1. Sexto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:
A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado
No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.
CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES
ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU
6 - As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole
Ainda no Aeroporto de Pedras Rubras, tudo se conjugava para viver momentos inesquecíveis. Ficara para trás a incerteza da Guiné, a experiência de voo em aviões “Caravelle” a jacto, e era a presença da família, da namorada e de amigos da juventude.
Pela recepção e pelo carinho e emoção com que me rodearam, já sentia o quanto valeu a pena ter vindo de férias. Todos queriam saber de mim e da guerra. Para eles, essa coisa que, estando tão longe e por vezes tão perto, representava sempre risco de perderem alguém.
Já no aconchego da nossa casa, o meu Pai mostrava alguma compreensão pelas minhas escolhas na vida e era o mais interessado nos pormenores da guerra, especialmente naqueles com leitura política.
Como actuava o PAIGC?
Que forças tinham?
Que áreas controlavam?
E como é o teu dia a dia?
A minha Mãe, como todas as Mães do mundo, abraçava-me a toda a hora, como quem precisa de sentir para acreditar que o filho estava ali.
O rosto da minha namorada espelhava a felicidade de me ter a seu lado.
A minha velhinha avó paterna, que me criou até aos cinco anos e que nutria por mim uma afeição especial por eu ser o seu primeiro neto, achava que estava muito magrinho e insistia para que me alimentasse melhor.
Eram tempos de partilha com a família e do regular convívio de café com os amigos, alguns deles com a possibilidade de virem a “bater com as costas” na guerra de África.
As motivações que me impeliram para vir de férias faziam todo o sentido. Tinha agora uma relação mais afectuosa com o meu Pai, transmiti à minha namorada a confiança de que os nossos sentimentos eram o futuro e estava recuperado do enorme desgaste físico em que me encontrava. Mas o tempo voa, especialmente nestas circunstâncias e, quase sem se dar por isso, a data do regressar à Guiné estava aí.
No dia do regresso, a família e a namorada acompanharam-me ao aeroporto. Enquanto se aguardava a hora das despedidas, o meu Pai pediu-me que, no regresso definitivo a casa, lhe trouxesse duas garrafas de vodka para oferecer a amigos. Percebi a motivação do pedido e garanti-lhe que seria satisfeito.
Algo afastados do local em que me encontrava com a família, notei a presença de um grupo de pessoas que incluía algumas minhas conhecidas, todas de luto, e com semblantes de dor. Dirigi-me para junto dessas pessoas, cumprimentei as que conhecia, e indaguei dos motivos do luto e da presença no aeroporto. Foi como se tivesse levado um coice no peito. Fomos Amigos de escola, Colegas na equipa de Natação do Leixões, Companheiros da Vida e Tu, logo Tu, havias de tombar em combate na Guiné.
A família a namorada e amigos estavam ali à espera da urna para lhe fazerem o funeral. Partilhei com eles alguns momentos de pesar e dor. Quando os informei de que estava ali para regressar á Guiné, ficaram pesarosos e desejaram-me a maior sorte do Mundo.
O tempo que restava não me permitiu assistir
à chegada da urna do meu Amigo.
Evitei que a minha família percebesse o motivo porque me tinha afastado.
Posteriormente, viria a saber que o meu Companheiro e Amigo que servia nas tropas paraquedistas, havia tombado na zona de Galomaro, numa emboscada junto de uma fonte.
Era o regresso marcado pelas sombras da guerra.
Mas valeu a pena ter vindo de férias. Estava grato pelo carinho de todos e fiquei rendido, aquelas lágrimas rebeldes que vi saírem dos olhos do meu Pai, no momento do abraço de despedida. Sim, eu sei que valeu a pena.
Tal como a viagem de barco, a viagem de avião de regresso à Guiné faria escala em Cabo Verde, desta vez na Ilha do Sal.
Fizemos uma paragem de cerca de uma hora e, por aquilo que pude ver, a ilha era muito árida e pouco povoada.
Desci em Bissau no início de Junho e já chovia. À boleia, numa viatura militar, fui de Bissalanca até ao Depósito de Adidos em Brá.
Aqui, fiquei aguardar transporte para o Xitole.
Instalado, apressei-me a ir cumprimentar o Sargento Enfermeiro que me havia tratado quando cheguei à Guiné, pela primeira vez. Já não me conhecia, era normal, tanta gente lhe havia passado pelas mãos mas, devia-lhe a gratidão pelo seu cuidado e disso dei testemunho do meu agradecimento.
Este tempo de espera permitiu-me “saborear” Bissau, os seus recantos e encantos, mistérios e até perigos. Pude desta feita, conhecer os locais mais frequentados pela tropa “macaca”. Quantos de nós terão resistido à tentação de se aventurar pelo “Pilão” e sentir aquela atmosfera de provocação, aquela mistura de desafio, “pecado” e até magia que nos envolvia. Eram as mulheres mais lindas, sobretudo as de origem cabo-verdiana, o motivo maior da nossa atenção.
Falava-se de que, por estas bandas, aconteceriam rixas bravas entre as tropas especiais, cada qual, numa demonstração da superioridade das suas “boinas”. Eram os tempos de se “pisar o risco” e de se dar livre escape à irreverência da juventude.
Era a quase obrigação de se ir ao UDIB dar um mergulho na piscina, ver-se um filme e depois irem alguns, os poucos que gostavam, comerem-se umas ostras ali para os lados do cais.
E o ponto de encontro, camaradas?
Lembram-se do imperdível Café Bento?
Haverá porventura alguém que tenha passado por Bissau, especialmente da classe das praças, que não conheça o Café Bento?
Era o nosso ponto de encontro, camaradas. Ali se encontravam os amigos, os amigos dos amigos, os conhecidos dos amigos e até, pasme-se, os desconhecidos.
Em pouco tempo se ficava a saber tudo o que se passou, o que se passava e o que viria a passar-se em qualquer canto, por mais escondido que estivesse no território da Guiné.
Era a nossa 5.ª Rep, o serviço de informações mais eficiente, existente no território.
Entre umas canecas de boa cerveja e uma engraxadela dos sapatos a conversa fluía sempre interessante e actualizada. Foi neste meio que encontrei o namorado, de uma colega de trabalho da minha namorada, que estava no Forte de Amura como Polícia Militar. Logo ali me disponibilizou cama e mesa de qualidade bem superior à do Depósito de Adidos. Porque será que não me surpreendeu a sua atitude? É que a malta, naquelas circunstâncias, é capaz das atitudes mais nobres só para ter por perto alguém que lhe fale daquilo que lhe é familiar.
E nestas andanças, chegou o dia 9 de Junho de 1971.
Estávamos na véspera do Feriado Nacional e, para minha surpresa, estava nomeado Cabo de Dia ao Depósito de Adidos. Acreditem camaradas, nunca tinha feito tal serviço. Só fui promovido a Primeiro-Cabo na data do embarque em Lisboa e, no mato, os enfermeiros estavam dispensados de serviços, assim pensava eu.
Algo me dizia, e disso comecei a convencer-me, de que nada acontecia por acaso.
Ao início da noite, enquanto o pessoal em formatura aguardava a chegada do Sargento de Dia para a verificação de presenças, ouviram-se uns enormes estrondos de rebentamentos, que me pareceram vir, ali mais para os lados de Bissau. À ordem do Sargento de Dia, todos fomos procurar abrigo nas enormes “valetas” que ladeavam a parada alcatroada.
Após os primeiros impactos, os Sargento e Oficial de Dia comentavam que Bissau estaria a ser atacada.
Ó diabo, nem aqui se está bem?
Não se ouviam sirenes de ambulâncias. O que estaria acontecer em Bissau, será que sofremos muitas baixas?
Essa noite foi de alerta geral. Aconteceu o que muitos, há muito tempo vaticinavam. Era o fim do mito do refúgio seguro.
O PAIGC tinha feito uma demonstração do seu atrevimento e força.
No dia seguinte, nas conversas do Café Bento o assunto era o ataque a Bissau. Era assunto incontornável a que ninguém ficava indiferente. Uns diziam que os “mísseis” caíram ali para os lados dos tanques de combustível da Sacor, que ficavam nas margens do Geba às portas da cidade. Outros, afirmavam que todos os rebentamentos se deram nas bolanhas bem longe da cidade.
Em Bissau e no interior, esta evolução da guerra deixou-nos a todos muito apreensivos. Que futuro?
Fiquei marcado com a convicção que nada seria como dantes na Guiné depois daquela noite.
Deixei Bissau de retorno ao Xitole a bordo de uma avioneta DO.
Foi uma sensação difícil de descrever quando sobrevoei o Xitole, momentos antes de a avioneta tocar a “pista”.
Eu sabia o que via, eu sentia o que via e sabia ao que vinha.
Nada podia alterar o rumo das coisas. Estava novamente confrontado com a amarga realidade da guerra.
Todas as visitas da avioneta ao Xitole geravam um movimento anormal de pessoas na zona do “hangar”, fosse pela curiosidade ou pela ânsia do tão desejado correio.
Lá estava, entre tantos, o meu camarada enfermeiro que, mal me viu, apressou o passo para me dar um abraço de boas-vindas e ajudar a carregar os meus haveres.
- Como te correram as coisas, só com o Galé a ajudar-te? - Disparei eu.
(Continua)
Principal avenida de Bissau
Messe dos oficiais e campo de futebol
Ponto de encontro – Café Bento
Momento de relaxe jogando-se a lerpa
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Nota do editor
Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole