Memórias boas da minha guerra
30 - O Jorge Ribeiro era um “gentleman”
Espinho, fora da época balnear, era uma espécie de aldeia grande onde nada faltava e onde se vivia aparentemente bem. Então, a praia estava sempre livre, os cafés sempre abertos, as lojas (modernas!), o Casino, os cinemas, os restaurantes e tascos também. Por isso, Espinho era muito frequentado pelos jovens das povoações vizinhas, que prolongavam desta forma as saudosas conquistas de verão e, também, pelos mais idosos que “arrastavam” consigo as famílias para se descontraírem. Enquanto os maridos se concentravam nos tascos para as várias “provas”, as esposas passeavam de montra em montra, fazendo contas para mais uns pequenos “investimentos” no guarda-roupa. Entretanto, os filhos divertiam-se (supostamente) próximo da avenida e as mães, já bem instaladas nas esplanadas, bebiam chá frio, servido de requintados bules de porcelana, acompanhado de guloseimas. Assim, iam esperando o regresso dos “provadores” retardados.
O regresso a casa era, naturalmente, mais difícil devido ao excesso das “provas” (normalmente referidas como encontros de interesse comercial com clientes ou pessoas de influência proveitosa) e ao excesso de chá frio. Os filhos (normalmente filhas) acumulavam mais algumas histórias de namoricos ou capítulos de um romance que pretendiam tomasse a direcção do... altar.
Como eu vivia a cerca de 8 quilómetros, gostava muito do mar e daquele ambiente cosmopolita, também dava tudo para ir a Espinho. Inicialmente, eu e os meus amigos, esforçávamo-nos para arranjar boleias na ida e, assim, garantirmos, com alguma segurança, o regresso. Muitas vezes, perdíamos mais tempo nestas tarefas do que na desejada estadia.
Na foto, a partir da esquerda: Ribeiro, Rita, Piteira e Silva
Conheci o Jorge Ribeiro em Vendas Novas durante o Curso de Sargentos Milicianos. Como éramos poucos “cá do Norte”, não foi difícil descobri-lo dentro do grupo dos “morcões”. Como era de Guimarães, também tinha “a pronúncia do Norte”.
Ele era um Senhor. Pose (quase) aristocrática, de relacionamento fino, bastante educado e muito ponderado. Sempre limpinho e bem passado a ferro, fumava com estilo, e aparentava uma certa independência financeira.
Mais tarde caímos em Espinho (Paramos), no GACA-3, a colaborar na formação (de recrutas), em várias “fornadas de carne para canhão”. A aprendizagem considerada essencial era pôr os magalas a desfilar no seu juramento de bandeira. O trabalho dos graduados era, depois, avaliado essencialmente pela demonstração de “cagança” exibida pelo seu grupo no respectivo desfile.
Era quase o início do verão de 1966. Sempre que estávamos livres, corríamos para Espinho, onde o ambiente balnear era já bastante atractivo. Como ele era um jogador de xadrês de topo, a nível nacional, sentia necessidade de prática continuada. Como não tinha com quem jogar, incentivava-me a aprender e a enfrentá-lo, segundo os seus ensinamentos. Cheguei a segurar-me até aos 10/12 lances.
Depois, era só penar.
Silva vai ao banho
Num desses serões encontrei a Lenita, uma vizinha que estava a estudar em Espinho, hospedada em casa particular. Estava acompanhada da Geninha, uma amiga dela, de Espinho. Enquanto que a Lenita, bastante vivida, já estava comprometida com um rapaz que estava em Moçambique, a Geninha era mais jovem e inexperiente nestas coisas de relacionamentos amorosos...
Convivemos em Espinho, onde a maior parte das vezes era usada a clássica “estratégia” de “vamos ver a sardinha a saltar” que consistia em visitar a zona dos pescadores (extremo sul) para ver a labuta na recolha das redes, puxadas por bois, que era um espectáculo!
Esta era uma pequena deslocação da “zona controlada”, que as mães toleravam. O “problema” é que, com aquela excitação, aliada ao desejo de conquista, terminava, muitas vezes com um “pequeno afastamento” até às dunas, que se seguiam. E não demorou muito tempo a seguirmos todo esse percurso.
A jovem Geninha, sem ser uma sereia daquelas de deslumbrar o picadeiro da avenida, não deixava de ser uma mocetona. Aloirada, sardenta e de olhos verdes, atraía bastante. Mas, o que a fazia destacar mais era um bom par de mamas, bem arredondadas e firmes, que causavam os mais atrevidos olhares e os mais pecaminosos pensamentos. Talvez por isso e porque a sua família a protegia bastante, a miúda retraia-se muito no seu relacionamento.
Enquanto o Ribeiro me fazia o favor de acompanhar a “comprometida” Lenita, eu lá me ia entusiasmando não só com os olhos verdes da Geninha mas, para ser franco, cada vez mais obcecado pelo escultural e sagrado “par de jóias”. Logo que tropeçámos nas dunas, pus em prática todos os predicados copiados do Clarke Gable, do RocK Hudson, do Burt Lancaster e do Rodolfo Valentino. Porém, por mais que me esforçasse, ela não afastava os cotovelos da “área de investimento”. Foram momentos de muitos risinhos e gritinhos abafados, mas também de muita luta. E como nestas coisas do amor, não se deve forçar, o escasso tempo disponível terminou rapidamente com um grito da Lenita, aflita com o nosso desaparecimento do seu campo visual.
Passaram-se uns dias, sem que eu mostrasse entusiasmo na companhia da Geninha. Apenas demos um pequeno passeio na direcção da Praia Azul, por detrás da Piscina. E foi nessa altura que surpreendi o Ribeiro e a Lenita que se derretiam em “marmelada”. Logo que se encontrou comigo a sós, ela desculpou-se:
- Ele está para lá para Moçambique e não vai passar sem fazer umas “coisas”. Eu tenho o mesmo direito de me ir divertindo.
A Lenita como merecia toda a confiança da família da Geninha, assumiu a responsabilidade de a levar para sua casa em Feirães, para passar um fim-de-semana. O que ninguém imaginava era que as duas amigas se disporiam a ir para o Porto passar a noitada de S. João.
Estacionámos o carro em frente à cervejaria da CUF, mesmo junto das bombas de gasolina. Dali seguimos para a Baixa e subimos a Rua de Sto. António, também conhecida pela Rua 31 de Janeiro como homenagem aos revoltosos do Porto, ali vencidos em 1891…
Cerca da meia-noite e na Rua Sta. Catarina já era um turbilhão de gente a descer e outro a subir. E com a entrada dos que subiam a Rua de Stº António, as correntes misturavam-se e provocavam encontros e desencontros forçados.
O Ribeiro ia na frente e eu atrás, presos pelas mãos. Eu conhecia aquilo de anos anteriores mas, como costumava ir “desacompanhado”, não senti problemas. Porém, desta vez, quando me apercebi de tanta gente a “ajudar”, puxando pela Geninha, dei tudo para não a largar. O problema é que os gajos empurravam-me e eu fiquei “em suspensão” na corrente que descia.
Já eram cerca das 3 horas da manhã quando os encontrei de novo. Estavam sentados nos degraus da igreja de Santo Ildefonso, ali a... pouco mais de 50 metros. Tentei animá-los e apontei o objectivo: sardinhas e caldo verde nas Fontaínhas (zona mais escura e mais romântica...).
Seguimos pela “corrente” da Batalha e, logo ali, frente à Messe de Oficiais e, apesar de convicto que a cena não se repetiria, voltei a ficar isolado. Incrível! Ainda os procurei durante mais de uma hora, mas em vão. Cansado e com os pés pisados, vim para junto do carro, onde os esperei até cerca das 7 horas! Já era dia.
Chegaram esgotados e a cambalear, a queixarem-se de dores nos pés. Deitei os olhos às mamas da Geninha, bem guarnecidas por uma fina camisola branca com duas flores dilatadas com a pressão interior, e pareceu-me rever ainda a quantidade de mãos compridas e dedos esticados a apalpá-las selvaticamente. Então ela, olhando candidamente para um vasinho de manjerico, que trazia, disse:
- Nunca mais venho ao S.João.
- Eu também não. Juro! – complementei.
E o Ribeiro confessou-me baixinho:
- Eu nunca casarei com uma mulher que tenha ido ao S. João do Porto.
Mais tarde, já em casa, ao mexer nos bolsos dei com uma pequena cartolina amarela, com a seguinte quadra:
Fui contig’ao S.João
Pronta pra me divertir
Com o pássaro na mão
Morcão, deixast’o fugir.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10186: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): O Floriano "Florita" e o tio que pescava