recordações do Natal e a poncha devem ter feito uma mistura explosiva na cabeça do pobre Cavaco. Sob o efeito do álcool, e sem motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz em 24 de Dezembro de 1966. Terá inclusive ferido mais militares. O Zé Neto, que estava a exercer funções de 1º sargento,  teve que o esconder para ele não ser linchado.


2. Eis dois excertos das memórias do Zé Neto, publicadas no nosso blogue, na I Série:


(...) Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia .Excerto do relato do Zé Neto sobre o julgamento do Cavaco, um ano depois em Bissau. 



No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia. (...)


Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.


Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM [, Polícia Militar,] e dum sistema de detecção de velocidade discutível.


O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária. (...)


O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:

- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.


Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.


Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.


Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.


Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra. Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.


Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
-  O nosso comandante... é o capitão Corvacho!


Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.


Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.


Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de vai e volta. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).


Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.


Ironicamente, saliento que o meu Capitão tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói. E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.


Com torneados e floreados, foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta. Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada" - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guileje, onde morámos e combatemos cerca de um ano. (...).

(...) No final do ano [1967], eu, o Furriel Martins e o 1º Cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do Soldado Cavaco . O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido. O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.


Tanto eu como o Furriel e o Cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O Tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o Juiz Auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o carácter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.


Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel Presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:
-Um excelente e infeliz soldado.


A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...)
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Nota do editor:


Último poste da série > 22 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9249: À margem da história oficial ou oficiosa (1): Revolta, em Guidaje, da martirizada CCAÇ 19 (Manuel Marinho, 1ª C/BCAÇ 4512; José Martins, CCAÇ 5)

Guiné 63/74 - P9255: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (7): Onde não mora o Natal. Mensagem do José Eduardo liveira (JERO)



1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem: 


Camaradas, 

Guardei-me prás "últimas" para vos mandar um pequeno texto e votos de Boas Festas.


Para vós e todas as vossas famílias. E obviamente para toda a gente que colabora e gosta do nosso blogue. 

PS- O conto que envio é baseado em factos reais. Infelizmente não é ficção. Antes fosse.

De certo modo tem a ver com a "estória" do Alfero Cabral e do miúdo Sitafá, que não sabia onde morava o Natal.


Ainda há muita gente que sabe que há Natal mas que mora muito longe... 

ONDE NÃO MORA O NATAL 

A casa da Dª. Micas ficava ao fundo da rua apertada da sua terra de sempre. A aldeia da Boavista. Por ironia do destino ao fundo da rua não havia nem boa vista …nem nada… 

Quando se abria a porta da velha casa os cheiros a mofo, a podridão, a miséria batiam-nos violentamente. 

Passada a ombreira da velha porta entrava-se num mundo de odores, que se entranhavam rapidamente nas nossas roupas. Talvez até mais fundo. Na nossa pele, no nosso coração, na nossa alma… 

Os 92 anos mirrados da Dª. Micas, que estava lá ao fundo, na sua cama obrigavam-nos – sem respirar fundo – a um esforço suplementar para sorrir e dizer “bom dia”. 

Porque a Dª. Micas nas suas longas horas de solidão esperava pela chegada da senhora do “apoio domiciliário”…há que tempos. 

Ia ter o seu tempo de companhia e de “higiene”, palavra quase absurda naquele espaço em adiantado estado de pobreza, de miséria, onde o mau cheiro se sobrepunha a tudo. 

A antiga casa da velha aldeia tinha duas salas e um simulacro de cozinha, com uma pequena lareira e uma chaminé. 

A Dª. Micas tinha 3 filhos que tenham decidido revestir o interior da chaminé com plásticos negros. Mas em relação às paredes da sala tinham sido mais imaginativos. As 4 paredes estavam “decoradas” com papel de embrulho…com palhaços! O aspecto final era difícil de classificar. Palhaços amarelecidos…a sorrir ali…naquele local. 

A intenção até podia ter sido boa – e vamos acreditar que sim – mas que destoava um bocado…destoava! 

Acabados os cuidados de “higiene” a Dª. Micas ficava sentada num velho cadeirão. Envolta por um velho lençol que parecia “amarrá-la” mas que servia para não se desequilibrar e cair. Um dos filhos, no final do seu dia de trabalho, arranjaria um bocadinho para passar por sua casa e deitá-la. Onde ficaria a dormitar e à espera da visita do dia seguinte da senhora do “apoio domiciliário”… 

E o que a Dª. Micas dizia dos seus filhos? Defendia-as com “unhas e dentes” e dizia que eram “bons filhos”. 

Fechada a porta quem saía trazia os cheiros. De uma casa velha, com palhaços a forrar paredes sem tempo. A rua estreita subia até se ver a Boavista. E os vales circundantes com o pinhal de Leiria lá muito ao fundo. 

Será que era lá ao longe, para lá das alturas do Monte de São Bartolomeu, que morava o Natal? 

Ali, na velha casa da Dª. Micas, não era com certeza. E não estávamos no fim do mundo. 

Alcobaça, com o seu Mosteiro Património Mundial, e com as suas ruas com enfeites de Natal, estava a meia dúzia de minutos… De carro. 

Amanhã é outro dia. Para se fazerem as últimas compras e para desejar um “Feliz Natal”. 

Boas Festas. 
JERO 
Fur Mil da CCAÇ 675 
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Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em:

22 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P9251: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (5): Mensagens de Albino Silva, José Mussá Biai e Tabanca de Matosinhos