segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11981: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O Jorge Ribeiro era um "gentleman"

1. Em mensagem do dia 22 de Agosto de 2013, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta "boa memória da sua guerra", apimentada qb, mas com a chancela de qualidade "Silva da CART".


Memórias boas da minha guerra

30 - O Jorge Ribeiro era um “gentleman”

Espinho, fora da época balnear, era uma espécie de aldeia grande onde nada faltava e onde se vivia aparentemente bem. Então, a praia estava sempre livre, os cafés sempre abertos, as lojas (modernas!), o Casino, os cinemas, os restaurantes e tascos também. Por isso, Espinho era muito frequentado pelos jovens das povoações vizinhas, que prolongavam desta forma as saudosas conquistas de verão e, também, pelos mais idosos que “arrastavam” consigo as famílias para se descontraírem. Enquanto os maridos se concentravam nos tascos para as várias “provas”, as esposas passeavam de montra em montra, fazendo contas para mais uns pequenos “investimentos” no guarda-roupa. Entretanto, os filhos divertiam-se (supostamente) próximo da avenida e as mães, já bem instaladas nas esplanadas, bebiam chá frio, servido de requintados bules de porcelana, acompanhado de guloseimas. Assim, iam esperando o regresso dos “provadores” retardados.

O regresso a casa era, naturalmente, mais difícil devido ao excesso das “provas” (normalmente referidas como encontros de interesse comercial com clientes ou pessoas de influência proveitosa) e ao excesso de chá frio. Os filhos (normalmente filhas) acumulavam mais algumas histórias de namoricos ou capítulos de um romance que pretendiam tomasse a direcção do... altar.

Como eu vivia a cerca de 8 quilómetros, gostava muito do mar e daquele ambiente cosmopolita, também dava tudo para ir a Espinho. Inicialmente, eu e os meus amigos, esforçávamo-nos para arranjar boleias na ida e, assim, garantirmos, com alguma segurança, o regresso. Muitas vezes, perdíamos mais tempo nestas tarefas do que na desejada estadia.

Na foto, a partir da esquerda: Ribeiro, Rita, Piteira e Silva

Conheci o Jorge Ribeiro em Vendas Novas durante o Curso de Sargentos Milicianos. Como éramos poucos “cá do Norte”, não foi difícil descobri-lo dentro do grupo dos “morcões”. Como era de Guimarães, também tinha “a pronúncia do Norte”.

Ele era um Senhor. Pose (quase) aristocrática, de relacionamento fino, bastante educado e muito ponderado. Sempre limpinho e bem passado a ferro, fumava com estilo, e aparentava uma certa independência financeira.

Mais tarde caímos em Espinho (Paramos), no GACA-3, a colaborar na formação (de recrutas), em várias “fornadas de carne para canhão”. A aprendizagem considerada essencial era pôr os magalas a desfilar no seu juramento de bandeira. O trabalho dos graduados era, depois, avaliado essencialmente pela demonstração de “cagança” exibida pelo seu grupo no respectivo desfile.

Era quase o início do verão de 1966. Sempre que estávamos livres, corríamos para Espinho, onde o ambiente balnear era já bastante atractivo. Como ele era um jogador de xadrês de topo, a nível nacional, sentia necessidade de prática continuada. Como não tinha com quem jogar, incentivava-me a aprender e a enfrentá-lo, segundo os seus ensinamentos. Cheguei a segurar-me até aos 10/12 lances.
Depois, era só penar.

Silva vai ao banho

Num desses serões encontrei a Lenita, uma vizinha que estava a estudar em Espinho, hospedada em casa particular. Estava acompanhada da Geninha, uma amiga dela, de Espinho. Enquanto que a Lenita, bastante vivida, já estava comprometida com um rapaz que estava em Moçambique, a Geninha era mais jovem e inexperiente nestas coisas de relacionamentos amorosos...

Convivemos em Espinho, onde a maior parte das vezes era usada a clássica “estratégia” de “vamos ver a sardinha a saltar” que consistia em visitar a zona dos pescadores (extremo sul) para ver a labuta na recolha das redes, puxadas por bois, que era um espectáculo!
Esta era uma pequena deslocação da “zona controlada”, que as mães toleravam. O “problema” é que, com aquela excitação, aliada ao desejo de conquista, terminava, muitas vezes com um “pequeno afastamento” até às dunas, que se seguiam. E não demorou muito tempo a seguirmos todo esse percurso.

A jovem Geninha, sem ser uma sereia daquelas de deslumbrar o picadeiro da avenida, não deixava de ser uma mocetona. Aloirada, sardenta e de olhos verdes, atraía bastante. Mas, o que a fazia destacar mais era um bom par de mamas, bem arredondadas e firmes, que causavam os mais atrevidos olhares e os mais pecaminosos pensamentos. Talvez por isso e porque a sua família a protegia bastante, a miúda retraia-se muito no seu relacionamento.

Enquanto o Ribeiro me fazia o favor de acompanhar a “comprometida” Lenita, eu lá me ia entusiasmando não só com os olhos verdes da Geninha mas, para ser franco, cada vez mais obcecado pelo escultural e sagrado “par de jóias”. Logo que tropeçámos nas dunas, pus em prática todos os predicados copiados do Clarke Gable, do RocK Hudson, do Burt Lancaster e do Rodolfo Valentino. Porém, por mais que me esforçasse, ela não afastava os cotovelos da “área de investimento”. Foram momentos de muitos risinhos e gritinhos abafados, mas também de muita luta. E como nestas coisas do amor, não se deve forçar, o escasso tempo disponível terminou rapidamente com um grito da Lenita, aflita com o nosso desaparecimento do seu campo visual.

Passaram-se uns dias, sem que eu mostrasse entusiasmo na companhia da Geninha. Apenas demos um pequeno passeio na direcção da Praia Azul, por detrás da Piscina. E foi nessa altura que surpreendi o Ribeiro e a Lenita que se derretiam em “marmelada”. Logo que se encontrou comigo a sós, ela desculpou-se:
- Ele está para lá para Moçambique e não vai passar sem fazer umas “coisas”. Eu tenho o mesmo direito de me ir divertindo.

A Lenita como merecia toda a confiança da família da Geninha, assumiu a responsabilidade de a levar para sua casa em Feirães, para passar um fim-de-semana. O que ninguém imaginava era que as duas amigas se disporiam a ir para o Porto passar a noitada de S. João.

Estacionámos o carro em frente à cervejaria da CUF, mesmo junto das bombas de gasolina. Dali seguimos para a Baixa e subimos a Rua de Sto. António, também conhecida pela Rua 31 de Janeiro como homenagem aos revoltosos do Porto, ali vencidos em 1891…

Cerca da meia-noite e na Rua Sta. Catarina já era um turbilhão de gente a descer e outro a subir. E com a entrada dos que subiam a Rua de Stº António, as correntes misturavam-se e provocavam encontros e desencontros forçados.

O Ribeiro ia na frente e eu atrás, presos pelas mãos. Eu conhecia aquilo de anos anteriores mas, como costumava ir “desacompanhado”, não senti problemas. Porém, desta vez, quando me apercebi de tanta gente a “ajudar”, puxando pela Geninha, dei tudo para não a largar. O problema é que os gajos empurravam-me e eu fiquei “em suspensão” na corrente que descia.

Já eram cerca das 3 horas da manhã quando os encontrei de novo. Estavam sentados nos degraus da igreja de Santo Ildefonso, ali a... pouco mais de 50 metros. Tentei animá-los e apontei o objectivo: sardinhas e caldo verde nas Fontaínhas (zona mais escura e mais romântica...).

Seguimos pela “corrente” da Batalha e, logo ali, frente à Messe de Oficiais e, apesar de convicto que a cena não se repetiria, voltei a ficar isolado. Incrível! Ainda os procurei durante mais de uma hora, mas em vão. Cansado e com os pés pisados, vim para junto do carro, onde os esperei até cerca das 7 horas! Já era dia.

Chegaram esgotados e a cambalear, a queixarem-se de dores nos pés. Deitei os olhos às mamas da Geninha, bem guarnecidas por uma fina camisola branca com duas flores dilatadas com a pressão interior, e pareceu-me rever ainda a quantidade de mãos compridas e dedos esticados a apalpá-las selvaticamente. Então ela, olhando candidamente para um vasinho de manjerico, que trazia, disse:
- Nunca mais venho ao S.João.
- Eu também não. Juro! – complementei.

E o Ribeiro confessou-me baixinho:
- Eu nunca casarei com uma mulher que tenha ido ao S. João do Porto.

Mais tarde, já em casa, ao mexer nos bolsos dei com uma pequena cartolina amarela, com a seguinte quadra:

Fui contig’ao S.João 
Pronta pra me divertir 
Com o pássaro na mão 
Morcão, deixast’o fugir.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10186: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): O Floriano "Florita" e o tio que pescava

Guiné 63/74 - P11980: Notas de leitura (514): "Misiones en Conflicto, La Habana, Washington y África, 1959-1976", por Piero Gleijeses (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo ao relato que o investigador Piero Gleijeses fez à presença cubana na Guiné-Bissau.
Cabral foi o único político africano que pareceu importante a Che Guevara.
A ajuda cubana materializou-se a nível de bolsa de estudo, abastecimentos básicos, formação militar e assistência médica, sobretudo quando Fidel Castro visita Conacri em 1972 move-o a necessidade de apoiar quem apoia o PAIGC, é hoje matéria inequívoca. A maior parte destes voluntários cubanos guardou as melhores recordações em ter combatido ao lado das formações do PAIGC.
É impossível estimar-se a importância do apoio cubano, mas sabe-se que foi determinante no campo da saúde e nas tarefas indispensáveis em termos da regulação de tiro em artilharia.

Um abraço do
Mário


Os cubanos na Guiné (2)

Beja Santos

“Misiones en Conflicto”, por Piero Gleijeses, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2007, é o livro que estamos presentemente a analisar e onde se carateriza a presença cubana na luta armada, a partir de 1966.

Acerca da assistência médica feita por cubanos, Luís Cabral escreveu na “Crónica da Libertação”: “Os cuidados médicos aos nossos combatentes e às populações das zonas libertadas alcançaram um nível inteiramente novo com a chegada dos primeiros médicos cubanos em 1966”. Não havia médicos guineenses, com a exceção do Dr. Baticã Ferreira, natural de Canchungo. Alguns enfermeiros guineenses aderiram à luta armada, mas em número insuficiente. Os médicos cubanos chegaram a acompanhar os combatentes, mas regra geral permaneciam nos hospitais improvisados, a população estimava-os muito. Mário Moutinho Pádua, médico português, trabalhava em Ziguinchor. Havia também um médico panamiano, Hugo Spadafora que trabalhou no interior da Guiné cerca de 9 meses, e mais outro, o jugoslavo Ivan Mihajlovic; e um outro mais, o doutor Binh, um professor vietnamita da Universidade de Hanoi.

Entre 1966 e 1974, houve, em média, 15 a 20 médicos enfermeiros cubanos que serviram no interior da Guiné e em Boké, na República da Guiné Conacri. A importância da sua contribuição é relevante, recorde-se que durante toda a guerra não excedeu o número de 12 os médicos não cubanos que prestaram serviço médico durante a guerra. É claro que se foram formando guineenses no decurso da guerra, como foi o caso de Paulo Medina, que se graduou em 1969 na Universidade Patrice Lumumba, de Moscovo. Foi Paulo Medina que informou Piero Gleijeses que durante a guerra se tinham formado oito médicos guineenses, todos eles em Moscovo. O PAIGC só passou a ter médicos guineenses a partir de 1968.

Tanto os médicos como os militares eram voluntários, de pele escura, como especificamente pedira Cabral. O que os motivava? Era a mística da guerra de guerrilhas, como um deles contou ao autor: “Sonhávamos com a revolução, desejávamos fazer parte dela. Eramos jovens e filhos de uma revolução”. Altruístas e aventureiros, quiseram ir para o estrangeiro defender a sua própria revolução. Não podiam receber elogios públicos em Cuba. Partiam sabendo que a sua história iria permanecer em segredo. Não ganharam medalhas nem recompensas materiais. Uma vez regressados, não podiam contar as suas façanhas, era este o pacto que tinham subscrito, diziam sempre que tinham estado a estudar na União Soviética. Houve uma cubana que esteve na Guiné-Bissau, Concepción Dumois, que ali passou 4 ou 5 meses, em 1967. Foi a primeira mulher cubana que combateu em África.

A vida destes voluntários era muito austera. Tinha acesso a comida enlatada, arroz, açúcar, feijão, óleo e azeite e até recebiam algum dinheiro para comprar alimentos frescos. Mas quando a comida chegava, era sempre repartida com outros guineenses. Um deles tentou fazer batota com guerrilheiros muçulmanos, disse-lhes que as conservas eram de carne de porco, mas eles replicaram que não havia problema, Alá não podia ver dentro da mata tão fechada… A média de permanência destes voluntários rondava os 18 meses. O local de descanso era Boké, uma pequena povoação de 2 a 3 mil habitantes.

A Guiné-Bissau era o único lugar do mundo em que combatiam os cubanos, em Maio de 1972, quando Fidel Castro visitou pela primeira vez África. Era também o único lugar do continente em que um movimento guerrilheiro desafiava com sucesso um regime colonial. Nesse tempo, a CIA escrevia que num futuro relativamente próximo o PAIGC poderia ser o primeiro movimento de libertação subsariano a ganhar uma guerra contra um regime branco. Castro esteve na Guiné-Conacri e Argélia, a caminho da Europa Oriental e da URSS. A Argélia era importante para restabelecer vínculos estreitos após a saída do poder de Ben Bella, a Guiné-Conacri era a retaguarda indispensável do PAIGC. Castro garantiu apoio a Sékou Touré, em Agosto desse ano partiram para Havana 133 estudantes, no ano seguinte mais 100.

Ao tempo em que Castro visita Conacri o PAIGC ganhava internacionalmente mais terreno, basta pensar na visita da missão especial do Comité de Descolonização das Nações Unidas. Em 14 de Novembro desse ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o PAIGC como único representante legítimo. A situação tornara-se irreversível quando em 2 de Novembro de 1973 a mesma Assembleia aprovou uma resolução condenando a “ocupação ilegal pelas foças militares portuguesas de alguns setores da República da Guiné-Bissau e os atos de agressão cometidos contra o povo da República”. Um militar cubano escreveu no início de 1974: “Prevemos que os portugueses não estão em condições de resistir a uma ofensiva do PAIGC por mais de um ano”.

Refletindo sobre o PAIGC vitorioso, o autor refere o rigor de apreciação que Cabral fazia sobre os apoios que recebia. Uma visita que ele fez em 1972 à RDA disse sem papas na língua: “A Suécia ajuda-nos mais que um bom número de países socialistas juntos”. No entanto, foi o bloco soviético que lhe ofereceu a ajuda decisiva: armas e munições, bolsas de estudo, apoio material e político. Cuba foi igualmente um fornecedor de treino militar, abastecimentos e bolsas de estudo. E deu-lhes combatentes e médicos, como o jornal do PAIGC sempre referiu: “Nos momentos mais difíceis da nossa guerra de libertação, alguns dos melhores filhos da nação cubana estiveram junto dos nossos guerrilheiros, não se pouparam a sacrifícios para que a liberdade e a independência chegasse ao nosso país”. Como observa o autor, o PAIGC não era um movimento marxista e os seus líderes decidiram que a Guiné-Bissau iria figurar entre os países não-alinhados.

A União Soviética começou a ajudar o PAIGC em 1962. A presença militar cubana, a partir de 1966, complementou e ampliou o aporte soviético, os cubanos estiveram na preparação das armas de tecnologia que cada vez mais complexa que eram enviadas pela URSS. Mas na Guiné-Bissau, Cuba seguia a sua própria política. As origens da relação de Cuba com o PAIGC nada tiveram a ver com a União Soviética, eram o resultado da viagem de Guevara ao continente africano, foram intensificadas pela presença de Cabral na Conferência Trilateral. Guevara ficara desiludido com o que vira no Zaire e mesmo com o MPLA. Cuba via na luta contra as colónias portuguesas um caminho para enfraquecer o Ocidente e trazer-lhe novos amigos. Morreram 9 cubanos na guerra da Guiné e 1 foi capturado (capitão Rodríguez Peralta). Do mesmo modo que Havana não obedecia à pressão soviética enquanto ajudava o PAIGC, também os voluntários cubanos viveram a guerrilha pela sua própria determinação. O autor regista depoimentos de antigos combatentes cubanos que se diziam enamorados pelas gentes e o território.
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Nota do editor

Vd. poste de 23 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11969: Notas de leitura (513): "Misiones en Conflicto, La Habana, Washington y África, 1959-1976", por Piero Gleijeses (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11979: Memória dos lugares (246): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (2) (António Teixeira)

1. Dizia-nos o nosso camarada António Teixeira (ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda; 1971/73) na sua mensagem de 24 de Agosto de 2013:

O PAIGC E A INSTRUÇAO PRIMARIA*

Durante a minha "estadia" na CCaç 6, em Bedanda, e numa das várias operações que fizemos em pleno Cantanhês, numa altura em que se resolveu abrir uma estrada entre Cadique e Guilege (que nunca chegou a acabar), de forma a desbaratar a mata do Cantanhês, onde o PAIGC "passeava" e tinha diversas bases logisticas, numa dessas operações dizia eu, assim de repente, demo-nos em pleno centro duma dessas bases, na altura já abandonada, embora há muito pouco tempo.
Nesse local, onde havia uma escola e uma espécie de hospital de campanha, foi recolhido algum material, entre eles um livro de instrução da 1ª classe.

Hoje, ao remexer em algumas das minhas memórias, encontrei esse livro. Não perdi tempo e digitalizei algumas das suas páginas, onde é por demais evidente, a propaganda politica e pré militar que era incutida às suas crianças.

Assim, e sem mais delongas, quero com vocês partilhar esse achado. Em algumas das páginas sublinhei certas palavras ou frases que achei importante.
Finalmente podem reparar na conta capa, que este livro foi feito em Uppsala, na Suécia.

Um grande abraço a todos
António Teixeira











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Nota do editor

(*) Vd. poste anterior de 25 de Agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11977: Memória dos lugares (245): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (1) (António Teixeira)

domingo, 25 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

4 - O DIACHO DA CICATRIZ

E quando contei o acontecido ao meu "velho" ele apenas disse, lá do alto da sua sabedoria:
- Então não és tu, quem está sempre a ajudar os mais pobres do que nós? - E não é ao marido duma dessas, que dás as tuas roupas, mesmo já gastas?

Esclareço que o meu PAI era Homem trabalhador, Técnico Superior na área da construção civil e sem a sua mestria não se fariam ou consertavam casas.
Várias vezes o vi a preparar a massa de cimento, a que adicionava areia qb e água, que misturava com a enxada e a força dos seus braços. A pasta daí resultante, colava os tijolos um a um. Feita, pegava nela em baldes de lata, que transportava aos ombros e vertia junto aos pedreiros.

E estes sempre a pedir mais:
- Ó Manecas traz massa...
- Se queres pressas, vem fazê-la... porra.(não era bem esse o termo que utilizava, só que a minha "superior" cultura não me permite dizer a verdadeira palavra... começada por éfe).
Também caiava casas e ensinou a conduzir, pois que tinha sido condutor na tropa.

No dia em que regressei da minha Guiné, fez questão de fazer uma festa e convidar os que por mim lhe haviam perguntado e até o Senhor Padre Frederico esteve presente, vejam bem !!!
Comeram-se uns barbos apanhados à rede e à socapa, no rio Sôr, umas galinhas assadas na brasa de lenha de azinheira e até uns coelhos mansos, à caçadora, (com sabor a bravos que lhes era e é dado pela carqueja) nascidos e criados à moda antiga lá na capoeira do nosso quintal, onde e para além disso, também tínhamos umas rolas que tão boas eram, fritas em banha.

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Aqui na Enciclopédia que é e será o nosso Blogue, tenho aprendido (e só vou a meio)... muito e devido às publicações de quem por aqui vai dissertando.
Há quem opine, há quem descreva o que passou o que não é fácil... há quem discorde e quem concorde com a guerra, QUE NÃO FOMOS NÓS A INICIAR e também os que nunca desembainharam a espada e dizem o pior dos piores dos que lhe protegeram a vida.

Eu que e apesar de não ter sido voluntário, mas obrigado, (e como eu mais um milhão dos jovens que nunca admitimos a deserção embora o pudéssemos ter feito), apenas cumpri o Dever imposto e com muito gosto.
O que ansiava era regressar para junto das família que deixara aqui e tive sempre presente a frase um Senhor chamado De Gaulle, (pessoa que sendo tão alta, eu nunca convidaria para apanhar figos comigo) qu'até chefiou os destinos da França e que quando da partida das tropas francesas para a Argélia, disse:
- Na guerra, ou matas ou morres.

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E A GUINÉ... SEMPRE PRESENTE

Ao proceder a uns arrumos de caixotes de pau feitos, cheios de teias de aranhas (e até uma centopeia com mais ou menos 15 centímetros de lá saltou e que esmaguei impediosamente com o pé esquerdo pois que o direito mal mexe) encontrei duas fantásticas peças, sendo uma delas importante e de tal maneira me salvou de problemas, que julgo ter de lhe dedicar umas escassa palavras.

Então lá vai:

Quando pediram à minha CCAÇ 1422, para salvar a Pátria e nos colocaram no K3, foram-nos distribuídas armas novas em folha, desde a G3 especial distribuída aos graduados que era aquela, qu'até tinha bipé e fazia de metralhadora, e também virgens eram, os morteiros 60 de origem espanhola e que se revelaram falsos com'ó caraças.
Para quem não saiba, particularmente para os que nunca foram ao mato (mas que tão importantes foram, porque uma guerra sem uma boa retaguarda, não ata nem desata) e nem sequer usaram armas ou meteram uma bala na câmara (não deviam era orgulhar-se disso e há quem o faça) para esses sempre vos digo que o morteiro era:

Assim uma espécie de tubo, fechado num dos lados, e que fazia atirar para cima, uma granada (uma espécie de supositório, mas muito maior) depois de a pousarmos nas bordas desse mesmo tubo e a largarmos e no lado que estava aberto, naturalmente.
Ao chegar lá abaixo e já devidamente programada com uns adicionais para que fosse cair no chão e no local que pretendíamos, ou seja a 100 e por aí fora, metros, ao chegar lá abaixo, repito e ao bater num pinchavelho mais conhecido por percutor, ela (a granada) saía disparada que nem ginjas e lá ia na sua nobre missão de nos defender, qual remédio contra melgas, mosquitos e outros parasitas incomodativos assim "tipo" o IN.

Ao sair provocava um típico ruído, tal e qual como quando descalçamos um sapato apertado... daqueles que fazem calos no dedo mindinho. Era pressuposto fazer tiro a tiro e nunca tiro de rajada.
Devia estar assente em qualquer coisa rija mas não o prato base, qu'era pesado e não levávamos e por isso usávamos o capacete, embora nas bolanhas de pouco servisse, pois que mesmo assim acabava por se enterrar naquela porcaria lamacenta.

Pois e de acordo como lá em cima referi "falsos com'ó caraças", quis eu dizer que o percutor, que nos modelos que usara em treinos na Metrópole era b'óptimo, este, partia à terceira granada disparada, quando não logo à primeira, o que obstaculizava a eficiência da defesa, dado que tínhamos de mudar o dito cujo, usando para isso a tal peça com 10 centímetros de comprimento, que servia para desatarraxar o fundo e colocar um novo e que encontrei, guardei e a quem devo se calhar o facto de estar ainda por aqui.

Vai acompanhar-me d'ora em diante, aqui na minha pasta qu'uso a tiracolo.


FALEI-VOS DA MINHA AMADA CHAVE DE FENDAS.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11951: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (3): O bi-fascita da cicatriz

Guiné 63/74 - P11977: Memória dos lugares (245): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (1) (António Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada António Teixeira (ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda; 1971/73) com data de 24 de Agosto de 2013:

O PAIGC E A INSTRUÇAO PRIMARIA

Durante a minha "estadia" na CCaç 6, em Bedanda, e numa das várias operações que fizemos em pleno Cantanhês, numa altura em que se resolveu abrir uma estrada entre Cadique e Guilege (que nunca chegou a acabar), de forma a desbaratar a mata do Cantanhês, onde o PAIGC "passeava" e tinha diversas bases logisticas, numa dessas operações dizia eu, assim de repente, demo-nos em pleno centro duma dessas bases, na altura já abandonada, embora há muito pouco tempo.
Nesse local, onde havia uma escola e uma espécie de hospital de campanha, foi recolhido algum material, entre eles um livro de instrução da 1ª classe.

Hoje, ao remexer em algumas das minhas memórias, encontrei esse livro. Não perdi tempo e digitalizei algumas das suas páginas, onde é por demais evidente, a propaganda politica e pré militar que era incutida às suas crianças.

Assim, e sem mais delongas, quero com vocês partilhar esse achado. Em algumas das páginas sublinhei certas palavras ou frases que achei importante.
Finalmente podem reparar na conta capa, que este livro foi feito em Uppsala, na Suécia.

Um grande abraço a todos
António Teixeira














(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11965: Memória dos lugares (244): Hospital Militar de Bissau: não há duas memórias iguais (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11976: Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira) (13): A despedida... Temos de voltar!


Foto 15 > Os veteranos guineenses que lutaram ao lado de Portugal que não dão a cara, mas o coração.



Foto 11 > Os velhos amigos que fomos encontrando


 Foto 2 > Os trilhos que outrora palmilhamos



Foto 14 > Vestígios do passado


Foto 3 > A Fatma de Farosadjuma, ladeadas pelas nossas "bajudas"


Foto 5 > A Satu, a nossa cozinheira de Iemberém


Foto 4 > As belezas da Natureza que correm o risco de desaparecerem.


 Foto 6 > O Francisco Silva mais um antigo guerrilheiro do PAIGC, procurando  localizar pontos de guerra comuns.


Foto 7 > Mulheres que procuram os caminhos de desenvolvimento


Foto 8 > Os jovens que acreditam que são os donos do futuro


Foto 9 > As populações que nos receberam com carinho (1)


Foto 10 > As populações que nos receberam com carinho (2)



Foto 11 > As crianças que sonham com o futuro


Foto 12 > O último pequeno almoço em Varela


Foto 13 > A vergonha de uma classe política que permite o assalto e desbaste da riqueza piscícola


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: LG]



1. Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau (30 de Abril - 12 de maio de 2013) - Parte XIII

por José Teixeira

O José Teixeira é membro sénior da Tabanca Grande e ativista solidário da Tabanca Pequena, ONGD, de Matosinhos; partiu de Casablanca, de avião, e chegou a Bissau, já na madrugada do dia 30 de abril de 2013; companheiros de viagem: a esposa Armanda; o Francisco Silva, e esposa, Elisabete.

No dia seguinte, 1 de maio, o grupo seguiu bem cedo para o sul, com pernoita no Saltinho e tendo Iemberém como destino final, aonde chegaram no dia 2, 5ª feira. Ba 1ª parte da viagem passaram por Jugudul, Xitole, Saltinho, Contabane Buba e Quebo.

No dia 3 de maio, 6ª feira, visitam Iemberém, a mata di Cantanhez e Farim do Cantanhez; no dia 4, sábado, estão em Cabedú, Cauntchinqué e Catesse; 5, domingo, vão de Iemberém, onde estavam hospedados, visitar o Núcleo Museológico de Guileje, e partem depois para o Xitole, convidados para um casamento ] (*)...

É desse evento que trata a 8ª crónica: os nossos viajantes regressam a Bissau, depois de uma tarde passada no Xitole para participar na festa de casamento de uma filha de um fula que, em jovem, era empregado na messe de sargentos e que tinha reconhecido o Silva, no seu regresso ao Xitole. A crónica nº 7 foi justamente dedicada ao emocionante reencontro [, em 1 de maio, ] com o passado, por parte do ex-alf mil Franscisco Silva, que esteve no Xitole, ao tempo da CART 3942 / BART 3873 (1971/73), antes de ir comandar o Pel Caç Nat 51, Jumbembem, em meados de 1973,

A crónica nº 9, corresponde ao dia 6 de maio: os nossos viajantes foram até Farim e regressaram a Bissau. já que o Francisco Silva, mesmo de férias, teve de fazer uma intervenção cirúrgica, a uma criança que esperava um milagroso ortopedista há mais de um ano! Na crónia nº 10, descreve-se a viagem até Varela, em 7 de maio. No dia 8, o grupo vai, de barco, até Elalab. Estamos em pleno chão felupe.

A crónica nº 12 é penúltima crónica do Zé Teixeira... Corresponde ao dia 9 de maio de 2013, passado na região de Cacheu, numa visita a Djufunco... A última crónica  respeota ao dia 10 maio, descanso em Varela;, seguido do regresso a Bissau, a 11, e embarque de madrugada para Portugal, de volta a casa. É a crónica da despedida e da promessa de voltar em breve.


2. Parte XIII (e última): 10 e 11  de maio de 2013,  descanso em Varela, regresso a Bissau. Despedida


Depois de uns dias onde as emoções choveram em catadupa, chegou o tempo descontrair, rendidos á beleza da praia de Varela com as suas águas mornas e sol acolhedor.

A chegada a Bissau com uma aterragem um tanto turbulenta que supomos ser a consequência de um tapete de alcatrão demasiado gasto. O calor sufocante ao abrir da porta do avião, como que as boas vindas a esta África. O choque de encontrar uma cidade que é um amontoado de gente, que não se sente gente, de tão pobre que é. Automóveis velhos correndo lado a lado com os últimos modelos de jipes de alta cilindrada, onde figuras de colarinho branco se passeiam alheios à extrema miséria que os rodeia. Velhas moranças de adobe e chapa confundem-se com lindas e faustosas moradias. 

Enfim, a cidade de Bissau, perdida no tempo que passou, onde a esperança de tanta gente que a ela acorreu na busca de melhores dias se perdeu, deixando-os ali sem destino e sem futuro. Cidade, onde a vida se esgota na luta pela sobrevivência. Cidade onde não há tempo para sonhar…

Partimos para o Sul à procura do povo da Guiné que habita e tira da terra o seu sustento. Povo perdido e esquecido. Atravessamos tabancas e cidades, onde o progresso de esqueceu de entrar, ou foi impedido. Visitamos os templos desativados da guerra, que nos obrigaram a fazer, na sua maioria destruídos e abandonados. Calcorreamos com nostalgia as picadas que noutros tempos faziam tremer os mais corajosos. Recordamos os bons e maus momentos ali vividos. Cruzamo-nos com amigos e inimigos de outrora. Dum tempo que teima em desaparecer das nossas mentes. 

Fomos recebidos de coração aberto. De tudo se falou um pouco. Os amigos recordavam as peripécias algumas de fim feliz, outras nem tanto. Os antigos inimigos procuravam entabular conversa com os “tugas” que os visitam e localizar os possíveis encontros em que estivemos frente e frente na luta do “matas ou morres” para contar como foi a sua participação nesta ou naquela contenda em que nos cruzamos. Eles também nos tinham medo, também nos evitavam como nós a eles. Também choraram os seus mortos e feridos. Também tentam esquecer a guerra que viverem e não conseguem. Também sentem que têm direitos como lutadores e libertadores da Pátria. Nota-se também neles um sentimento de que foram traídos e abandonados pelos novos “senhores da terra”.

Situação mais ingrata estão os ex-combatentes ligados ao Exército Português. “Nasci português, combati por Portugal e fui abandonado. Eu era português, eu sou português e guineense”. Isto foi dito com orgulho por 1º cabo africano das fileiras do exército português encontrado algures no interior da Guiné-Bissau. Durante muitos anos foram rejeitados, perseguidos, desprezados pelas autoridades “vencedoras”. Os que sobreviveram estão integrados na sociedade, mas esta mágoa de sentirem que foram abandonados por Portugal está bem patente nas suas conversas. Creio que os laços familiares e os conhecimentos adquiridos na sua ligação com a tropa branca foram um fator de união.

No Xitole acolheram-nos como família. Ali vivemos em festa o Primeiro de Maio, dia do trabalhador. Ali voltamos como convidados de honra para participar na festa do amor, o casamento de dois jovens fulas, apaixonados que felizmente não sabem o que é uma guerra. Mergulhamos no meio do seu povo e sentimo-nos bem, tal como outrora, sem medos, sem ressentimentos. Com carinho e afeto, como irmãos que queremos continuar a ser.

Aqui, no Saltinho, em Aldeia Formosa e em Mampatá e em toda a parte por onde passamos “choveram” os abraços sentidos de uma amizade gerada debaixo do fogo das Kalash e que perdura como alimento para a nossa velhice de veteranos da guerra. Pretos e brancos irmanados pelo sangue derramado e sentido do dever cumprido. Os eternos esquecidos do poder (político e económico) que nos “manipulou” para seu interesse e rapidamente nos pôs de parte quando decidiu acabar com a guerra. Choca-me profundamente ouvir os meus irmãos africanos dizer: eu fui português; ou sou português da Guiné; eu fui abandonado por Portugal. Triste realidade do fim do dito império que marcou toda a nossa geração e continua a marcar pelo sofrimento muita gente da “metrópole” e da Guiné.

Em Ponte Balana, Gandembel e Guileje, pontos marcantes do “carreiro da morte”,  hoje felizmente transformado em carreiro da vida,  revivemos o fantasma da guerra no mais violento do seu ser, tão bem espelhado no Museu de Guiledge, que merece no mínimo uma visita de quantos passaram pela Guiné, nos anos de 1963 a 1974.

Embrenhamo-nos na “terrífica” mata do Cantanhez e lamentamos o desbaste abusivo da floresta virgem, onde outrora o IN viajava de Cabedú até Buba em pleno dia, sem medo do “Já passou” (o temido Fiat da FAP), tal era a cobertura florestal, como me afirmou um antigo guerrilheiro em 2008. Palmilhamos com emoção parte do que resta dessa imensa floresta, o que nos fez voltar mais uma vez aos tempos da nossa juventude, aqui perdida.

Em Iemberém, Cabedú, Cautchinké e Catesse, procuramos dar força ao sonho de melhores dias a uma população jovem que se quer deixar prender à sua terra natal e precisa de alguém que os apoie e estimule a continuar os seus projeto.

Voltamo-os para Norte e viajamos até Farim na esperança de nos cruzarmos de novo com o tempo passado.

Perdemo-nos em Bissau, à procura da cidade que um dia conhecemos. Encontramos cacos e remendos, lixo e miséria à mistura com sinais de grande riqueza mal gerida, proveito de alguns felizardos e oportunistas. Casas que já foram “senhoras casas” da época colonial, agora de cara triste e deslavada. Quelhos poeirentos e sujos que já foram ruas. Candeeiros que já iluminaram essas ruas. Continuam firmes no seu posto, sem luz, sem fios sequer, para a transportar. E um povo como a formiga num corre corre, em busca do pão para hoje, pois,  para amanhã, Deus o dará.

Fugimos rapidamente de novo para o Norte, para Varela, onde o Pepito nos acolheu, como irmãos na sua casa. Ele ficou em Bissau evolvido no trabalho que tem em mãos de ajudar o seu povo na senda do desenvolvimento, mas o seu espírito viajou connosco. Perdemo-nos no meio das crianças, mulheres e homens felupes de Elalab e Djufunko, com a sua alegria, as suas danças e cantares os seus sonhos e desejos de uma vida melhor. Entramos dentro dos seus segredos, sua forma ancestral de ser e estar na vida, pela mão dos seus Régulos. Conhecemos um pouco da sua história. Rica como toda a história do homem.

Já o sol ia alto quando nos sentamos debaixo do cajueiro para saborear o pequeno-almoço que a incansável Satu nos preparou. Pão, leite, compotas, bananas e caju para começar bem o dia. O Bemba ali estava, atento às nossas manobras para nos conduzir até à praia. Que praia! Um areal a perder de vista, um mar calmo e sossegado, sem uma réstia de vento, uma água na temperatura ideal e convidativa. A manchar terrivelmente o ambiente, a pesca clandestina fomentada por interesses estrangeiros. As autoridades políticas atuais, segundo se houve dizer por aqui, estão comprometidas neste esquema.

Pequenos botes descarregaram em pleno areal uma qualidade de peixe, tipo cachalote que ali mesmo é morto à cacetada, aberto ao meio e espalmado para ser fumado e enviado clandestinamente para o Senegal, segundo fontes locais. Mais um crime de lesa-Pátria e lesa-natureza, pois, tanto quanto nos apercebemos, tratava-se de peixes bebés.

O Francisco adorou a qualidade da água e não se cansou de mergulhar. A Elizabete, sua esposa, acompanhou-o enquanto a Armanda foi com o Bemba à Tabanca de Baceor e eu fiquei numa sombrinha a saborear as belezas naturais do local.

Regressados a casa com uma fome de bradar aos céus, tínhamos mais uma vez galinha para o almoço, divinalmente preparada pela Satu, regada com cerveja fresquinha. Para a sobremesa, como de costume, tivemos mango, caju e banana.

A seguir ao almoço fomos fazer uma visita guiada à tabanca de Varela como “velho” Kissimá como cicerone. Depois de um bom e prolongado mergulho nas águas cálidas do Atlântico seguimos para Baceor, uma tabanca ali perto, onde o Pepito nos presenteou um “divinal” jantar na companhia de um grupo de seus amigos.

Já era alta noite quando regressamos a Varela, animados e felizes.

No dia seguinte, manhã cedo, era o último, partimos para Bissau. E, foi um “corre corre” à cidade para comprar as últimas recordações e lembranças para a família com o apoio da Cadi Guerra, a minha amiguinha filha do Alferes comando Aliu Sada Candé, que conheci em Aldeia Formosa, vilmente assassinado uns meses depois da independência em Bambadinca pela turba exaltada dos “vencedores” , num julgamento/linchamento público.

Já era alta noite, quando chegamos ao aeroporto para fazer o check in, acompanhados pelo incansável Jibrilo Djaló (Gibi) especialista da AD nas relações com a alfandega no cais de embarque. Obrigado,  Gibi, pela tua disponibilidade e pelo sorriso permanente que nunca regateias.

Na hora da despedida surge na mente todo o encanto dos tempos vividos que vemos ficar para trás irremediavelmente. Como escreveu Saint Exupéry,  piloto aviador francês e escritor que se perdeu algures nos céus Argélia durante a 2ª guerra mundial:  ”Aqueles que passam por nós, não vão sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Foi com este sentimento que partimos no regresso a Portugal.

O grande problema para mim, neste final de viagem,  é encontrar forma de agradecer a tanta gente que tudo fez para transformar este regresso à Guiné numa viagem de sonho, que jamais esqueceremos.

Comecemos então pela AD:

(i) o Pepito e a Isabel como seu encanto e disponibilidade;

(ii) o Gibi que nos foi receber alta madrugada e nos levou ao aeroporto para regressarmos, como não podia deixar de ser, numa alta madrugada;

(iii) O Bemba, incansável motorista que nos acompanhou todo o tempo com uma disponibilidade e uma paciência que nem o Jó, o tal da Bíblia teria; creio que foi uma oportunidade para ele de reviver os seus tempos de soldado português e para nós a possibilidade de voltarmos a sentir o “pulsar” de português na Guiné-Bissau de alguém que se assume conscientemente como guineense, mas não esqueceu Portugal e os seus camaradas e amigos brancos que a seu lado lutaram e sofreram;

(iv) O Jorginho e o Valdemar na Escola de Artes e Ofícios no Quelelé, o nosso poiso em Bissau;

(v) A Cadi Guerra que deixou a família para ir uma tarde connosco até Bissau ajudar-nos nas “mérculas”;

(vi) O Abubakar Serra em Iemberém e o Abdulai, que nos acompanhou nas visitas pelas tabancas do Cantanhez e o Domingos Fonseca, que nos recebeu no Museu de Guiledje;

(vii)  O “velho” saracolé, Kissimá que se perdeu de paixões por uma bajuda felupe e se ficou por Varela uma vida inteira; foi receber-nos a S. Domingos e velou por nós dia e noite até à nossa partida para Bissau; foi o guia, o interlocutor, o tradutor, o companheiro de aventura;

(viii) As nossas amáveis cozinheiras; A Fatmata de Farosadjuma, a Satu (esposa do Abubarkar) em Iemberém e a Satu ( filha do Kissimá) de Varela; foi graças a elas que saboreamos galinha de todas as formas e feitios, sempre cozinhadas com esmero e carinho; o peixe e o marisco também estavam óptimos. 

Temos de voltar!

E as populações, que encanto! Tudo é motivo para fazer festa. Já o sabia há muitos anos, mesmo do tempo da mordaça da guerra. Mas tanta alegria! A sua forma de comunicar, de expressar sentimentos independentemente da etnia, é profundamente cativante. E as crianças, meus Deus, que loucura!


Zé Teixeira
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P11975: Parabéns a você (617): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11971: Parabéns a você (616): António Fernando Marques, ex-Fur Mil da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)